O célebre livro Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan, foi escrito sob o impacto de uma foto feita em 1990 pela sonda Voyager 1, quando ela estava a cerca de impressionantes 6 bilhões de quilômetros da Terra. Apontando uma de suas câmeras para onde estava nosso planeta, a Voyager o registrou como um ponto azul que mal se vê, em meio à imensidão negra do espaço. “Que mundo pequeno” é uma frase recorrente em nosso cotidiano. “Encurtar distâncias” já configura um clichê quando se fala de tecnologia.
Não caia nessa. Este não é um mundo pequeno.
Que o digam os sobreviventes do acidente ocorrido nos Andes argentinos em 13 de outubro de 1972, quando um pequeno avião fretado para transportar o time uruguaio de rugby se espatifou ao bater a cauda numa montanha, com 43 pessoas a bordo, entre passageiros e tripulantes. Dezesseis delas morreram quase imediatamente. Das 27 restantes, apenas 16 acabariam resgatadas, ao fim de dois meses que pareceram intermináveis para aquele grupo, que só via rocha e neve para onde quer que se olhasse.
A história de horror vivida pelos uruguaios já foi contada antes em Hollywood, no filme Vivos (1993), de Frank Marshall, estrelado por Ethan Hawke. Com a efeméride dos 50 anos do episódio, “celebrados” em 2022, a Netflix entregou a direção desta poderosa produção, dividida entre EUA e Espanha, ao cineasta J. A. Bayona, diretor de filmes impactantes e sensíveis como O Impossível (2012) e Sete Minutos Antes da Meia-Noite (2016), além de um nada lisonjeiro Jurassic World: Reino Ameaçado (2018).
Como em O Impossível, Bayona não decepciona ao filmar sequências desesperadoras. A tensão que precede o acidente culmina numa sequência curta, mas assustadora, com o avião despedaçando-se no primeiro impacto, enquanto pessoas são atiradas para fora e aquelas ainda dentro do avião passam por todo tipo de terror físico e psicológico.
Não chega a ser spoiler, é um fato célebre e que ocorreu há meio século, então, vamos lá: com o passar dos dias, o grupo vê-se obrigado a recorrer ao impensável para sobreviver - comer a carne dos amigos e familiares mortos. A decisão não é fácil, mas parece não haver ética ou dogma que se sobreponha à necessidade de sobreviver. Apesar da sutileza do diretor, que não apela de graça ao gore, ainda é uma cena incômoda de diversas maneiras.
Além da fome, existe o perigo do clima extremo. A própria natureza parece empenhada em fazer aquelas pessoas aceitarem que vão morrer ali. Há uma rápida cena que é como um presságio de que as coisas ainda pioram muito antes de melhorar, com as nuvens agitando-se como tentáculos ao redor do sol pálido. É como se as montanhas estivessem dizendo “esqueçam, vocês não vão a parte alguma”.
Sociedade da Neve me faz desejar que, assim como é com os filmes, também fossem até 10 os indicados ao Oscar de Melhor Direção, porque Greta Gerwig (Barbie) não foi a única injustiçada. O que o espanhol Bayona consegue aqui é muito digno de prêmios. Um filme que fica com a gente muito depois de terminar.
4 comentários:
Não só dez diretores indicados, como também dez filmes internacionais. Porque tem sido um prazer riscá-los da minha hitlist; só coisa boa e difícil de fechar questão sobre um favorito em ambas as categorias. Sugiro ver o maravilhoso Vidas Passadas. Ele termina, mas você não termina com ele.
Sobre Sociedade, a patroa não conseguiu assistir até o fim dada a tensão e sofrimento dos passageiros sobreviventes. Confesso que o trecho da avalanche após o clima descontraído entre eles foi a cena que mais me impactou.
Belo texto, parceiro.
LUWIG, faço coro ás 10 indicações para os maiores prêmios da noite: filme (incluindo as listas de internacionais e animações), diretor, ator principal e coadjuvante, atriz principal e coadjuvante, roteiro original e adaptado.
Já baixei Vidas Passadas pra assistir, bem como American Fiction, que até há pouco nem tinha distribuição garantida no Brasil.
Abraço!
Fala!
Resenha finíssima, como sempre. Mas essa intro acareando o trágico evento com PPA foi futebol-arte. Tipo do fluxo que passa longe de redações de grandes portais.
Verei no finde (também, depois dessa leitura!). Adianto que minha referência dessa história é Vivos, que ainda funciona e ainda impressiona. Em contrapartida, O Impossível foi uma ótima surpresa.
Curioso... outro dia revi A Longa Caminhada, um survival que me chocou bastante quando guri. Acho que também serve como contraponto a esse grupo vitimado pelas forças da natureza - no caso, são duas crianças vitimadas pelo elemento humano e que tentam sobreviver no meio de um deserto escaldante.
DOGGMA, não conheço "A Longa Caminhada", mas já vai pro topo da "pilha de filmes". Obrigado pela audiência e pelos elogios, e espero que tenha curtido Sociedade da Neve. Abraço!
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