27/02/2024

A Nova Vida de Toby


Meu amigo mineiro pero no mucho Mauro Ellovitch (promotor de justiça, ocasional articulista da Gracie Magazine, podcaster gibizeiro e, nas horas vagas, samurai rock’n’roller) costuma dizer que “casar é pouco melhor do que morrer queimado”. Bem-casado e pai feliz de duas meninas lindas, Mauro está, obviamente, apenas brincando quando compartilha tal pérola de “sabedoria”. Penso que é apenas o modo que ele acha de lidar bem-humoradamente com o fato de que o casamento cobra do homem uma mudança de hábitos que, para alguns, pode não ser das mais fáceis de atingir.

O hepatologista Toby Fleishmann (Jesse Eisenberg), por algum tempo, achou que o amor não era para ele. Nada durava, até que conheceu Rachel (Claire Danes), apaixonou-se perdidamente e casou-se com ela – de quem, agora, está se divorciando. Recém-quarentão e “na pista”, Toby agora usa o Tinder e está conhecendo um sucesso sexual do qual não desfrutou na juventude. Ele tem até tempo para estar com os melhores amigos, Seth (Adam Brody) e Libby (Lizzy Caplan), que há tempos não encontrava. É esta última quem narra a história.


A Nova Vida de Toby passa ao espectador a impressão inicial de ser uma “dramédia” leve sobre suas novas aventuras amorosas, com Toby fazendo o que pode para conciliar a vida de descasado, o trabalho médico que ama e realiza com idealismo, e a guarda dos filhos, compartilhada com Rachel – numa divisão nada justa, pensa ele. Com sua ambição desmedida, Rachel devota praticamente todas as horas do seu dia ao trabalho como agente artística.

Um dia, Rachel some do mapa. Sai para trabalhar e não volta mais. Não atende ligações, não responde mensagens. O tempo passa, e dizem que não ter notícias é uma boa notícia. Então, depois de um período de desespero, Toby aceita que Rachel não vai mais voltar e precisa tocar a vida sem ela – e a gente, conhecendo apenas seu lado da história, dá a ele razão quando, desde o começo, pintava a mulher como uma megera ambiciosa e insensível. Recorrendo a meu amigo Mauro mais uma vez, Toby “morreu queimado”, mas vai melhorar.


Porém, como dito num provérbio chinês e numa canção do Skank, “tudo tem três lados”: a sua versão, a minha versão, e a verdade. Se o caráter aparentemente impoluto de Toby (bom marido, pai, amigo e profissional) começa a apresentar rachaduras, afetando muita gente em seu redor, fica claro que não fomos apresentados a todos os fatos. Quando finalmente a verdade se apresenta (ou, pelo menos, uma nova versão dela), o efeito é devastador – para essas pessoas todas e, mais ainda, para quem assiste.

Se o seu alarme interno contra “filme de suspense do Supercine” foi acionado, desarme. Toby não é um psicopata, mas um casamento quase nunca acaba por culpa de apenas um dos envolvidos. Um tema central da série é justamente essa mania que temos de julgar sem conhecer todos os fatos. É a cultura do cancelamento aplicada na prática. Todos nós cometemos erros e temos direito à defesa e ao arrependimento (a menos que você seja neonazista; neste caso, você só tem direito a um nocaute por jab).

Jesse Eisenberg tem carisma e faz boa caracterização de Toby (um tipo mais complexo do que parece), mas é Claire Danes quem mais nos afeta. Nosso rancor, nossa desconfiança, nosso ódio, até – é tudo para ela. A certa altura, porém, ela põe esses sentimentos todos de volta em nossas mãos, feios e retorcidos, e a gente não sabe direito o que sentir ou pensar, exceto “que atriz!”.

Com seu bom humor (sim, existe humor aqui, pois nem tudo na vida é desgraça ou D.R.), suas discussões bem pé-no-chão sobre o fim da juventude, o nascimento e a morte do amor, a mentira e a verdade, numa trama que dá seguidas rasteiras nas nossas expectativas (inclusive e principalmente, as românticas), A Nova Vida de Toby provou-se uma bela surpresa no catálogo do Star+.

20/02/2024

Como Pedra


O sertão nordestino pode ser bastante inóspito. Lembro de viajar ao lado de meu pai pelo interior baiano, quando criança, e passar por certos lugares que me faziam pensar: como é possível alguém viver aqui? Ainda hoje, é uma pergunta que me faço, ao passar por lugares onde parece faltar o básico que garanta uma mínima dignidade cidadã. Lugares onde não se vê muito mais que poeira, pedras e espinheiros. Se há água, não parece fácil apontar onde ela é encontrada.

