21/08/2024

Mozipédia: A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths

A banda inglesa The Smiths durou pouco: foram meros cinco anos, entre 1982 e 1987 – e menos ainda para mim, que só vim a conhecê-los no início de 1986. Apesar disso, sua influência em minha vida – que vai do meu gosto musical a certos aspectos de minha personalidade – seguiu pelas décadas à frente. Quase 40 anos depois, eles ainda são meus artistas favoritos.

Daqui, do Brasil, onde tudo naquele tempo quase sempre demorava muito a nos alcançar, a gente não fazia ideia do fenômeno que eles eram na Inglaterra. Há uma passagem bastante ilustrativa disso em Mozipédia: A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths: convidados a abrir um show do The Police (uma banda muito popular no Brasil, que havia feito shows históricos por aqui), os Smiths recusaram a suposta honraria, com o guitarrista Johnny Marr esclarecendo: “Nós já somos mais importantes do que o Police jamais foi”.

Verdade ou exagero, o fato é que os Smiths extrapolaram seus muitos méritos musicais, tornando-se um fenômeno cultural muito atípico, especialmente por conta das letras e das fortes opiniões de seu vocalista, Morrissey. Sua mera figura e estilo de vida (entre outras idiossincrasias, ele é um vegetariano radical) eram objeto de escrutínio da imprensa e devoção dos fãs, numa escala que só teve paralelos na beatlemania, 20 anos antes deles. Morrissey e Marr simplesmente não deviam nada a Lennon e McCartney, ou Jagger e Richards: eram um perfeito exemplo de quando o resultado supera em muito a soma das partes.

(The Smiths: Andy Rourke, Morrissey, Johnny Marr e Mike Joyce)

Menos biografia e mais enciclopédia pra valer, com temas organizados em ordem alfabética, o livro de Simon Goddard ajuda a entender as razões para o mitológico sucesso da banda e de seu vocalista, listando e avaliando absolutamente TODAS as músicas lançadas (e até algumas não lançadas) durante a existência da banda e na carreira solo de Morrissey, até o ano de publicação do livro, 2009 – quando ele havia lançado o ótimo Years of Refusal. Além de álbuns e singles, traz referências a shows e coletâneas em vídeo; os filmes, livros, músicas, cantores, atores e autores citados como favoritos de Morrissey; os diferentes parceiros musicais ao longo das décadas; os amigos e desafetos; as razões e as consequências da separação; e até mais, acredite.

São mais de 700 páginas que, por sua abrangência, trazem um punhado de informações que, em certos momentos, desafiam o interesse do leitor – sem falar que Goddard tem algumas opiniões controversas sobre alguns discos e canções. Por exemplo, ao falar do primeiro álbum ao vivo de Morrissey, o eletrizante Beethoven Was Deaf, ele o acusa de “pouca intensidade”. Também atribui à monumental “Life is a Pigsty” uma certa “fraqueza de pulso”, classificando-a como nada mais que “uma porcaria divertida”. Como se pode notar, existe um preço a pagar por saber ler.

Por outro lado, acerta ao atribuir o justo valor a certas canções, como nas emocionadas palavras que dedica a “Last Night I Dreamt that Somebody Loved Me”, chamando-a de “a última obra-prima da banda”, uma canção que até Andre 3000, do duo de hip-hop Outkast, chamou de genial e disse desejar ter sido ele a compor.

A edição nacional, da editora Leya, tem alguns problemas de tradução e revisão, com informações equivocadas (como chamar ao baixista Andy Rourke de “baterista”, posto que era de Mike Joyce), traduções muito literais onde caberia uma adaptação ao “paladar” brasileiro, e algumas frases que simplesmente não têm sentido completo. Apesar dos percalços, recomenda-se o livro a iniciados e curiosos, pois é agradável leitura e funciona muito bem como documento sobre o legado de uma banda que foi muito maior do que imaginamos, mas ainda muito menor do que estava destinada a ser.

