TRAVIS
The Man Who
1999
Não é um fenômeno novo,
mas é interessante notar como a tristeza foi praticamente criminalizada. Parece
que ninguém tem mais o direito a um dia ruim. A galera da positividade tóxica e
seus mantras (“reclamar menos, agradecer mais”) estão fazendo das pessoas uma
horda de zumbis com sorrisos lindos, cheios de “namastê” nos lábios... e mortos
por dentro.
Sim, porque sentir
tristeza é normal – inevitável, até – e represá-la é criar trauma para si. O
modo mais rápido de acabar com ela é usá-la. Logicamente, chega um momento em
que sua vontade de ficar em casa sem ver ninguém pode preocupar as pessoas ao
seu redor, então, talvez esteja na hora de lembrar que o sol ainda brilha lá
fora e gente que te ama sente sua falta, mas, principalmente, que a vida – e,
mais ainda, a sua vida – não acabou.
Muito dessa recusa em
viver a tristeza vem do medo de sofrer, seja por amor, luto ou frustração. É o
mesmo medo que leva muita gente a, por exemplo, jamais querer assumir um
compromisso amoroso, porque, enfim, pode dar merda e você acabar sozinho,
chorando num canto. Acontece que o sofrimento pelas coisas que se acabam ou dão
errado é uma das principais ferramentas que talham nosso espírito. É ele que,
de verdade, ensina resiliência, não aquele coach que diz que você não está se
esforçando o bastante em se alegrar.
Claro que, se a sua
tristeza não passa e te faz pensar em desistir da vida, seu problema tem outro
nome. Procure ajuda.
Para mim, no que diz
respeito à arte, a tristeza é a mãe da beleza. Ao contrário de muita gente, eu
prefiro escutar música triste quando estou triste – justamente para, como dito
acima, viver e gastar a tristeza, até que ela passe. Só que eu também gosto de
música triste quando estou feliz, simplesmente porque toda aquela emoção (com
perdão pelo desfecho pobre) me emociona.
Daí que, desde sempre,
artistas considerados melancólicos estão entre os meus favoritos: Morrissey,
The Cure, Jeff Buckley, Renato Russo, Maria Bethânia... É uma lista longa e
triste (e sei que haverá quem diga que é triste por outros motivos). A música
dessa gente já embalou muito chororô, saudade, e aquela tristeza que dava do
nada, apenas porque eu não conseguia controlar uma espiral de pensamentos
intrusivos – que acabava, felizmente. Por outro lado, também, já “animou” muita
faxina e dias ensolarados.
Não se preocupe, porém: eu
também gosto muito de música alegre, claro.
Em 1999, a atenção do
mundo se voltou a uma nova “grife” de tristeza, vinda da Escócia: a banda
Travis, formada por Fran Healy (voz e guitarra), Andy Dunlop (guitarra), Dougie
Payne (baixo), e Neil Primrose (bateria). Após um primeiro álbum, Good Feeling
(1997), em que a melancolia se escondia entre as altas guitarras que quase o
transformavam em um disco de, sei lá, hard rock – ou, pior ainda, um disco
ALEGRE, imagina que absurdo – o Travis vestiu o sobretudo preto e voltou triste,
feito um desses dias no Reino Unido em que escurece logo cedo e chove sem
parar.
Travis: Dunlop, Healy, Primrose e Payne
The Man Who é uma
coleção de bonitos temas de “miserê” e dor-de-cotovelo, e a gente só consegue
imaginar a bagunça em que a cabeça e o coração de Fran Healy pareciam estar. O
circo do pop/rock adora epítetos e rótulos e, na época, chamaram Healy de “o último
heterossexual sensível do pop”. Um exagero bobo, mas, seja lá quem teve culpa
pelo que em sua vida, o fato é que o homem se rasga todo nas 10 canções do
disco, com sonoridade mais acústica que no anterior.
O primeiro single de The
Man Who foi “Why Does It Always Rain on Me?”, em que Healy se vê infeliz, apesar
do sucesso que lhe dizem estar desfrutando. “Eu não consigo dormir, todo mundo
fica dizendo que está tudo bem”. Temática e musicalmente, o Travis agora
parecia menos Oasis e mais The Smiths – e, de verdade, o disco abre com uma
música, “Writing to Reach You”, que indica um certo “bode” dos Gallagher: “o
rádio está tocando o de sempre / e o que é uma “wonderwall”, afinal?” O riff
introdutório lembra o hit do Oasis e não é por acaso.
