28/10/2024

Música & Mágica #3


TRAVIS
The Man Who
1999
 
Não é um fenômeno novo, mas é interessante notar como a tristeza foi praticamente criminalizada. Parece que ninguém tem mais o direito a um dia ruim. A galera da positividade tóxica e seus mantras (“reclamar menos, agradecer mais”) estão fazendo das pessoas uma horda de zumbis com sorrisos lindos, cheios de “namastê” nos lábios... e mortos por dentro.
 
Sim, porque sentir tristeza é normal – inevitável, até – e represá-la é criar trauma para si. O modo mais rápido de acabar com ela é usá-la. Logicamente, chega um momento em que sua vontade de ficar em casa sem ver ninguém pode preocupar as pessoas ao seu redor, então, talvez esteja na hora de lembrar que o sol ainda brilha lá fora e gente que te ama sente sua falta, mas, principalmente, que a vida – e, mais ainda, a sua vida – não acabou.
 
Muito dessa recusa em viver a tristeza vem do medo de sofrer, seja por amor, luto ou frustração. É o mesmo medo que leva muita gente a, por exemplo, jamais querer assumir um compromisso amoroso, porque, enfim, pode dar merda e você acabar sozinho, chorando num canto. Acontece que o sofrimento pelas coisas que se acabam ou dão errado é uma das principais ferramentas que talham nosso espírito. É ele que, de verdade, ensina resiliência, não aquele coach que diz que você não está se esforçando o bastante em se alegrar.
 
Claro que, se a sua tristeza não passa e te faz pensar em desistir da vida, seu problema tem outro nome. Procure ajuda.
 
Para mim, no que diz respeito à arte, a tristeza é a mãe da beleza. Ao contrário de muita gente, eu prefiro escutar música triste quando estou triste – justamente para, como dito acima, viver e gastar a tristeza, até que ela passe. Só que eu também gosto de música triste quando estou feliz, simplesmente porque toda aquela emoção (com perdão pelo desfecho pobre) me emociona.
 
Daí que, desde sempre, artistas considerados melancólicos estão entre os meus favoritos: Morrissey, The Cure, Jeff Buckley, Renato Russo, Maria Bethânia... É uma lista longa e triste (e sei que haverá quem diga que é triste por outros motivos). A música dessa gente já embalou muito chororô, saudade, e aquela tristeza que dava do nada, apenas porque eu não conseguia controlar uma espiral de pensamentos intrusivos – que acabava, felizmente. Por outro lado, também, já “animou” muita faxina e dias ensolarados.
 
Não se preocupe, porém: eu também gosto muito de música alegre, claro.
 
Em 1999, a atenção do mundo se voltou a uma nova “grife” de tristeza, vinda da Escócia: a banda Travis, formada por Fran Healy (voz e guitarra), Andy Dunlop (guitarra), Dougie Payne (baixo), e Neil Primrose (bateria). Após um primeiro álbum, Good Feeling (1997), em que a melancolia se escondia entre as altas guitarras que quase o transformavam em um disco de, sei lá, hard rock – ou, pior ainda, um disco ALEGRE, imagina que absurdo – o Travis vestiu o sobretudo preto e voltou triste, feito um desses dias no Reino Unido em que escurece logo cedo e chove sem parar.

Travis: Dunlop, Healy, Primrose e Payne
 
The Man Who é uma coleção de bonitos temas de “miserê” e dor-de-cotovelo, e a gente só consegue imaginar a bagunça em que a cabeça e o coração de Fran Healy pareciam estar. O circo do pop/rock adora epítetos e rótulos e, na época, chamaram Healy de “o último heterossexual sensível do pop”. Um exagero bobo, mas, seja lá quem teve culpa pelo que em sua vida, o fato é que o homem se rasga todo nas 10 canções do disco, com sonoridade mais acústica que no anterior.
 