A verdade é que ninguém quer morar mal. Ninguém quer passar por privações - muito menos, aquelas que têm o poder de enfraquecer o corpo e o espírito, como a fome. Sair do seu quinhão de terra natal em direção a uma cidade grande qualquer, porém, costuma ser caro, penoso e não oferecer qualquer garantia de que se vai “vencer na vida” (ainda mais considerando as noções deturpadas de sucesso e felicidade que alimentamos).

Cristo, como prefere ser chamado Cristóvão, vive com sua mulher sem nome (sim, isso mesmo) e a filha Rosa. A menina, que falava e andava normalmente, um dia, simplesmente amanheceu em estado vegetativo e assim ficou. Com a aridez da caatinga acentuada pela prolongada falta de chuva, a família começa a ver-se tomada pelo desespero quando a já pouca ajuda do governo começa a falhar. Certo dia, o filho adulto do casal volta para casa, trazendo consigo uma figura que muda a dinâmica das coisas... e mostra que pode haver perigos maiores que a natureza inclemente.

Luckas Iohanathan é um artista e roteirista nascido em Mossoró, RN, que vive na Argentina. Sua estreia deu-se em O Monstro Debaixo da Minha Cama, de 2020, vencedora de prêmios como o Troféu HQMix. Como Pedra é uma obra forte e sensível, que mostra a fibra dos sertanejos que – por opção ou falta de uma – enfrentam os rigores do nordeste brasileiro, além de alertar para o estrago que o fanatismo religioso pode causar para os desesperados. O traço de Luckas é econômico e, curiosamente, bastante cinético. As cores usadas são apenas branco, preto e laranja, o que ajuda na construção do cenário de pobreza e calor. A edição da Comix Zone, em capa dura e papel de excelente qualidade, não é barata, mas vale a pena ficar de olho em promoções.

Apesar de não ter nome, a mulher de Cristo é a personagem central de Como Pedra. É ao seu redor que os principais eventos tomam forma e, quase sempre, é de sua percepção que o leitor acompanha tudo. Ela é, ainda, a pessoa mais sensata em cena, mantendo-se em luta e agarrada à própria sanidade, enquanto Cristo sucumbe – primeiro, ao desespero e, depois, ao que parece a saída mais fácil, uma saída que apenas agiganta sua própria tragédia.

Embora possamos contar com um final redentor, ele também faz parecer que a vida apenas coloca a mulher diante de um novo tipo de dificuldade. A vida é dura como pedra. Ninguém passa por ela sem marcas, e não são poucas as que ficam na mente e no coração de quem lê este quadrinho arrebatador.

16/02/2024

Música & Mágica #1


MARISA MONTE
Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão
1994

Não faltam na internet artigos, vídeos ou podcasts dizendo que 1994 foi revolucionário na música brasileira. Aos tantos bons e novos artistas que surgiram ou se firmaram naquele ano, juntaram-se trabalhos expressivos de artistas já consagrados, das mais variadas vertentes.

Um notável salto qualitativo foi dado por Marisa Monte em seu terceiro álbum. Surgida em 1989, no que acabou sendo um boom de cantoras de MPB chamadas de “ecléticas”, Marisa foi lançada num disco de covers ao vivo, MM (contendo a inédita “Bem Que Se Quis”, versão de um hit italiano), começou a dar sinais de talento de compositora no segundo álbum, Mais (1991), e chegou ao terceiro disco cercada de boas ideias e boas companhias.

Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão é uma incomparável coleção de canções simpáticas, interessantes e comoventes. Para alcançar tal resultado, Marisa trouxe a bordo parceiros como Nando Reis, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown e dividiu a produção com um gringo acostumado à música brasileira, Arto Lindsay (que produziu, por exemplo, O Estrangeiro, de Caetano Veloso).

O disco tem brilho pop e ostenta uma brasilidade orgulhosa, mesmo ao servir um clássico do rock, como “Pale Blue Eyes”, de Lou Reed, toda em violão e percussão. As covers do álbum incluem “Dança da Solidão”, de Paulinho da Viola, com Gilberto Gil provendo violão e vocais; a suingada “Balança Pema”, de Jorge Benjor; e “Esta Melodia”, de Jamelão, em que Marisa expõe sua veia sambista, abrindo com o violão triste de Paulinho da Viola e desaguando em versos doloridos (“não suporto mais tua ausência / já pedi a Deus paciência”).

