Eu tento, com muito afinco, não me transformar em um desses velhos que estão sempre reclamando da música feita pela juventude, porque “no meu tempo que era bom”. Confesso, porém, que nem sempre é tão fácil resistir a esse impulso. Para além das diferenças entre a música feita hoje e aquela de 10, 20, 30 anos atrás ou mais, existe o fato de que o próprio hábito de consumir música mudou muito. Hoje em dia, é raro que alguém toque um álbum inteiro no streaming – uma indústria que é alimentada, basicamente, de singles. São tempos de consumo cultural voraz, e pouca gente pode ou quer dispor de tempo para sentar e prestar atenção num álbum, do começo ao fim, e analisar todas as suas virtudes musicais e líricas (ou a falta destas).
Evitando ceder a esse temor/ódio pelo novo, então, eu tento sempre conhecer novas bandas e cantores – e, olha, tem uma moçada fazendo muita coisa boa por aí. Apesar dessa boa vontade, sinto que falta a boa parte dessa galera um pouco mais de maturidade emocional ou intelectual para processar sentimentos, em forma de letras que digam qualquer coisa que perdure para além do tempo da canção. Principalmente, se navegamos pelo mainstream, onde já esbarramos na óbvia dificuldade de encontrar uma jovem banda de rock que seja realmente popular, porque o brasileiro médio engoliu essa historinha (empurrada pela nossa goela abaixo com a força de muita grana e rádios compradas) de que “o sertanejo é a cara do Brasil”, e parece que não cabe nenhum outro tipo de música em suas preferências.
Tem gente boa fazendo música interessante e letra bacana por aí? Ô, se tem! Baiana System (BA), Academia da Berlinda (PE), Seu Pereira & Coletivo 401 (PB), Liniker (SP), Dingo (RS)... Alguns já nem tão jovens, verdade, mas, vivos e ativos. É uma questão de procurar, nada mais – só não espere ver essa galera todo domingo na Globo, como era no tempo da Legião Urbana, especialmente ali pelo final dos 80 e começo dos 90.
Essa prolixa introdução justifica-se pelo fato de que não houve (e nem deve haver mais) um letrista de rock do calibre de Renato Russo desde sua morte, nem uma banda que, ainda que limitada tecnicamente, fosse capaz de criar música que casasse tão bem com sua peculiar poesia (que costumava ignorar métricas e rimas) – e, mais importante ainda, que, com isso, gerasse sucesso popular – como foi o caso da Legião Urbana. Para este Música & Mágica, eu cheguei a cogitar O Descobrimento do Brasil (1993), um disco reconhecido como o mais diverso da carreira da Legião e aquele em que Renato parecia mais feliz e sábio, como que plenamente recuperado de uma bad trip e cheio de fé no futuro.
Daí, pensei: que nada, eu quero falar é do Renato numa pior, mesmo; da falta de esperança daqueles tempos, em que toda a nossa alegria pelo fim da ditadura, menos de uma década antes, já havia se transformado em desencanto, pelos sucessivos e fracassados planos econômicos e pela corrupção desenfreada dos governos Sarney e Collor; de como Renato, Marcelo Bonfá (bateria) e Dado Villa-Lobos (guitarras) ousaram cometer V, um disco progressivo, na esteira do monumental sucesso de um disco “fofo” e acústico, como foi o multiplatinado As Quatro Estações (1989).
A estranheza já bate à porta na primeira faixa, a curta “Love Song” – poema em português arcaico, escrito pelo trovador Nuno Fernandes Torneol, no século XIII. Prova da versatilidade de Renato, com a voz em primeiro plano em tom baixo, enquanto, ao fundo, sua voz ecoa vários tons acima, trazendo um clima quase gregoriano. Logo em seguida, a música mais longa da Legião Urbana: “Metal Contra as Nuvens”. São 11 minutos, divididos em quatro blocos instrumentais de andamentos variados, que alternam a doçura acústica da introdução e do encerramento com a fúria guitarreira setentista do segundo movimento e a atmosfera contemplativa dos teclados épicos do terceiro. Uma peça progressiva, inclusive, em sua letra com ambições de saga épica. Não testou a memória do ouvinte, como os nove minutos de “Faroeste Caboclo”, mas, certamente, ajudou a testar os limites da gravação em vinil simples: V tinha uns 50 minutos totais e quase virou disco duplo.
A seguir, mais viagem, nos cinco minutos da delicada instrumental “A Ordem dos Templários”. Fechando o que era o lado A do álbum em vinil, os quase oito minutos de “A Montanha Mágica” são como uma bad trip de heroína, em que Renato capricha na psicodelia evocada na letra: “um outro agora vive minha vida / sei o que ele sonha, pensa e sente”; “minha papoula da Índia, minha flor da Tailândia / és o que tenho de suave /e me fazes tão mal”. A delícia e a dor do vício, como num furacão de imagens e guitarras distorcidas, que termina com uma decisão desesperada: “chega, vou mudar a minha vida”.