Não pense, entretanto, que porque é essencialmente triste que seja um disco monótono. O Travis estava
inspiradíssimo em suas melodias, e várias delas eram ótimas para cantar junto –
um fenômeno que veríamos repetido, por exemplo, cinco anos depois, com a
estreia do Keane. Você sabe que está fazendo algo de bom quando Sir Paul
McCartney diz que gostaria de ter escrito uma de suas músicas, “Turn” – é fácil
imaginar um estádio lotado cantando, em uníssono, as agruras de um desajustado
pensando em suicídio.
A música “alegre” do
disco é “Driftwood”, sobre não fazer escolhas no momento certo e deixar as
oportunidades passarem. “Luv”, a oitava faixa, é de uma tristeza abissal, amplificada
pela gaita que serpenteia entre os versos de um rompimento amoroso unilateral.
Para este que vos
escreve, porém, o grande momento do disco é a última faixa. “Slide Show” abre
com ruídos de portas batendo e sendo trancadas, seguidos pelos de um carro
sendo ligado e se afastando. Ela foi embora. (Esta é a história a mim sugerida,
pelo menos). Em casa, ele liga o projetor e fica vendo momentos felizes. Fran
Healy começa a cantar: “hoje era um dia de dança e cantoria / os pássaros nas
árvores e os sinos estão soando /.../ oh, Deus, espero que eu fique bem /
porque eu vou chorar”. Da segunda vez em que se canta o que há de mais próximo
de um refrão, um breve e lindo verso de cordas se junta ao violão, e vem o nó na
garganta. Portas são trancadas novamente. Pra sempre. Acabou.
(Na verdade, “Slide
Show” termina aos 3:34, seguida por outros três minutos de silêncio, até que
comece a não-creditada “Blue Flashing Light”).
Já é folclórica, no
meio pop, a história de como o Travis tinha tanta moral, naquele fim de século XX,
que apadrinhou a chegada do Coldplay. Hoje, os “afilhados” são
incomparavelmente mais ricos e famosos, mas olha a música que o Coldplay nos
oferece hoje em dia... Há males que vêm pro bem, enfim. The Man Who é um desses
discos capazes de fazer a mim, ateu convicto, pedir que Deus abençoe as almas
torturadas deste mundo que são capazes de transformar sua dor em arte e beleza,
porque, em minha admiração confessamente mesquinha, eu sou incapaz de desejar que
elas se curem.
* * * * *
Travis
The Man Who
Produzido por Nigel Godrich, Ian Grimble e Mike Hedges
Lançado em 24 de maio de 1999
01. Writing to Reach You
02. The Fear
03. As You Are
04. Driftwood
05. The Last Laugh of the Laughter
06. Turn
07. Why Does It Always Rain on Me?
08. Luv
09. She's So Strange
10. Slide Show
Faixa oculta: Blue Flashing Light
5 comentários:
Ouvia bastante o Travis até o The Boy with No Name. Tipo do som que evoca aquelas maravilhosas paisagens escocesas - https://web.archive.org/web/20140126141126/http://p.vtourist.com/1427384-North_Trotternish_Isle_of_Skye_Scotland_2003-Scotland.jpg
Musicalmente, sempre preferi o Travis e o Belle & Sebastian (este, proibitivo para dias de ressaca) a Radiohead e Coldplay. Preciso reouvir os discos. E o disco novo, que só agora soube da existência...
Belíssimo texto, meu chapa.
DOGGMA, meu velho, o Belle & Sebastian também está entre meus indies favoritos e já ganhou texto sobre o Dear Catastrophe Waitress (mas não lembro se aqui ou no A Era do Ócio). Ainda acompanho com algum interesse o que lançam, mesmo achando que o auge deles já ficou pra trás. Abraço!
Papeávamos sobre o Travis e os caras tocando em Sampa. E sold out.
https://www.uol.com.br/splash/noticias/2024/11/06/travis-faz-festa-nostalgica-do-britpop-e-exalta-oasis-em-sp-grande-dia.htm
Assim como muitos, conheci a banda Travis pelo icônico clip da música Sing, me chamou a atenção aquela refeição caótica e a calmaria do rapaz na mesa (até hoje me chateio por ele ter se melado no final), através desse clipe tive o prazer de me aprofundar e conhecer mais sobre o trabalho deles, além de ampliar minha visão para outras bandas como Sterophonics, keane, bandas essas que trazem aquela melancolia que, de uma certa forma, traz um conforto, como exatamente dito no início texto.
Travis, Cold play, Rádio Head, Keane, Match box twenty entre outros muitas vezes me tirava da tristeza com suas lindas canções, colocava meus fones de ouvido e a cabeça que estava a milhão começa a centralizar ao som das melodias deles. Naquela hora tinha a certeza que eles me compreendiam, isso me trazia de volta. Excelente texto amigo.
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