Deadpool & Wolverine


Menos de um mês após sua estreia, Deadpool & Wolverine ostenta uma bilheteria bilionária. Já é o segundo maior filme do ano, atrás apenas de Divertida Mente 2. Por mais impressionantes que sejam as cifras, o maior feito do filme é outro: o de desmentir essa história de que existe um cansaço com o gênero de super-heróis. Existe um cansaço compreensível, sim - mas dirigido a filmes ruins, que se tornaram mais a regra que a exceção.

Além de realizar a profecia do próprio personagem de que ele seria “o Jesus da Marvel”, Deadpool & Wolverine mostra que o público ainda tem, sim, bastante interesse pelo MCU e, ainda que alguém queira atribuir seu sucesso apenas ao inigualável carisma da dupla de protagonistas (Ryan Reynolds e Hugh Jackman), D&W tem boas ideias de sobra e honra o legado de seus personagens, seja em papel ou em película.

Aliás, o filme funciona como uma carinhosa elegia à “era Fox” de filmes do gênero, que, entre erros e acertos, divertiu muita gente desde tempos pré-Marvel Studios. Embora o extenso círculo de amizades e o imenso poder de convencimento de Ryan Reynolds tenha garantido algumas presenças ilustres e nostálgicas, em número suficiente para dar um lustro especial a este filme cheio de adrenalina, riso e emoção, muita gente boa ainda ficou de fora – e tudo bem, não se pode ter tudo, mesmo.

Além de ter os amigos certos nos lugares certos, Reynolds tem amor de sobra: pelos quadrinhos em geral, pelo Deadpool em particular e, principalmente, por interpretá-lo. Sim, é verdade que ele e Jackman estão ganhando rios de dinheiro - o que sempre deixa tudo muito mais legal - mas é possível ver que ambos estão, acima de tudo, se divertindo de verdade em fazer este filme juntos. Pode procurar uma featurette qualquer no YouTube e você verá que os dois são amigos de longa data e há tempos buscavam uma oportunidade de trabalhar juntos.

Outro amigo no projeto é o diretor Shawn Levy, canadense como Ryan Reynolds, e que já havia trabalhado tanto com ele (em Free Guy e O Projeto Adam) quanto com Hugh Jackman (em Gigantes de Aço). Levy cria sequências muito divertidas e empolgantes de ação, que nos dão a sensação de estar lendo um belo gibi no sofá de casa, com um sorriso no rosto. Até as sequências emocionais funcionam bem – mas, como se trata de um filme de Deadpool, a esculhambação volta a tomar conta em cinco segundos.

Vale um sincero elogio à Marvel/Disney por não ter “domesticado” os personagens ao inseri-los no MCU. D&W está repleto de morte, mutilação, humor de 5ª série e insinuações sexuais. A Disney pode ser careta, mas não é burra: ela sabe que o público não se interessaria por um Deadpool limpinho, censura livre. Chega ao ponto de aceitar ser seguidamente sacaneada sobre seus fracassos e decisões estúpidas. Ponto pra Reynolds, de novo: ele não apenas sabe rir de si mesmo, como sabe ensinar a fazê-lo.

Ao fim do filme, a gente se sente feliz e gostosamente anestesiado com o banquete de piadas, aparições especiais, menções a fases clássicas e mais easter-eggs do que somos capazes de processar – mas, ei, existe uma boa história aqui! Com seu universo em risco de ser apagado por um agente independente da AVT (aquela da série do Loki), Deadpool vai atrás de um Wolverine pra chamar de seu e salvar todo mundo, mas tem que se contentar com uma versão do herói que deixou seus X-Men e seu mundo morrerem, “o pior Wolverine que existe”. Juntos (e com ajuda de alguns amigos), eles vão enfrentar a AVT, a vilã Cassandra Nova, um exército de Deadpools e, diversas e divertidas vezes, um ao outro.

Não chega a ser um primor de roteiro nem ambiciona ser a pedra angular de qualquer coisa, mas não querer reinventar a roda é justamente uma das maiores qualidades deste filme muito merecedor de seu sucesso, que devolve alguma vida à agonizante Marvel do cinema. Resta saber se ela vai aprender suas lições ou ficar eternamente confiando nos milagres de seu Jesus.