O primeiro single de The Man Who foi “Why Does It Always Rain on Me?”, em que Healy se vê infeliz, apesar do sucesso que lhe dizem estar desfrutando. “Eu não consigo dormir, todo mundo fica dizendo que está tudo bem”. Temática e musicalmente, o Travis agora parecia menos Oasis e mais The Smiths – e, de verdade, o disco abre com uma música, “Writing to Reach You”, que indica um certo “bode” dos Gallagher: “o rádio está tocando o de sempre / e o que é uma “wonderwall”, afinal?” O riff introdutório lembra o hit do Oasis e não é por acaso.
 
Não pense, entretanto, que porque é essencialmente triste que seja um disco monótono. O Travis estava inspiradíssimo em suas melodias, e várias delas eram ótimas para cantar junto – um fenômeno que veríamos repetido, por exemplo, cinco anos depois, com a estreia do Keane. Você sabe que está fazendo algo de bom quando Sir Paul McCartney diz que gostaria de ter escrito uma de suas músicas, “Turn” – é fácil imaginar um estádio lotado cantando, em uníssono, as agruras de um desajustado pensando em suicídio.
 
A música “alegre” do disco é “Driftwood”, sobre não fazer escolhas no momento certo e deixar as oportunidades passarem. “Luv”, a oitava faixa, é de uma tristeza abissal, amplificada pela gaita que serpenteia entre os versos de um rompimento amoroso unilateral.
 
Para este que vos escreve, porém, o grande momento do disco é a última faixa. “Slide Show” abre com ruídos de portas batendo e sendo trancadas, seguidos pelos de um carro sendo ligado e se afastando. Ela foi embora. (Esta é a história a mim sugerida, pelo menos). Em casa, ele liga o projetor e fica vendo momentos felizes. Fran Healy começa a cantar: “hoje era um dia de dança e cantoria / os pássaros nas árvores e os sinos estão soando /.../ oh, Deus, espero que eu fique bem / porque eu vou chorar”. Da segunda vez em que se canta o que há de mais próximo de um refrão, um breve e lindo verso de cordas se junta ao violão, e vem o nó na garganta. Portas são trancadas novamente. Pra sempre. Acabou.
 
(Na verdade, “Slide Show” termina aos 3:34, seguida por outros três minutos de silêncio, até que comece a não-creditada “Blue Flashing Light”).
 
Já é folclórica, no meio pop, a história de como o Travis tinha tanta moral, naquele fim de século XX, que apadrinhou a chegada do Coldplay. Hoje, os “afilhados” são incomparavelmente mais ricos e famosos, mas olha a música que o Coldplay nos oferece hoje em dia... Há males que vêm pro bem, enfim. The Man Who é um desses discos capazes de fazer a mim, ateu convicto, pedir que Deus abençoe as almas torturadas deste mundo que são capazes de transformar sua dor em arte e beleza, porque, em minha admiração confessamente mesquinha, eu sou incapaz de desejar que elas se curem.

* * * * *

Travis
The Man Who
Produzido por Nigel Godrich, Ian Grimble e Mike Hedges
Lançado em 24 de maio de 1999

01. Writing to Reach You
02. The Fear
03. As You Are
04. Driftwood
05. The Last Laugh of the Laughter
06. Turn
07. Why Does It Always Rain on Me?
08. Luv
09. She's So Strange
10. Slide Show
Faixa oculta: Blue Flashing Light

23/10/2024

Lanterna Verde (2023), por Geoffrey Thorne


É bastante difícil ser original quando um personagem já tem mais de 80 anos de história, estando presente mês a mês nas bancas, em revistas de linha, versões alternativas, participando de equipes e aparecendo em títulos de outros heróis.

Veja o caso do Lanterna Verde, por exemplo: existem elementos e eventos que são basilares em sua mitologia, aos quais seus autores quase sempre recorrem: a Tropa dos Lanternas Verdes (sempre dispersa e reunida), os Guardiões do Universo (sempre mortos e revividos), a Bateria Central (sempre explodida e reconstruída), Sinestro (sempre oscilando entre inimigo e aliado), e por aí vai.

