14/05/2024

Música & Mágica #2


LOBÃO
A Vida é Doce
1999

Certa noite, vagando pelo Twitter, acho que lá pelo ano de 2010, tive uma breve e divertida interação com Lobão. Aproveitando o gancho de uma declaração sua, segundo a qual ele não se reconhecia no som do disco Sob o Sol de Parador (1989) – destacando, entre outros motivos, a produção clean de Liminha – Lobão me disse que, na verdade, sentia o mesmo em relação a qualquer disco anterior àquele.

Aproveitei para dizer que sua bateria firme em “Obrigado (Por Ter Se Mandado)”, faixa do Ideologia (1988), de Cazuza, era o que eu mais gostava na música, depois da letra acachapante. A reação de Lobão: “Era eu na bateria? Manda aí, eu quero ouvir, não me lembro disso!” – e lá fui eu fuçar meus mp3 de origem questionável. Ao ouvir as próprias baquetadas, confirmou: “Ficou bom mesmo, hein?”

Não me lembro se já naquele tempo Lobão estava acometido pelo antipetismo – uma doença mental coletiva, que fez muita gente acreditar que a corrupção no Brasil nasceu durante os primeiros mandatos de Lula, inventada e espalhada por políticos com muito mais culpa no cartório. Era triste ver gente aparentemente saudável que, de uma hora para outra, começava a espumar pela boca e vociferar “E O LULA? E O PT?”

Fato é que Lobão – ao lado de vários contemporâneos da cena BRock - cedeu à moléstia e, por muito tempo, esteve alinhado com os inimigos da democracia que chegaram ao poder em 2018. Algum tempo depois, felizmente, pareceu arrepender-se – e digo “pareceu” porque eu próprio deixei o Twitter, e o soube por meio de notícias. Pesquisando como não-usuário por seu perfil, hoje, alguém pode pensar que ele parou de postar em 2019, quando exaltava fascistas em caixa alta o dia inteiro.

Apesar disso, não peguei por ele o ranço devastador que peguei, por exemplo, pelo Ultraje a Rigor. Dediquei um bom tempo à leitura de sua ótima autobiografia, 50 Anos a Mil, e não sentia náusea ao escutar qualquer canção sua - principalmente, quando vinha deste estupendo A Vida é Doce.


Era 1999. Lobão chacoalhou o mercado com um lançamento que era independente de verdade (quando muita gente se considerava indie, enquanto era bancado pelo Grupo Abril). Gravou seu disco e mandou para as bancas de jornais, com cópias numeradas e acompanhado de uma revista chamada Manifesto – e vendeu bem, umas 100 mil cópias, numa época em que a pirataria de CDs físicos era forte e a pirataria online começava a incomodar às gravadoras.

Na capa de A Vida é Doce, um Lobão de costas para o ouvinte contempla o mar escuro em um dia nublado. É uma atmosfera que casa com as habituais temáticas do cantor, mas que se contrapõe ao clima de praia e bermuda da sua geração de rock nos anos 80 – e mais ainda à alegria inconsequente do funk carioca, que, naquele fim dos anos 90, começava a ganhar força no mainstream nacional.

No rescaldo de uma rápida e severa febre techno que assolou a música mundial, Lobão parecia ser um dos poucos artistas locais ainda prestando atenção ao trip hop nascido quase uma década antes, por obra do Massive Attack e Portishead, principalmente. Pode ter sido tardio surfar essa onda, mas Lobão não entregou música anacrônica: pelo contrário, havia um sentido de urgência e caos que era o rosto daquele último ano do século XX.

Já na abertura, “El Desdichado II” era Lobão – finalmente, dono de seu próprio som – reapresentando-se a quem ainda o desconhecia (e até para quem ele já era familiar): “Eu sou a execução, a perfuração / O terror da próxima edição dos jornais / Que me gritam, me devassam e me silenciam”. A saraivada verbal é acompanhada de violão, baixo, percussão, guitarra distorcida e arrepiante grito primal.

Como sempre, Lobão faz aqui ótima crônica de submundo, cheia de tipos marginais e poéticos, mulheres interessantes e decididas, em situações que podem ser vistas ou vividas nas madrugadas de qualquer grande centro. “Universo Paralelo” (talvez a melhor música do Portishead que o Portishead nunca gravou) e “Tão Menina” (a faixa mais acelerada do álbum) são dois exemplos da vocação de Lobão para ser o nosso Charles Bukowski.

Quando fala de amor (ou desamor), Lobão atinge picos de beleza e emoção, alternando realismo e lirismo, alegria contagiante e tristeza resignada. “Para Onde Você Vai”, “Vou Te Levar” e “Uma Delicada Forma de Calor” (com Zeca Baleiro) devem figurar em qualquer lista decente de melhores baladas do velho João Luiz. Na faixa-título, o caos urbano é pano-de-fundo para um caos pessoal ainda maior. Só mesmo no auge do desespero é que um homem recorre a um “me perdoa” como aquele.

Imediatamente antes do bonito final instrumental (“Amanhecendo na Lagoa”), Lobão prova que escutou Massive Attack com ouvidos muito atentos: “Mais Uma Vez” tem os climas, os efeitos e a solenidade que fizeram a fama dos ingleses de Bristol. Os mestres certamente aprovariam a homenagem. Ao ouvinte, resta a “lombra” gostosa que música de tamanha qualidade provoca. Se é verdade que Lobão já nos deu motivos para abandoná-lo, também é certo que A Vida é Doce torna esta uma tarefa bastante inglória.