É nas canções inéditas, porém, que Marisa Monte mais contribui na criação de um modelo de pop altamente melódico e com os dois pés fincados na música brasileira. Exceto por “De Mais Ninguém”, uma seresta ortodoxa escrita por (pasme!) Arnaldo Antunes e executada pelo grupo de choro Época de Ouro, tudo mais vinha embalado em um frescor que só mesmo a “madura juventude” de seus parceiros poderia proporcionar.


A primeira do disco, “Maria de Verdade”, tem grife Carlinhos Brown, com rimas percussivas na letra que fala de uma mulher que se sente forte o bastante sozinha para entregar-se a outra pessoa – “mesmo que doa, Maria”. Também é dele a monumental “Segue o Seco”, com sua percussão abrindo a estrada por onde a sanfona de Waldonys serpenteia, nordestina em sonoridade e temática. Em parceria com Marisa e Nando Reis, ele ainda entrega a mais perfeita “carta de intenções” do disco, “Na Estrada”, uma melodia solar e ótima de cantar junto.

Além de “De Mais Ninguém”, Arnaldo Antunes contribui com “Bem Leve”, parceria com Marisa, que fala de aceitação da morte de uma maneira, digamos, bem leve. “Alta Noite” é, tecnicamente, uma cover, mas quem é que lembra da versão contida em Nome, primeiro disco solo de Arnaldo, do ano anterior? O belíssimo arranjo de cordas, violão e percussão acentua a solidão resignada do personagem na letra.

“Ao Meu Redor”, de Nando Reis, é aquilo que sentimos quando não conseguimos deixar de pensar em alguém, mesmo e principalmente quando essa pessoa não está por perto. “O Céu” é sobre o céu, mesmo, a coisa mais rock and roll em um álbum sem guitarras. Nando e Marisa brilham excepcionalmente, porém, em “Enquanto Isso”, uma reflexão sobre como as coisas estão acontecendo sempre e em toda parte, mesmo longe de nosso olhar, numa narrativa em tempo reverso, da madrugada à alvorada. Uma versão em inglês da letra é falada por Laurie Anderson, artista conceitual e viúva de Lou Reed.

Num ano em que artistas como Chico Science e tantos outros buscavam uma nova identidade musical que fosse simultaneamente brasileira e cosmopolita, Marisa foi uma das que estavam mais atentas aos ventos que sopravam naqueles tempos.  Menos ousada que seus contemporâneos, talvez, mas ciente de que um pop brasileiro de fato (não apenas feito no Brasil) era possível, Marisa encheu nossos olhos e ouvidos com um disco lindo em forma e conteúdo.

*   *   *   *   *

Marisa Monte
Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão
Produzido por Arto Lindsay e Marisa Monte
Lançado em 29 de Julho de 1994

01 - Maria de Verdade
02 - Na Estrada
03 - Ao Meu Redor
04 - Segue o Seco
05 - Pale Blue Eyes
06 - Dança da Solidão
07 - De Mais Ninguém
08 - Alta Noite
09 - O Céu
10 - Bem Leve
11 - Balança Pema
12 - Enquanto Isso
13 - Esta Melodia

06/02/2024

Sociedade da Neve


O célebre livro Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan, foi escrito sob o impacto de uma foto feita em 1990 pela sonda Voyager 1, quando ela estava a cerca de impressionantes 6 bilhões de quilômetros da Terra. Apontando uma de suas câmeras para onde estava nosso planeta, a Voyager o registrou como um ponto azul que mal se vê, em meio à imensidão negra do espaço. “Que mundo pequeno” é uma frase recorrente em nosso cotidiano. “Encurtar distâncias” já configura um clichê quando se fala de tecnologia.

Não caia nessa. Este não é um mundo pequeno.

Que o digam os sobreviventes do acidente ocorrido nos Andes argentinos em 13 de outubro de 1972, quando um pequeno avião fretado para transportar o time uruguaio de rugby se espatifou ao bater a cauda numa montanha, com 43 pessoas a bordo, entre passageiros e tripulantes. Dezesseis delas morreram quase imediatamente. Das 27 restantes, apenas 16 acabariam resgatadas, ao fim de dois meses que pareceram intermináveis para aquele grupo, que só via rocha e neve para onde quer que se olhasse.


A história de horror vivida pelos uruguaios já foi contada antes em Hollywood, no filme Vivos (1993), de Frank Marshall, estrelado por Ethan Hawke. Com a efeméride dos 50 anos do episódio, “celebrados” em 2022, a Netflix entregou a direção desta poderosa produção, dividida entre EUA e Espanha, ao cineasta J. A. Bayona, diretor de filmes impactantes e sensíveis como O Impossível (2012) e Sete Minutos Antes da Meia-Noite (2016), além de um nada lisonjeiro Jurassic World: Reino Ameaçado (2018).

