Participe da Promoção Starman!
Os temas centrais da literatura de Carla Madeira parecem ser o perdão e a dificuldade (natural, eu diria) que temos em estabelecer uma única narrativa como sendo A Verdade: o que existe são versões da verdade, dependendo de quem vê, como vê, onde vê e por que vê. Assim como no acachapante Tudo é Rio (2014), este Véspera (2021) está cheio de personagens que amam demais e odeiam mais ainda. É tortuoso o caminho até uma redenção, se é que se alcança alguma, porque Carla entende que espirais de sentimentos fortes são como um caminhão sem freio na ladeira.
Na abertura do livro, Vedina – presa num casamento horrível com Abel, vivendo uma rotina de mútuo desprezo que ambos se recusam a abandonar – num lapso de absoluto destempero (movido pelo rancor do marido e impaciência com uma criança apenas sendo criança), abandona o filho pequeno às margens de uma avenida. Ao ver, pelo retrovisor, o choro assustado de Augusto, ela se arrepende e, sem poder parar na avenida mão única, dá a volta no quarteirão para pegá-lo de volta, mas, atrasada por um caminhão de lixo e alguns pedestres, não encontra o menino onde o deixou. Antes, crendo-se cheia de coragem para finalmente enfrentar Abel e exigir que saísse de casa, Vedina está, agora, cheia de medo de encará-lo. Como vai explicar ao marido que abandonou e perdeu seu filho?
Corta pro passado distante, onde, aos poucos, somos apresentados aos personagens cujas histórias nos conduzirão até o fatídico surto de Vedina – em especial, a de dois gêmeos, batizados de Caim e Abel (sim, ele mesmo, seu marido) em outro lapso de raiva mal-direcionada. Sobre a cabeça da fervorosa Custódia, sua mãe, paira o eterno temor de que os filhos repitam a tragédia bíblica, mas os meninos crescem muito unidos, sendo tratados e até chamados igualmente: por medo de dar mole pro azar, Custódia prefere tratá-los por Abel e Abelzinho. Quando precisam entrar na escola, porém, não há mais como negar o disparate registrado em cartório: Caim descobre seu nome real, é colocado longe de Abel (ainda que na mesma sala de aula) e um abismo imenso começa a ser entalhado entre os gêmeos.
Este segundo front narrativo é o único que realmente avança. Presa na imobilidade redundante da culpa, Vedina, no presente, fica rodopiando sobre as coisas que a levaram a ser uma mãe tão pouco amorosa para Augusto. As horas (e os capítulos) vão passando, mas ela não encontra o menino, não conta o que aconteceu ao marido, não aciona a polícia. Apenas fica ali, em perene “tela azul da morte”.
Já no passado, as coisas pegam fogo. É notável a tensão na escrita de Carla Madeira. O ódio é sempre visceral. A frieza é sempre cortante – e não é que a escritora se dedique apenas a escrever sobre pessoas e sentimentos horríveis: é que ela sabe que todo mundo traz luz e sombra dentro de si. O bom marido pode ser um pai castrador. O filho bom-moço pode ser um namorado de merda. A mãe zelosa pode ser uma controladora doentia. Ninguém é somente uma coisa e, como sabemos, todo mundo nesta vida só quer ser amado, mas, às vezes, não sabemos como nos abrir pro amor. Noutras, confundimos outras coisas com amor ou não aceitamos ser acertados onde mais dói, um risco constante.
Por isso é que os personagens de Véspera erram tanto: estão cheios de certezas, e a certeza é a mãe do engano. Uma enche a boca de “bêbado imprestável” ao falar do marido cuja libido incendiária lhe ofende, sem enxergar o homem apaixonado e dedicado por baixo; um outro deseja tanto uma mulher comprometida que comete duas besteiras enormes em sequência, forçando amor em uma e negando amor em outra; a que se afastou da sufocante casa dos pais, onde não se sentia amada, tem que ouvir calada as críticas dos que ficaram. A vida é, para todos, uma constante busca pela felicidade, mas, quase sempre, ela exige mudança, essa coisa que causa tanto medo e consequências imprevisíveis.
Véspera tem um final abrupto, num momento em que um conflito enorme se desenha, mas é interrompido pela resolução do seu drama central – e ela é mais surpreendente e polêmica do que esperamos, porque advoga que garantir a felicidade (a própria e a alheia) parece prioridade acima de qualquer lei ou medo de julgamento humano ou divino. É a caridade extrema, assim como o perdão extremo foi ponto polêmico da conclusão de Tudo é Rio. Como ele, Véspera é um livro de leitura ágil, magnética, que cativa porque seus dramas (até mesmo – talvez, principalmente – os mais feios e vergonhosos) se parecem demais com os de qualquer um.