Um pouco mais convencional, a segunda metade do disco começa com “Teatro dos Vampiros”, que vinha embalada em uma leveza pop que açucarava uma das letras mais desoladas de Renato. A falta de amor e de perspectivas, a barra de viver no armário (que já nem era o caso dele, àquela altura) e de ter que parecer feliz sem estar, num país que massacrava seus cidadãos sem dó. Deve ter sido proposital que, após tanta deprê, “Sereníssima” venha socorrer o ouvinte com sua melodia alto-astral, uma das músicas mais simpáticas da Legião Urbana, com direito a gritinhos histéricos, e que, para nossa surpresa, não soa deslocada entre tanta lisergia.
Na sequência, o magnum opus do álbum: “Vento no Litoral” não evoca o céu azul de uma praia ensolarada, mas praias cinzentas, escarpadas, onde só se caminha bem abrigado do frio cortante. Ali, na margem, Renato lamenta a perda de alguém, sem deixar claro se essa pessoa partiu ou morreu. Felizmente, por mais que o verso “eu deixo a onda me acertar / e o vento vai levando tudo embora” possa ter contornos suicidas, mais à frente ele respira fundo e cata os pedaços: “já que você não está aqui / o que posso fazer é cuidar de mim”. É impossível ficar indiferente a “Vento no Litoral”, um dos melhores momentos de toda a discografia da Legião.
A bad é rebatida com “O Mundo Anda Tão Complicado”, em que tudo é esperança de um futuro bonito, com a letra descrevendo a rotina de um casal se mudando pra morar juntos. Levinha, bobinha, mas chega em ótima hora. A letra é mais um atestado da capacidade de Renato Russo de botar letras imensas na cabeça do ouvinte, mesmo que elas tenham pouca ou nenhuma rima, exceto pelo refrão.
“L’Âge d’Or” é sobre autoconhecimento e desistir das coisas que não valem a pena. A letra menciona “jovens gigantes de mármore”, que podem ser menção à banda Young Marble Giants, banda galesa de pós-punk, o movimento de onde se origina a Legião – mas que pode ser, também, prova da fé de Renato na beleza e tenacidade da juventude que, eventualmente, o substituiria. É o terceiro uso no disco do mesmo timbre distorcido de guitarra, fazendo desta uma faixa meio cansativa.
O ouvinte começa a desejar o fim e, felizmente, ele chega bem bonito: “Come Share My Life” é uma cover instrumental de um bonito folk de 1965, de Glenn Yarbrough. Levada ao piano sobre uma cama de sintetizadores e nada mais, encerra um disco atípico dentro da obra da Legião, uma banda de som cuja marca era não ter uma marca. Se não eram especialmente originais ou tecnicamente impecáveis, Renato, Dado e Bonfá (e antes, também, Renato Rocha) sabiam como poucos o que fazer para grudar nos ouvidos e mentes dos fãs, e o fizeram com uma obra que, amada ou odiada, podia ser chamada de tudo, menos de vazia ou incoerente.
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2 comentários:
Foi-se o tempo que não tinha mais paciência pra ouvir Legião. Das bandas nacionais, é a que tenho mais CD's (sim, ainda os tenho) pois minha adolescência e juventude só foram suportáveis porque Renato Russo conseguia conversar comigo por meio das letras de muitas músicas.
V foi o album do desencanto com a vida. Pela primeira vez enfrentava a ruptura de um relacionamento no qual depositei muitas fichas, mas hoje entendo perfeitamente o motivo para ter sido deixado pela menina que era fã de Julia Roberts. Mas tergiverso.
Voltemos ao álbum e ao fato inegável de que no nosso tempo era melhor. Os motivos você elencou música a música. Hoje qual compositor tem o dom de criar essa ligação com seus fãs, com letras fáceis e complexas ao mesmo tempo?
Se há gente competente na galeria de músicos brasileiros da atualidade não consigo afirmar. Mas enquanto houver gente disposta a ouvir as músicas de outras épocas para se inspirar, podemos acreditar que o Rock vive.
CAESIUS MAXIMUS, grande Bertuol, os CDs da Legião Urbana eram todos bons de ouvir e de ver, com seus projetos gráficos de muito bom gosto nos encartes e selos. Desde 2021, porém, diante da necessidade de reduzir ao mínimo o volume de minha mudança, doei todos a alguém que eu sabia que os apreciaria.
Eu fico pensando se posso estar tão errado assim, em achar que as músicas feitas de uns bons anos pra cá não resistirão ao teste do tempo, de estar nas cabeças e nas bocas de gente que chegou ao mundo muito depois delas - mas, sinceramente, acho que não estou errado, não. As décadas passarão e bandas como a Legião serão sempre relevantes, enquanto as outras ficarão comendo a poeira da História. Abraço!
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