Há pouquíssimo tempo, chegou ao fim o remake de Vale Tudo, novela da Rede Globo que, em 1988, mobilizou a audiência em torno do mistério sobre quem matou Odete Roitman. Naquele tempo, quase quatro décadas atrás, as trilhas das novelas da Globo eram um importante componente na formação (inicial, pelo menos) do gosto musical dos brasileiros. Para os artistas daqui - especialmente, aqueles em início de carreira - era a chance de ser elevado sem escalas ao mainstream nacional, principalmente se sua música virasse tema de um personagem querido.
A novela de Gilberto Braga teve uma trilha internacional de imenso sucesso. Dela constavam nomes como George Michael, Natalie Cole, Rod Stewart, Whitney Houston e Sade, só pra ficar em alguns. Entre tantos grandes astros, chamava atenção o nome de uma estreante, que lançou uma balada acústica extremamente açucarada, que virou um dos maiores hits daquele ano. A música era "Baby Can I Hold You" e a cantora se chamava Tracy Chapman.
Chapman desafiava classificações. Era meio andrógina, com seu cabelo black curtinho, se vestia com simplicidade, tinha voz de contralto e tocava violão folk, diferindo drasticamente das demais cantoras negras na trilha, com seus looks de grife e produção de ponta, em hits feitos para dançar ou namorar. Verdade que "Baby..." era uma música romântica, e não era a única do tipo no epônimo disco de estreia de Tracy, mas quem fosse a uma loja comprá-lo, na esperança de ouvi-la falar de amor da primeira à última faixa, tinha boas chances de se decepcionar - com mente aberta e ouvidos dispostos, porém, ficava claro que ela tinha muito a dizer.
A primeira faixa, "Talkin' 'Bout a Revolution", já era uma carta de intenções: Tracy alertando aos donos do poder que o povo estava esperto e prestando atenção à péssima qualidade de vida que sobrava aos que sonhavam "errado" o sonho americano (os 99% que não ficavam milionários antes dos 30 anos, para quem a vida era uma luta diária). "Finalmente, as mesas estão começando a virar", ela dizia, quase ingenuamente - mas, pensando bem, não dá para ser idealista ou sonhador sem ser um pouco ingênuo, também.
Sem perda de tempo, já caímos na obra-prima do disco: "Fast Car", em que Tracy se imagina na pele de uma moça que se junta ao namorado na busca de um futuro melhor. Enquanto ela persiste e se vira pra pagar as contas, alimentar os filhos e não repetir os erros da mãe, ele vai cedendo aos pouco à acomodação e ao álcool. O sonho de dirigir pela cidade sem preocupações ("era gostoso o seu braço passado em volta do meu ombro") acaba atropelado pela dificuldade em encontrar emprego digno e prosperar juntos. Sobre o riff simplicíssimo e circular de seu violão, a letra de Tracy pintava um retrato sombrio das perspectivas da juventude nos guetos americanos.
A barra pesa ainda mais em "Behind the Wall", cantada a cappella, em que a violência doméstica e a inépcia policial são amigas íntimas. "Why?" era didática em perguntar "por que bebês passam fome, se há comida que dá pra alimentar o mundo?" Apesar da indigência lírica e de certa condescendência, se existe algo que hoje sabemos com certeza, é que o óbvio também precisa ser dito. Tem recado que não pode ser cifrado: tem que ser uma voadora com os dois pés no peito do ouvinte.
Felizmente, nem tudo é revolta e miséria: o reggae "She's Got Her Ticket" oferece às meninas o direito de sonhar com uma vida melhor, mesmo vindo de famílias horríveis ou desfeitas. "Mountains o' Things" soa como um delírio febril de alguém cansado de trabalhar para apenas sobreviver, que se permite sonhar em acumular coisas e, bem, ser um pouco cuzão apenas por ser rico. Curioso é que, embora saibamos de qual parcela da população Tracy está falando nesses momentos de crítica social, ela só usa as palavras "black" e "white" em uma música, "Across the Lines".
Na metade romântica do seu disco, Tracy equilibra a sacarina de "Baby Can I Hold You" com a delicadeza de coisas para se cantar ao pé do ouvido, como "For You" e "If Not Now". Os perrengues de namorar um cara, digamos, problemático, estão descritos em "For My Lover": "as coisas que não fazemos por amor...", diz a coitada que, aos poucos, vai perdendo dinheiro e juízo.
Apesar da dureza de alguns temas, Tracy Chapman, o disco, é de muito fácil audição, com uma produção cristalina, beirando o pasteurizado, a cargo de David Kershenbaum (que já produziu Duran Duran, Supertramp e Bryan Adams). A cena musical da época estava dividida entre o pop ultraproduzido de artistas como A-Ha e Depeche Mode e o bom momento do hard rock (o Guns N' Roses, por exemplo, tinha lançado seu primeiro álbum no ano anterior). Tracy chegou de mansinho, com seu disco de trovadora, quase anacrônico, e firmou os dois pés nas paradas e listas de premiações. Tracy Chapman, o álbum, vendeu 20 milhões de cópias mundialmente, 250 mil delas no Brasil (disco de platina), e ganhou três Grammy.
Seus discos subsequentes não repetiram o sucesso mundial de sua estreia, mas ela continuou gravando até 2008, quando lançou seu último álbum, Our Bright Future. Embora seja frequentemente reconhecida e homenageada por seu trabalho musical, Tracy não está simplesmente descansando sobre os louros da antiga fama: ela é uma ocupada ativista dos direitos humanos, atuando em diversas partes do mundo no combate à fome e outras tragédias. Em vez de virar mesas, Chapman parece agora mais empenhada em arrumá-las para quem tem urgência em sentar-se a uma. Diferente, mas coerente.
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Tracy Chapman
Tracy Chapman
Produzido por David Kershenbaum
Lançado em 5 de abril de 1988
1. Talkin' 'Bout a Revolution
2. Fast Car
3. Across the Lines
4. Behind the Wall
5. Baby Can I Hold You
6. Mountains o' Things
7. She's Got Her Ticket
8. Why?
9. If Not Now...
10. For You
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