Como em O Impossível, Bayona não decepciona ao filmar sequências desesperadoras. A tensão que precede o acidente culmina numa sequência curta, mas assustadora, com o avião despedaçando-se no primeiro impacto, enquanto pessoas são atiradas para fora e aquelas ainda dentro do avião passam por todo tipo de terror físico e psicológico. 

Não chega a ser spoiler, é um fato célebre e que ocorreu há meio século, então, vamos lá: com o passar dos dias, o grupo vê-se obrigado a recorrer ao impensável para sobreviver - comer a carne dos amigos e familiares mortos. A decisão não é fácil, mas parece não haver ética ou dogma que se sobreponha à necessidade de sobreviver. Apesar da sutileza do diretor, que não apela de graça ao gore, ainda é uma cena incômoda de diversas maneiras.


Além da fome, existe o perigo do clima extremo. A própria natureza parece empenhada em fazer aquelas pessoas aceitarem que vão morrer ali. Há uma rápida cena que é como um presságio de que as coisas ainda pioram muito antes de melhorar, com as nuvens agitando-se como tentáculos ao redor do sol pálido. É como se as montanhas estivessem dizendo “esqueçam, vocês não vão a parte alguma”.

Sociedade da Neve me faz desejar que, assim como é com os filmes, também fossem até 10 os indicados ao Oscar de Melhor Direção, porque Greta Gerwig (Barbie) não foi a única injustiçada. O que o espanhol Bayona consegue aqui é muito digno de prêmios. Um filme que fica com a gente muito depois de terminar.

02/02/2024

Matar ou Morrer

 

Em The Sandman #4 (1989), quando Sonho/Morfeu desce ao Inferno em busca de seu elmo roubado, ele o encontra em posse do demônio Choronzon, que se recusa a abrir mão do artefato e desafia Sonho para uma batalha verbal de imaginação, na qual se revezam criando imagens que sobrepujem a de seu oponente. Choronzon parece próximo de vencer, ao declarar-se a Entropia, a morte de todas as coisas, quando Sonho dá a réplica irretorquível:

- Eu sou a Esperança.

Choronzon não rebate. Como se derrota a Esperança? Sonho deixa o Inferno com seu elmo, vitorioso.

Dylan, protagonista de Matar ou Morrer, talvez pensasse numa tréplica capaz de silenciar o Sonho. Para ele, é impossível entender como alguém pode manter esperança de um futuro num mundo como este. A humanidade afunda em violência, corrupção e estupidez. O único planeta onde podemos viver está à beira do colapso. Como dar sentido à vida que se vive aqui?

Não que a esperança já tenha sido um ponto forte do rapaz: universitário tardio, reprimido e deprimido, ele já tentara dar cabo da própria vida antes e, quando o conhecemos, está a ponto de tentar novamente. Por ironia do destino, quando o pensamento de desistir o atinge, ele despenca para a morte e... não morre. Um ossinho quebrado aqui, outro ali, nada mais. Dylan não consegue acreditar na própria sorte.

Daí que, de repente, ele começa a enxergar um demônio. Um diabão horroroso, assustador, que diz tê-lo salvado da morte e, em troca, exige que ele mate uma pessoa ruim por mês, como pagamento. Caso se recuse, será ele, Dylan, a morrer. Nem chega a ser um dilema tão grande para alguém já tão puto com tudo: uma pessoa ruim por mês, num mundo tão cheio delas? Moleza.


Inicialmente, Dylan não quer ser um assassino – ou não teríamos como torcer minimamente por ele – mas cada vez que se recusa ou “esquece” de matar alguém, sua saúde começa a definhar e o demônio reaparece para lembrá-lo de sua “responsabilidade”. Então, ele não só prossegue, como vai ficando cada vez melhor na coisa, enquanto tenta manter seu segredo e levar uma vida normal – pelo menos, tão normal quanto alguém que enxerga demônios pode ter.

Há algo do cinema de Ethan e Joel Coen nas histórias da dupla Ed Brubaker e Sean Phillips. Seus protagonistas são quase sempre sujeitos ordinários, medíocres até, metidos em circunstâncias extraordinárias, das quais não encontram saída. Tudo parece mais ou menos sob controle, até que começa a dar muito errado e a espiral de infortúnios parece não ter fim.