Se, por um lado, mexer demais na essência dos personagens vai descaracterizá-los e desagradar a leitores, por outro, mantê-los presos sempre numa mesma cadeia de eventos pode levar à mesmice e à saturação (como muitas vezes já levou, diga-se, e não só com este personagem em particular).

O leitor de quadrinhos de super-heróis é um masoquista por opção, sendo capaz de bravamente resistir a uma fase medonha qualquer de seu herói favorito, apenas para buscar a geralmente fugaz satisfação de um lampejo de criatividade por parte dos autores. Veja bem, eu disse “criatividade”, não “originalidade”. A originalidade é bem-vinda, mas não é essencial à arte. Muita coisa muito divertida já foi feita reciclando velhos conceitos ou fazendo homenagens ao trabalho alheio. Não existe nenhum mal nisso. O autor de quadrinhos só não pode se esquecer de contar uma boa história.


O Lanterna Verde até que tem sorte, falando francamente. Após a longa e nem sempre tão inspirada fase de Geoff Johns (muito apoiada em ideias prévias de Alan Moore, provando o que eu disse no parágrafo anterior), seus títulos foram entregues a honestos operários da Nona Arte, como Peter J. Tomasi, Robert Venditti e, agora, Geoffrey Thorne, o homem por trás da fase reunida nestes três encadernados da Panini, que vai de Green Lantern (2021) 1 a 12, além de Green Lantern Annual e o especial DC: Love Is a Battlefield.

A Tropa está reunida em Oa para receber novas instruções, agora que deve funcionar como uma força policial de apoio à recém-criada Federação dos Planetas Unidos, e para o funeral de um Guardião. Durante o evento, ocorre um ataque terrorista: habitantes de um planeta exilado e regido pela magia acusam os Guardiões de roubar o Coração Estelar e impor ordem e ciência contra a vontade dos povos mágicos. O ataque deixa mortos e feridos e, quando o pior já parece ter passado, a Bateria Central explode, deixando vários Lanternas mortos e os sobreviventes sem carga energética. Apenas duas delas não são afetadas: a menina Keli Quintela, vulgo Lanterna Nerd, cuja manopla não se alimenta da Bateria Central; e Sojourner “Jo” Mullein, a Lanterna detetive da ótima minissérie Setor Final (2019), cujo anel tem origem e funcionamento excêntricos, que chega para ajudar a resolver o mistério por trás dos ataques.


Em paralelo, John Stewart e um grupo de Lanternas saem em missão a um setor muito distante de Oa, onde são emboscados. Resgatado pelos habitantes de uma colônia de mineração, John tem que protegê-los de escravagistas e ainda lidar com decisões difíceis sobre abraçar ou rechaçar um novo poder e toda uma nova existência à sua disposição. Todo o equilíbrio do universo depende de seus próximos passos.

Como se nota, Thorne apela sem pudor a alguns velhos truques do “lanternaverso”, mas toma decisões espertas. A mais notável talvez tenha sido integrar a lanterna Jo Mullein – nascida no selo experimental DC Young Animal, de vida curtíssima - ao universo tradicional, de forma natural e pertinente. Suas habilidades como detetive e relações-públicas trazem um frescor à Tropa, em que todo mundo é meio que somente herói de ação ou soldado. Outro ponto a favor é o descanso dado aos muito manjados Hal Jordan e Sinestro, que até aparecem, mas não tomam o centro dos eventos.

Ilustrado pelos artistas Tom Raney, Dexter Soy e Marco Santucci, que, se não brilham, tampouco comprometem, o roteiro de Geoffrey Throne ganha vida em momentos dignos da longa tradição cósmica da DC. Faz falta, porém, um desenhista superstar, como Ivan Reis, (que acompanhou Geoff Johns) ou alguém bem pirado mesmo, feito o J.H. Williams III. A escala de tudo é gigantesca, e só mesmo a falta de uma arte superior impedirá esta saga – com seus desdobramentos ousados, interessantes e cheios de propósito, mas tristemente abandonados pela DC na fase seguinte – de, futuramente, ser mencionada em pé de igualdade com as mais icônicas fases dos gladiadores esmeraldas.