27/11/2024

Velvet

Com extensa folha corrida de bons serviços prestados à Nona Arte, há mais de duas décadas, o roteirista americano Ed Brubaker teve passagens expressivas na DC e na Marvel, tendo escrito fases marcantes para diversos personagens, como Batman, Capitão América e X-Men. Já há quase igualmente tanto tempo, desenvolve um sólido trabalho autoral – no qual está quase sempre acompanhado pelo habitual artista parceiro, Sean Phillips.

Logo que começou a trabalhar com o Capitão América, Brubaker teve a companhia de Steve Epting e, com ele, discutia as ideias que vinha tendo para uma história de espionagem protagonizada por uma mulher. Epting prontamente se convidou a ilustrar a tal história, que só veria a luz do dia quase uma década depois, por conta das obrigações contratuais de ambos – mas, olha, como valeu a pena esperar tanto: originalmente lançado entre 2013 e 2016, com três atos em 15 partes, Velvet é um gibizaço, em 400 páginas de tirar o fôlego!

Velvet começa em 1973, um tempo em que não havia internet ou celulares, o que deixa tudo muito mais interessante no trabalho de espionagem – no sentido de que, sem um aparato high-tech (sendo a única exceção um protótipo de wingsuit), a espionagem era quase uma arte, na qual alguém tinha que ser muito bom pra nela se criar. Velvet Templeton era muito boa, dotada de memória fotográfica e habilidades marciais e linguísticas incomparáveis, mas, após alguns incidentes, acabou confinada a uma mesa na sede da CAR-7, a mais secreta entre as agências secretas britânicas.


Quando um agente de campo e amigo próximo de Velvet é morto após uma missão, ela não engole as conclusões da perícia e decide investigar por conta própria, mas, ao fazê-lo, é emboscada e acaba na mira da própria CAR-7. Meio enferrujada pelos dez anos fora de ação e sem saber em quem confiar, ela refaz os passos do amigo morto e começa a puxar os fios de uma conspiração muito maior do que ela suspeitava, além de descobrir novas verdades sobre seu próprio passado.

Mulheres como espiãs não são novidade, mas, ainda são minoria: a elas, normalmente reservam o papel de vítima ou de parceira (seja de ação ou de cama) de um heroico espião qualquer. Por exemplo, é raro que alguém lembre o nome de uma Bond Girl, por mais que ela seja durona ou sagaz. A fama e o mérito são sempre exclusivos de James Bond. Por isso é que Velvet, dona de sua própria história, não apenas é durona e sagaz: ela herda de Bond a disponibilidade (e a disposição) sexual. Para aprofundar-se nos detalhes de várias operações secretas, ela foi capaz de dormir com todos os agentes de campo, deixando cada um deles pensar que era o único. Velvet não hesita em dormir com alvos, tampouco. Mesmo assim, a gente reconhece nela um senso prático de dever tão forte, que mesmo saber de tudo isso não nos faz questionar sua moralidade ou seu valor. Se James pode, por que Velvet não poderia?

O melhor é que tudo acontece sem feminismo didático, embora seja uma abordagem claramente feminista. Brubaker, porém, não alivia em nada para Velvet só porque ela é mulher: ela cai, se esfola toda, dá e toma tiro, dá e toma pancada, e troca socos com homens em pé de igualdade, quando não em clara vantagem. Ela é geralmente mais esperta que todo mundo à sua volta, mas ainda comete suas burradas. É uma pessoa normal (o que inclui, sim, fazer sexo apenas para conseguir algo que precisa ou deseja).


Se a escrita de Brubaker é afiada (no posfácio, ele reconhece que foi bom Velvet não ter saído de imediato, pois assim teve tempo de aperfeiçoar seu conceito), o mesmo pode ser dito sobre a arte de Steve Epting: com boa parte da trama desenrolando-se à noite ou em ambientes pouco iluminados, Epting esbanja domínio das sombras. Seus personagens possuem traços físicos mais distintos do que normalmente veríamos, por exemplo, em aventuras de super-heróis, e as sequências de luta e perseguição são cheias de movimento.

Velvet tem, ainda, uma das conclusões mais satisfatórias já vistas em uma obra de Brubaker - e não é que ele o faça mal em outras, é só que esta não tem aquela suspensão súbita que costuma caracterizar seus últimos quadros, deixando um “mas, e aí?” na cabeça do leitor. Ele até usa a palavra “fim”, artifício que costuma dispensar em várias de suas histórias.

Embora seja concretamente um fim, uma nova aventura de Velvet Templeton não está descartada pelo autor, cuja publicação pela Editora Mino segue firme e forte no Brasil. Com a proximidade do lançamento da série do Prime Video baseada em Criminal (prevista para 2025), Brubaker e Phillips devem gozar de merecido reconhecimento mundial, para muito além das páginas de suas graphic novels. Não deve demorar até que Velvet faça crescer os olhos de algum produtor de TV ou cinema. Parece um caminho bastante natural.

