Certa noite, vagando pelo Twitter, acho que lá pelo ano de 2010, tive uma breve e divertida interação com Lobão. Aproveitando o gancho de uma declaração sua, segundo a qual ele não se reconhecia no som do disco Sob o Sol de Parador (1989) – destacando, entre outros motivos, a produção clean de Liminha – Lobão me disse que, na verdade, sentia o mesmo em relação a qualquer disco anterior àquele.
Aproveitei para dizer que sua bateria firme em “Obrigado (Por Ter Se Mandado)”, faixa do Ideologia (1988), de Cazuza, era o que eu mais gostava na música, depois da letra acachapante. A reação de Lobão: “Era eu na bateria? Manda aí, eu quero ouvir, não me lembro disso!” – e lá fui eu fuçar meus mp3 de origem questionável. Ao ouvir as próprias baquetadas, confirmou: “Ficou bom mesmo, hein?”
Não me lembro se já naquele tempo Lobão estava acometido pelo antipetismo – uma doença mental coletiva, que fez muita gente acreditar que a corrupção no Brasil nasceu durante os primeiros mandatos de Lula, inventada e espalhada por políticos com muito mais culpa no cartório. Era triste ver gente aparentemente saudável que, de uma hora para outra, começava a espumar pela boca e vociferar “E O LULA? E O PT?”
Fato é que Lobão – ao lado de vários contemporâneos da cena BRock - cedeu à moléstia e, por muito tempo, esteve alinhado com os inimigos da democracia que chegaram ao poder em 2018. Algum tempo depois, felizmente, pareceu arrepender-se – e digo “pareceu” porque eu próprio deixei o Twitter, e o soube por meio de notícias. Pesquisando como não-usuário por seu perfil, hoje, alguém pode pensar que ele parou de postar em 2019, quando exaltava fascistas em caixa alta o dia inteiro.
Apesar disso, não peguei por ele o ranço devastador que peguei, por exemplo, pelo Ultraje a Rigor. Dediquei um bom tempo à leitura de sua ótima autobiografia, 50 Anos a Mil, e não sentia náusea ao escutar qualquer canção sua - principalmente, quando vinha deste estupendo A Vida é Doce.
Era 1999. Lobão chacoalhou o mercado com um lançamento que era independente de verdade (quando muita gente se considerava indie, enquanto era bancado pelo Grupo Abril). Gravou seu disco e mandou para as bancas de jornais, com cópias numeradas e acompanhado de uma revista chamada Manifesto – e vendeu bem, umas 100 mil cópias, numa época em que a pirataria de CDs físicos era forte e a pirataria online começava a incomodar às gravadoras.
Na capa de A Vida é Doce, um Lobão de costas para o ouvinte contempla o mar escuro em um dia nublado. É uma atmosfera que casa com as habituais temáticas do cantor, mas que se contrapõe ao clima de praia e bermuda da sua geração de rock nos anos 80 – e mais ainda à alegria inconsequente do funk carioca, que, naquele fim dos anos 90, começava a ganhar força no mainstream nacional.
No rescaldo de uma rápida e severa febre techno que assolou a música mundial, Lobão parecia ser um dos poucos artistas locais ainda prestando atenção ao trip hop nascido quase uma década antes, por obra do Massive Attack e Portishead, principalmente. Pode ter sido tardio surfar essa onda, mas Lobão não entregou música anacrônica: pelo contrário, havia um sentido de urgência e caos que era o rosto daquele último ano do século XX.
Já na abertura, “El Desdichado II” era Lobão – finalmente, dono de seu próprio som – reapresentando-se a quem ainda o desconhecia (e até para quem ele já era familiar): “Eu sou a execução, a perfuração / O terror da próxima edição dos jornais / Que me gritam, me devassam e me silenciam”. A saraivada verbal é acompanhada de violão, baixo, percussão, guitarra distorcida e arrepiante grito primal.
Quando fala de amor (ou desamor), Lobão atinge picos de beleza e emoção, alternando realismo e lirismo, alegria contagiante e tristeza resignada. “Para Onde Você Vai”, “Vou Te Levar” e “Uma Delicada Forma de Calor” (com Zeca Baleiro) devem figurar em qualquer lista decente de melhores baladas do velho João Luiz. Na faixa-título, o caos urbano é pano-de-fundo para um caos pessoal ainda maior. Só mesmo no auge do desespero é que um homem recorre a um “me perdoa” como aquele.
Imediatamente antes do bonito final instrumental (“Amanhecendo na Lagoa”), Lobão prova que escutou Massive Attack com ouvidos muito atentos: “Mais Uma Vez” tem os climas, os efeitos e a solenidade que fizeram a fama dos ingleses de Bristol. Os mestres certamente aprovariam a homenagem. Ao ouvinte, resta a “lombra” gostosa que música de tamanha qualidade provoca. Se é verdade que Lobão já nos deu motivos para abandoná-lo, também é certo que A Vida é Doce torna esta uma tarefa bastante inglória.
Lobão
A Vida é Doce
Produzido por Lobão, Jongui, Humberto Barros e Regina Lopes
Lançado em 10 de abril de 1999
01 – El Desdichado II
02 – Universo Paralelo
03 – Pra Onde Você Vai
04 – Tão Menina
05 – A Vida é Doce
06 – Uma Delicada Forma de Calor
07 – Tão Perto, Tão Longe
08 – Ipanema no Ar
09 – Vou Te Levar
10 – Mais Uma Vez
11 – Amanhecendo na Lagoa