04/11/2024

A Substância

 

A crítica à obsessão por beleza e juventude na sociedade em geral e na indústria de entretenimento em particular já não é novidade. O próprio cinema, onde essa obsessão ainda vigora, já fez sua cota de autocrítica. A Substância é seu mais recente esforço, que se destaca por contar com uma protagonista (Demi Moore) que viveu a pressão para manter-se com o rosto e o corpo jovens que o público supostamente queria ver – normalmente, uma opinião de homens que não viam qualquer problema neles próprios envelhecendo ou embarangando.

A carreira de Elisabeth Sparkle (belo nome para uma drag queen) da fama mundial ao semi-ostracismo é resumida, de forma bastante sucinta e esperta, na sequência de abertura, quando ganha sua estrela na Calçada da Fama de Hollywood – em meio a comentários elogiosos sobre sua beleza e talento – e, conforme avançam os anos passam de maneira acelerada, o tom dos comentários ao redor da placa muda para coisas como “lembra dela?”. De desejado ponto de visitação, vira um lugar por onde as pessoas passam sem qualquer atenção ou cuidado.

Ao completar 50 anos, Elisabeth é “convidada a sair” da emissora onde comanda um programa de fitness da chamada “melhor idade”, em favor do que a direção de seu canal (na pessoa do asqueroso personagem de Dennis Quaid) deseja em seu lugar: alguém mais jovem, mais bonita e capaz de renovar a audiência em baixa. Aos 50, Elisabeth está linda, lúcida e produtiva, mas percebe que se tornou um estorvo, num meio onde a velhice é um pecado imperdoável.

Enquanto lamenta sua nova condição de “idosa” desempregada, ela vê um anúncio de algo chamado simplesmente de A Substância, que promete (mediante instruções de uso bastante específicas) entregar uma nova versão do usuário: mais jovem, mais bonita – melhor, enfim. Levada a um endereço tenebroso, Elisabeth pega seu kit, vai pra casa e, claro submete-se ao misterioso tratamento.

Paramos por aqui, porque dar qualquer detalhe a partir deste ponto estragaria muitas surpresas do filme da diretora francesa Coralie Fargeat (que, antes, havia dirigido apenas um outro filme, o thriller Vingança, de 2017). No Festival de Cannes deste ano, A Substância estava indicado à Palma de Ouro, e saiu com o prêmio de Melhor Roteiro. Se sentir que já viu algum filme com trama bem parecida, você deve estar certo. Mesmo sem ideias tão novas assim, porém, A Substância desvia de soluções óbvias e sua principal virtude é não pisar no freio: quando você achar que já chegou ao limite da maluquice e da nojeira, ele vai lá e empurra o limite um pouco pra mais longe. De certa forma, testa nosso voyeurismo sádico, ao sugerir que chega ao fim algumas vezes – e aí, pof!, tome mais uma sequência ultrajante na cara!

Apesar do gore deslavado, a maravilhosa cinematografia, com seus cenários e planos de câmera, rende homenagem a clássicos do terror. É impossível, por exemplo, ver as cenas nos corredores da emissora e não pensar no hotel de O Iluminado (1980). Como Pearl (2023), outro filme de terror recente carregado de esmero visual, A Substância é bem bonito de assistir – isto é, até que comecem os previsíveis problemas de Elisabeth, que já qualificam o filme como um neoclássico do horror corporal como veículo de crítica social, à moda David Cronenberg.

É gratificante ver Demi Moore, uma atriz que já experimentou todo tipo de altos e baixos na profissão, retornar à relevância com tal categoria, a serviço de uma personagem com a qual certamente se identifica (tendo ela mesma se submetido a transformações artificiais que nem sempre deram certo). Além disso, com o que muita gente já chama de melhor atuação de sua carreira, Demi prova o argumento central do filme, o de que é apenas natural que a juventude se acabe, sem que isso implique em juízo do seu valor ou talento. Rejeitar a passagem do tempo, em nome da vaidade ou de uma utopia de juventude eterna, é terreno fértil para o ridículo e o grotesco. Com A Substância, Demi e Coralie deixaram pouca margem para mal-entendidos. É um filme que não faz prisioneiros, exige coragem pra ser feito e visto. Arme-se de muita!

3 comentários:

DigoOquePenso disse...

Talvez os exageros das cenas finais, façam a quem não presta atenção no contexto da história, sentir uma certa estranheza e ou talvez comparar com um filme trash, mas quem nunca se se sentiu chocado com as inúmeras plásticas sub celebridades como as do Kem humano e tantas outras pessoas que buscam a bela a qualquer custo, e viram monstros de circo.

Marlo de Sousa disse...

Aquelas cenas finais me deixaram rindo de nervoso, tamanho o exagero, mas o que fica na cabeça é o tema central, bem como a interpretação da Demi. Quanto às subcelebridades "touched by an angel", como dizem em Drag Race, algumas parecem ter sido tocadas por aquele que se diz anjo, mas é um fanfarrão: o tio Lu. =D

doggma disse...

Finalmente assisti e agora dá pra comentar.

Como sempre, resenha sensacional. A cena de abertura é mesmo muito bem sacada, dizendo muito a partir de uma ideia simples. Tanto a cinematografia quanto a fotografia são impecáveis. Demi Moore no topo do jogo ao abraçar a transgressão, nível Ashley Judd em Possuídos e Gina Gershon em Killer Joe.

Curioso o fato de levar melhor roteiro em Cannes quando meus únicos problemas com filme estão aí, rs...

Esteticamente, a história transita pelos anos 1970 (Elisabeth), pelos 1980 (Sue), pelos dias atuais (pen drive) e além (engenharia genética de ponta), o que causa certa desorientação de início. Até aí, beleza, exercício de estilo. Mas fica estranho abordar a fama e o culto à celebridade sem mencionar Internet e mídias sociais.

Também não há qualquer menção aos valores e pagamentos de um tratamento que facilmente custaria milhões de dólares o pack. Fora a ausência de instruções para o manuseio daquilo, dos pontos, das punções, transfusões, etc.

E os corpos jogados no chão de um banheiro por uma semana inteira (no caso da 'Beth, de olhos abertos ainda). A sequência final mergulha de cabeça no farsesco, quase virando uma fábula gore, o que é interessante de assistir, mas pulando/omitindo mais etapas práticas em nome da mensagem - nunca que aquela Mulher Elefante passaria de boa pela segurança do estúdio, pelos funcionários, enfim...

No geral, boa diversão. Mas pra mim, A Morte lhe Cai Bem, do Zemeckis, segue imbatível na categoria "body horror sobre obsessão pela beleza e pela juventude". E lá ainda era uma comédia!

Abração.