Lembro de ter assistido apenas uma vez ao filme O Talentoso Ripley (1999), de Anthony Minghella (redimindo-se da chatice monumental de O Paciente Inglês, de 1996, um desses filmes cuja vitória no Oscar a gente nunca digere bem), com os personagens do thriller de Patricia Highsmith (1921-1995), publicado em 1955, ganhando vida nas atuações estelares de Matt Damon, Jude Law e Gwyneth Paltrow. Tom Ripley (Damon) é um desses monstros carismáticos que nos fazem sentir um ponta de culpa por torcer para que eles se livrem do merecido castigo por todo o mal que causam. Ele mente, rouba, falsifica e mata - e nós, coitados, não entendemos por quê, mas é inegável que o amamos.
25 anos depois, a Netflix transforma o livro de Highsmith em série. Os oito episódios de Ripley têm produção, roteiro e direção de Steven Zaillian, cobra-criada e oscarizada de Hollywood, com extenso currículo de bons serviços prestados à arte, que vão dos roteiros de A Lista de Schindler (1993) a O Irlandês (2020) no cinema e The Night Of (2016), que também dirigiu, na TV.
Em glorioso preto-e-branco (o que amplifica o charme vintage decadente da Itália dos anos 50), a série lentamente desenvolve a história de Tom Ripley, um tipo medíocre que vive de pequenos golpes em Nova York, desfrutando como pode do pouco que lhe cabe do “sonho americano” (geralmente, o alheio). Procurado pelo milionário pai de um playboy esbanjador, que está gastando sua fortuna com a namorada na Itália, num “dolce far niente” (em tradução livre, “a arte de não fazer nada”, em italiano), Ripley é incumbido de convencer o já não tão jovem Richard Greenleaf a voltar para casa.
Quando chega ao vilarejo Atrani, Ripley se encontra com Tom, que não o reconhece. Sua namorada, a aspirante a escritora Marge, também desconfia da fala mansa e do deslumbre de Tom com a vida de “pobre menino rico” que Dickie leva. Com relutância, o casal aceita hospedá-lo. Tom se acostuma à vida mansa e passa a enrolar o pai de Dickie, enviando cartas evasivas sobre o retorno do filho – e, claro, sempre pedindo mais dinheiro. Quando a obsessão de Tom por Dickie começa a interferir na vida do casal e algumas suspeitas se confirmam, os dois começam a planejar como livrar-se dele – o que coloca em marcha o plano macabro do próprio Tom.
Como Tom Ripley, o sempre ótimo Andrew Scott (em ascensão desde a série Sherlock) tem aquele olhar vago, emocionalmente neutro, típico dos sociopatas. Acuado ou furioso, Ripley não explode – ao contrário: quanto mais a coisa aperta, maior parece seu controle e sua capacidade de escorregar entre os dedos dos que o caçam. Um ator menos sutil faria caras e bocas de “perigoso”, mas Scott dá nova dimensão ao epíteto de “talentoso” do personagem.
No papel da desconfiada e ressentida Marge, Dakota Fanning parece sempre saber (e querer) mais do que pensamos, enquanto Johnny Flynn (que deu vida a David Bowie e era a única coisa boa em Stardust, de 2020) está igualmente firme e vulnerável como Dickie, o filho mimado e artista frustrado no centro dos interesses e do plano de Tom Ripley. Há um extenso elenco de ótimos atores italianos (com destaque para Maurizio Lombardi, que faz o Inspetor Ravini) e uma pontinha de John Malkovich (que também já foi Ripley no cinema).
A opção pelo preto-e-branco nos priva do colorido intenso da costa italiana, mas privilegia os tons sombrios e rimas geométricas das cenas noturnas (isto aqui é um film noir, afinal), além de emprestar alguma beleza aos cenários deteriorados dos cortiços italianos. Como fez antes em The Night Of, Zaillian constrói suspense que raramente atinge um apogeu - com a apavorante exceção do primeiro assassinato, de gelar o sangue. O escape da tensão crescente é, quase sempre, por uma tangente desconcertante – como se estivéssemos, nós mesmos, sendo ludibriados por Ripley e pedindo por mais. A gente sofre, mas acha gostoso.
4 comentários:
Eu amei o paciente inglês, então acredito que para gostar não vai ser tão difícil. Depois de Fleabag, onde conheci o trabalho do Andrew Scott, sempre que ele aparece em alguma produção, sei que é garantia de sert maravilhoso. Com certeza vou assistir.
ROUSY CARLA, é bem provável que eu desgoste de O Paciente Inglês porque o assisti com minha "versão errada": ou seja, talvez jovem demais, talvez com o estado de espírito errado... mas pode ser que ele seja só chato, mesmo. ;-)
Bjo!
Essa coisa divisiva sobre a chatice d'O Paciente Inglês é até folclórica lá fora. E rendeu algumas cenas hilárias em Seinfeld:
https://youtu.be/c5VluH1BeXo
Pessoalmente, assisti bem depois do hype e, esperando por uma soneca épica, fiquei acordado até o fim e curti. :)
Ainda verei o novo Ripley, embora o filme do Minghella (outro calcinado pela crítica) ainda esteja tatuado na minha mente. Comparações, embora indevidas, serão inevitáveis...
DOGGMA, como dito aí na resposta acima, com mais anos e mais vivência no lombo, eu talvez tenha uma opinião diferente dos filmes do Minghella hoje. Quem sabe, acabe até fazendo uma pequena maratona dos filmes do Ripley (até porque nunca vi o segundo) e emendando com O Paciente. O problema é que há tanta coisa nova e boa pra assistir... Eu invejo muito quem se senta na frente da TV pra encarar, de propósito, um replay de um velho favorito. Não tenho muito mais disso, infelizmente. Abração!
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