19/11/2024

Pinguim


Mesmo com o selo HBO de qualidade (quase sempre, uma garantia de produtos minimamente bem-cuidados), nem o mais otimista espectador poderia prever que uma série do Pinguim, adaptada do filme Batman (2022), de Matt Reeves, estaria entre as melhores coisas vistas na televisão nesta década. Ninguém estava preparado para tamanha profundidade psicológica ou tão adequada atmosfera noir. Inclusive, muita gente deve ter imaginado que havia grande chance de esta série estragar o legado de Batman, mas ela não apenas subverte essa expectativa como, na verdade, deixa o universo do filme mais rico e interessante.

Vamos logo falar do elefante no meio da sala: eu não vejo problema na ausência completa do Batman, mesmo em diálogos. Entendo o personagem do filme como sendo um vigilante em início de carreira, o que pode perfeitamente explicar por que ele deixaria de saber ou não consiga atuar sobre os esquemas vistos na série. Ele ainda está aprendendo a ser o Batman – talvez subestimando a escala e o alcance do crime na cidade, por assim dizer.

De maneira semelhante, tampouco o Pinguim já é aquele bandidão estabelecido dos quadrinhos: neste universo e neste momento, está mais para empregadinho do que para chefão. No calor dos eventos depois da morte de Carmine Falcone, em Batman, Oswald “Oz” Cobb tenta se apoderar de um trunfo que pode permitir-lhe alguma ascensão no mundo do crime em Gotham. Ao invadir o escritório de seu finado patrão, porém, ele age no calor da emoção e do orgulho, cometendo o ato que põe em marcha seu plano - que ele nem sabe muito bem ainda qual é.


Daí por diante, o instinto de sobrevivência e a habilidade de Oz para contar mentiras (ou meias-verdades convenientes) serão testados a cada episódio, porque a única coisa que supera sua capacidade de escapar de situações mortais é sua tendência de cair em outra mais à frente (ou criá-las ele próprio). Todo o submundo de Gotham sabe que a palavra de Oz Cobb vale muito pouco, mas, de alguma forma, ele consegue transitar entre lados rivais, jurando lealdade a quem lhe pode ser mais imediatamente útil, apenas para trair seus “aliados” logo em seguida.

Lembra do selo HBO de qualidade a que me referi lá no começo? Pois bem, ele é perceptível em cada fotograma de cada um dos oito episódios de Pinguim. Desde os cenários daquela que talvez seja a melhor Gotham City das telas, passando pelo roteiro que privilegia o clima noir da história, até desembocar nas atuações simplesmente acachapantes do elenco principal, tudo é de altíssima qualidade. Em sua maquiagem espantosa, Colin Farrell já havia “sumido” em seu personagem no filme de 2022, mas o que ele alcança aqui, com maior tempo de tela e desenvolvimento, certamente o conduzirá a uma gorda temporada de prêmios. Oz é o mafioso mais carismático da TV desde Walter White, de Breaking Bad.

Seu mais constante parceiro de cena, a revelação Rhenzy Feliz, intérprete do inesperado sidekick Victor Aguilar, tem a inocência hesitante de quem se vê arrastado pra dentro de um mundo que não é o seu e se deslumbra com o que pode conseguir dele, mas que abomina a ideia de recorrer à violência, ainda que isso nem sempre o detenha.


A grande e magnética surpresa da série, porém, é Cristin Milioti, intérprete de Sofia Falcone. Desde sua primeira cena, é impossível desviar nossos olhos dos seus, dois globos repletos de trauma, inteligência e rancor – inclusive, contra o Pinguim. Fosse outra série, eu talvez estivesse tentado a dizer que ela rouba a série para si, mas a concorrência de Milioti é duríssima: além de Farrell e Feliz, quem também dá um show é Deirdre O’Connell, no papel de Francis Cobb, a sequelada mãe de Oswald, que mantém com ele uma complexa relação de dependência e domínio.

Todos estes personagens estão tão carregados de dualidade moral, que fica difícil eleger um favorito. A estes, junta-se um elenco notável de coadjuvantes, incluindo Michael Kelly, Clancy Brown, Shohreh Aghdashloo e Mark Strong, entre outros. Com seu andar trôpego e conversinha de “homem do povo”, Oz vai colocando todos no bolso, um por vez, e pondo ideias na nossa cabeça: “pelo menos, ele é bom filho”, “gosta do Victor”, “cuida do povo do bairro”, mas, não se engane: o Pinguim é um vilão, não é um anti-herói. Ponto pra todo mundo que se lembrou disso, ao escrever.