* * * * *

Lobão
A Vida é Doce
Produzido por Lobão, Jongui, Humberto Barros e Regina Lopes
Lançado em 10 de abril de 1999

01 – El Desdichado II
02 – Universo Paralelo
03 – Pra Onde Você Vai
04 – Tão Menina
05 – A Vida é Doce
06 – Uma Delicada Forma de Calor
07 – Tão Perto, Tão Longe
08 – Ipanema no Ar
09 – Vou Te Levar
10 – Mais Uma Vez
11 – Amanhecendo na Lagoa

06/05/2024

Céu - Novela (2024)


Certo dia, na “delicadeza” que lhe é peculiar, meu irmão do meio declarou que “Tiê, Céu, Sol, Mar... Cantora com nome de três letras é tudo igual, nenhuma presta”.

Tiê foi razoavelmente famosa por um tempo, com ajuda de uma cover acústica da Turma do Balão Mágico, coisa que não é lá muito impressionante, num currículo. Se realmente existem cantoras chamadas Sol e Mar, não sei – tampouco o sabe meu irmão, que só quis fazer graça e formar uma trinca delas com Céu.

Particularmente, acho injusto colocar Maria do Céu Whitaker Poças em qualquer balaio generalizante de maneira negativa. Perto de completar 20 anos de carreira, Céu não caiu de paraquedas na música: ela é filha de Edgard Poças, maestro, arranjador e letrista que, nos anos 80, foi um dos arquitetos do já citado Balão Mágico. Céu poderia, inclusive, ter pensado que tinha a “envergadura moral” para gravar Balão Mágico antes de (ou melhor que) Tiê, mas, desde 2005, ela faz seu próprio (e interessante) caminho na música.

Apesar de ter sido apresentado a algumas ótimas faixas por um amigo que é muito fã de Céu, nunca fiz dela presença constante em meus ouvidos – o que é, certamente, uma senhora pisada na bola, de minha parte. Pensando aqui, com sua música na orelha, me peguei percebendo muito de Gal Costa nela – com a vantagem de que, enquanto a saudosa Gal era essencialmente uma intérprete, Céu é ótima letrista e compõe quase todo o próprio repertório.

Pegue um disco seu para tocar e ele dificilmente deixará de agradar – seja pelo som com groovado em baixos teores, as letras cheias de esperteza ou a voz absurdamente suave e afinada que Céu ostenta. Ela se cerca das melhores companhias, e sua música, mesmo não sendo o suprassumo do pop, tem sempre excelente produção.


Novela me foi sugerido por alguém que, numa espécie de desafio, me mandou pediu: “quero ver resenha no Catapop, viu?” Ora essa, amigo, dificuldade zero! É muito fácil e gostoso falar de bons discos. Novela é um compêndio das muitas boas influências de Céu: MPB, reggae, soul music, trip hop, samba, rock... É impressionante como um disco que bebe de tantas fontes soa tão coeso. Céu é muito craque em suas misturas.

“Raiou” abre os trabalhos, com sua levada Jorge Benjor, piano climático e letra com toques de sagaz autoajuda: “te sai dos dribles que a vida te deu /.../ te apruma, que o dia raiou / em sua cor de sorte /.../ entoa teu mantra e vai cantando / viver é para os fortes”.

A safada “Cremosa” e a ingênua “Crushinho” fariam bonito em qualquer trilha de novela. No meio delas, um hino de amizade, “Gerando na Alta”, o single do álbum. “Into My Novela” retoma a vibe romântica, com cordas emocionantes e pequenas intervenções em inglês (uma manobra que se repete em outras faixas). Embora heterossexual (namora e tem filho com o baterista da Nação Zumbi, Pupillo), Céu canta para objetos femininos de desejo com sutileza e elegância.

Tenho a impressão de que a música de Céu deve funcionar melhor com THC nas ideias (“High na Cachu” não deixa muita dúvida), mas ouvi-la de cara limpa não traz qualquer prejuízo. “Lustrando Estrela” tem a bateria lo-fi abrindo caminho para um arranjo que é pura Motown. “Reescreve” meio que complementa as ideias de “Raiou”, numa levada a la Gil Scott-Heron, exortando o ouvinte ao pensamento crítico.

Se você, ao fim de sua audição de Novela, sentir um súbito desejo de recuperar o tempo perdido e ouvir mais de Céu, saiba que não está sozinho: apesar da carreira longa, ainda lhe falta sucesso popular que se equipare ao prestígio com a crítica daqui e de fora – mas não convém duvidar que ela chegue lá. Nada mal para uma mera cantora com nome de três letras, hein?


* * * * *

Céu
Novela 
Produzido por Céu, Pupillo e Adrian Younge
Lançado em 26 de abril de 2024

01 - Raiou
02 - Cremosa
03 - Gerando na Alta
04 - Crushinho
05 - Into My Novela
06 - Mucho Ôro
07 - High na Cachu
08 - Buá Buá
09 - Vinheta Dorival II
10 - Lustrando Estrela
11 - Corpo e Colo
12 - Reescreve