19/11/2024

Pinguim


Mesmo com o selo HBO de qualidade (quase sempre, uma garantia de produtos minimamente bem-cuidados), nem o mais otimista espectador poderia prever que uma série do Pinguim, adaptada do filme Batman (2022), de Matt Reeves, estaria entre as melhores coisas vistas na televisão nesta década. Ninguém estava preparado para tamanha profundidade psicológica ou tão adequada atmosfera noir. Inclusive, muita gente deve ter imaginado que havia grande chance de esta série estragar o legado de Batman, mas ela não apenas subverte essa expectativa como, na verdade, deixa o universo do filme mais rico e interessante.

Vamos logo falar do elefante no meio da sala: eu não vejo problema na ausência completa do Batman, mesmo em diálogos. Entendo o personagem do filme como sendo um vigilante em início de carreira, o que pode perfeitamente explicar por que ele deixaria de saber ou não consiga atuar sobre os esquemas vistos na série. Ele ainda está aprendendo a ser o Batman – talvez subestimando a escala e o alcance do crime na cidade, por assim dizer.

De maneira semelhante, tampouco o Pinguim já é aquele bandidão estabelecido dos quadrinhos: neste universo e neste momento, está mais para empregadinho do que para chefão. No calor dos eventos depois da morte de Carmine Falcone, em Batman, Oswald “Oz” Cobb tenta se apoderar de um trunfo que pode permitir-lhe alguma ascensão no mundo do crime em Gotham. Ao invadir o escritório de seu finado patrão, porém, ele age no calor da emoção e do orgulho, cometendo o ato que põe em marcha seu plano - que ele nem sabe muito bem ainda qual é.


Daí por diante, o instinto de sobrevivência e a habilidade de Oz para contar mentiras (ou meias-verdades convenientes) serão testados a cada episódio, porque a única coisa que supera sua capacidade de escapar de situações mortais é sua tendência de cair em outra mais à frente (ou criá-las ele próprio). Todo o submundo de Gotham sabe que a palavra de Oz Cobb vale muito pouco, mas, de alguma forma, ele consegue transitar entre lados rivais, jurando lealdade a quem lhe pode ser mais imediatamente útil, apenas para trair seus “aliados” logo em seguida.

Lembra do selo HBO de qualidade a que me referi lá no começo? Pois bem, ele é perceptível em cada fotograma de cada um dos oito episódios de Pinguim. Desde os cenários daquela que talvez seja a melhor Gotham City das telas, passando pelo roteiro que privilegia o clima noir da história, até desembocar nas atuações simplesmente acachapantes do elenco principal, tudo é de altíssima qualidade. Em sua maquiagem espantosa, Colin Farrell já havia “sumido” em seu personagem no filme de 2022, mas o que ele alcança aqui, com maior tempo de tela e desenvolvimento, certamente o conduzirá a uma gorda temporada de prêmios. Oz é o mafioso mais carismático da TV desde Walter White, de Breaking Bad.

Seu mais constante parceiro de cena, a revelação Rhenzy Feliz, intérprete do inesperado sidekick Victor Aguilar, tem a inocência hesitante de quem se vê arrastado pra dentro de um mundo que não é o seu e se deslumbra com o que pode conseguir dele, mas que abomina a ideia de recorrer à violência, ainda que isso nem sempre o detenha.


A grande e magnética surpresa da série, porém, é Cristin Milioti, intérprete de Sofia Falcone. Desde sua primeira cena, é impossível desviar nossos olhos dos seus, dois globos repletos de trauma, inteligência e rancor – inclusive, contra o Pinguim. Fosse outra série, eu talvez estivesse tentado a dizer que ela rouba a série para si, mas a concorrência de Milioti é duríssima: além de Farrell e Feliz, quem também dá um show é Deirdre O’Connell, no papel de Francis Cobb, a sequelada mãe de Oswald, que mantém com ele uma complexa relação de dependência e domínio.

Todos estes personagens estão tão carregados de dualidade moral, que fica difícil eleger um favorito. A estes, junta-se um elenco notável de coadjuvantes, incluindo Michael Kelly, Clancy Brown, Shohreh Aghdashloo e Mark Strong, entre outros. Com seu andar trôpego e conversinha de “homem do povo”, Oz vai colocando todos no bolso, um por vez, e pondo ideias na nossa cabeça: “pelo menos, ele é bom filho”, “gosta do Victor”, “cuida do povo do bairro”, mas, não se engane: o Pinguim é um vilão, não é um anti-herói. Ponto pra todo mundo que se lembrou disso, ao escrever.


Assistindo a esta série, a gente, também, se sente meio enganado pelo “bom” Cobb, porque todas as nossas certezas e expectativas – cultivadas por meio de nossas experiências com clichês de quadrinhos, filmes e séries de super-heróis – são formidavelmente traídas por ela, com suas sutilezas dramáticas e sua descida em espiral sem freios a lugares muito escuros da alma humana. O ruim de que ela seja tão boa é que seu merecido sucesso jogará nossas expectativas muito para cima – não só em relação a uma possível segunda temporada, como em relação a qualquer outro possível/provável derivado deste universo, incluindo aí o segundo filme do Batman, prometido para 2026.

Não é o DCU que temos, mas certamente é aquele que queremos e merecemos. A vida em Gotham não é tão madrasta assim, afinal.

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