Assistindo a esta série, a gente, também, se sente meio enganado pelo “bom” Cobb, porque todas as nossas certezas e expectativas – cultivadas por meio de nossas experiências com clichês de quadrinhos, filmes e séries de super-heróis – são formidavelmente traídas por ela, com suas sutilezas dramáticas e sua descida em espiral sem freios a lugares muito escuros da alma humana. O ruim de que ela seja tão boa é que seu merecido sucesso jogará nossas expectativas muito para cima – não só em relação a uma possível segunda temporada, como em relação a qualquer outro possível/provável derivado deste universo, incluindo aí o segundo filme do Batman, prometido para 2026.

Não é o DCU que temos, mas certamente é aquele que queremos e merecemos. A vida em Gotham não é tão madrasta assim, afinal.

04/11/2024

A Substância

 

A crítica à obsessão por beleza e juventude na sociedade em geral e na indústria de entretenimento em particular já não é novidade. O próprio cinema, onde essa obsessão ainda vigora, já fez sua cota de autocrítica. A Substância é seu mais recente esforço, que se destaca por contar com uma protagonista (Demi Moore) que viveu a pressão para manter-se com o rosto e o corpo jovens que o público supostamente queria ver – normalmente, uma opinião de homens que não viam qualquer problema neles próprios envelhecendo ou embarangando.

A carreira de Elisabeth Sparkle (belo nome para uma drag queen) da fama mundial ao semi-ostracismo é resumida, de forma bastante sucinta e esperta, na sequência de abertura, quando ganha sua estrela na Calçada da Fama de Hollywood – em meio a comentários elogiosos sobre sua beleza e talento – e, conforme avançam os anos passam de maneira acelerada, o tom dos comentários ao redor da placa muda para coisas como “lembra dela?”. De desejado ponto de visitação, vira um lugar por onde as pessoas passam sem qualquer atenção ou cuidado.

Ao completar 50 anos, Elisabeth é “convidada a sair” da emissora onde comanda um programa de fitness da chamada “melhor idade”, em favor do que a direção de seu canal (na pessoa do asqueroso personagem de Dennis Quaid) deseja em seu lugar: alguém mais jovem, mais bonita e capaz de renovar a audiência em baixa. Aos 50, Elisabeth está linda, lúcida e produtiva, mas percebe que se tornou um estorvo, num meio onde a velhice é um pecado imperdoável.

Enquanto lamenta sua nova condição de “idosa” desempregada, ela vê um anúncio de algo chamado simplesmente de A Substância, que promete (mediante instruções de uso bastante específicas) entregar uma nova versão do usuário: mais jovem, mais bonita – melhor, enfim. Levada a um endereço tenebroso, Elisabeth pega seu kit, vai pra casa e, claro submete-se ao misterioso tratamento.

Paramos por aqui, porque dar qualquer detalhe a partir deste ponto estragaria muitas surpresas do filme da diretora francesa Coralie Fargeat (que, antes, havia dirigido apenas um outro filme, o thriller Vingança, de 2017). No Festival de Cannes deste ano, A Substância estava indicado à Palma de Ouro, e saiu com o prêmio de Melhor Roteiro. Se sentir que já viu algum filme com trama bem parecida, você deve estar certo. Mesmo sem ideias tão novas assim, porém, A Substância desvia de soluções óbvias e sua principal virtude é não pisar no freio: quando você achar que já chegou ao limite da maluquice e da nojeira, ele vai lá e empurra o limite um pouco pra mais longe. De certa forma, testa nosso voyeurismo sádico, ao sugerir que chega ao fim algumas vezes – e aí, pof!, tome mais uma sequência ultrajante na cara!

Apesar do gore deslavado, a maravilhosa cinematografia, com seus cenários e planos de câmera, rende homenagem a clássicos do terror. É impossível, por exemplo, ver as cenas nos corredores da emissora e não pensar no hotel de O Iluminado (1980). Como Pearl (2023), outro filme de terror recente carregado de esmero visual, A Substância é bem bonito de assistir – isto é, até que comecem os previsíveis problemas de Elisabeth, que já qualificam o filme como um neoclássico do horror corporal como veículo de crítica social, à moda David Cronenberg.

É gratificante ver Demi Moore, uma atriz que já experimentou todo tipo de altos e baixos na profissão, retornar à relevância com tal categoria, a serviço de uma personagem com a qual certamente se identifica (tendo ela mesma se submetido a transformações artificiais que nem sempre deram certo). Além disso, com o que muita gente já chama de melhor atuação de sua carreira, Demi prova o argumento central do filme, o de que é apenas natural que a juventude se acabe, sem que isso implique em juízo do seu valor ou talento. Rejeitar a passagem do tempo, em nome da vaidade ou de uma utopia de juventude eterna, é terreno fértil para o ridículo e o grotesco. Com A Substância, Demi e Coralie deixaram pouca margem para mal-entendidos. É um filme que não faz prisioneiros, exige coragem pra ser feito e visto. Arme-se de muita!