Em tempos de “bandido bom é bandido morto” sendo usado como mote de campanha eleitoral, Brubaker parece querer que confrontemos nossas próprias convicções. É por isso que Dylan não parece louco – pelo contrário, ele tem retórica impecável. Gente que toma a justiça nas próprias mãos normalmente usa a indignação social geral ou a inação/ineficácia/leniência da lei como álibis para justificar o que fazem. É um discurso que apela aos piores instintos e muita gente cede facilmente a eles. Estamos torcendo pra Dylan se safar?


A dualidade moral das ações de Dylan não é a única dúvida na cabeça do leitor: ele está realmente sendo assediado por um demônio? O aspecto sobrenatural de Matar ou Morrer seria uma novidade na obra autoral da dupla. Aquilo é pra valer ou mero pretexto de Dylan pra fazer o que faz?

Cada uma das 20 edições (reunidas pela Editora Mino em quatro encadernados) termina com um gancho que deixa a gente nos cascos pela sequência. Com suas idas e vindas no tempo – muito por conta das pobres habilidades narrativas do protagonista – Brubaker e Phillips sustentam o suspense e o mistério até os momentos finais da série. Se um demônio (ou, pelo menos, um amigo) mandar você comprar, feche negócio!

01/02/2024

Aquaman 2: O Reino Perdido


Primeiramente, um desagravo. Senta que lá vem história.

Este filme marca o fim de uma era dominada pela visão de Zack Snyder do que deveria ser o Universo DC no cinema. Tudo começou com o bom (e nada mais) O Homem de Aço, que ele dirigiu em 2013. Ao longo de uma década, houve erros e acertos. Snyder não foi o único responsável pelos filmes que vimos, mas não há dúvidas de que o UDC tinha sua marca estampada em cada fotograma.

Agora, acabou. ALELUIA!

Não me leve a mal. No começo, tive muita fé de que Zack Snyder era a pessoa certa para comandar a reinvenção da DC no cinema – naquele 2013, já fazia 5 anos que a Marvel ditava as regras e, no ano anterior, havia explodido cabeças com o primeiro filme dos Vingadores. Snyder vinha de um bom remake de Madrugada dos Mortos (2004) e do grande sucesso de 300 (2006), que lançou seu nome como boa promessa para adaptar outros quadrinhos.

Quando foi lançado, O Homem de Aço subverteu uma série de preceitos inscritos em rocha na mitologia do Superman: em vez de ser alguém que tentava ser o mais normal possível, cuja índole era uma espécie de ideal de ética e bondade, ele se sentia mais alienígena, ou “deus”, pairando (de modo bastante literal) sobre a humanidade; em vez de pai amoroso e bom conselheiro, Jonathan Kent era um “general” castrador; em vez de proteger os civis em seu entorno, Superman foi tão responsável pela destruição de Metrópolis quanto Zod; em vez de preservar a vida acima de tudo, o herói quebrou o pescoço do primeiro vilão que enfrentou.

OK, pode-se argumentar que ele estava enfrentando alguém que se equiparava a ele em poder e até o superava como estrategista, mas, se tem algo que o Superman é sempre capaz de encontrar – nos quadrinhos que o filme dizia adaptar – é um jeito de evitar mortes. Qualquer uma.

Mas, vá lá, estávamos empolgados só de ver o Superman de volta às telas e perdoamos esses disparates. Perdoamos, inclusive, a feiura de todos aqueles filtros escuros, as cores desbotadas, o CGI pavoroso e o desgraçado tom sombrio que ele cismou que os heróis da DC deveriam ostentar - conceito que grande parte do mundo abraçou como a tábua da salvação, repetido em Batman v Superman: A Origem da Justiça (2016) e nas duas versões de Liga da Justiça (2017 e 2021). Curiosamente, os filmes de maior prestígio crítico e popular dessa era – Mulher-Maravilha (2017) e Aquaman (2018) – foram exatamente os que primeiro tentaram se afastar do modus operandi snyderiano. Era óbvio que alguma coisa não estava certa... e que esta coisa era uma pessoa e seu suposto “visionarismo”.

Quando James Gunn - diretor da trilogia dos Guardiões da Galáxia (2014-2023) e do ótimo O Esquadrão Suicida (2021) - foi anunciado como capitão da futura reformulação do UDC, a ser iniciada em 2025, um sopro de alívio atingiu o coração do fã já cansado de tanta câmera lenta e falta de imaginação. Não há garantias contra decepção, é verdade, mas comparar Snyder a Gunn equivale a querer comparar um Neanderthal a Einstein.

Por fim, quero vaticinar que, um dia, Zack Snyder há de ser desmascarado como o maior estelionatário de cinema – alguém a quem são sempre dados muito dinheiro e muita liberdade e que acaba entregando uns filmes sempre muito ruins, cujo fracasso crítico e/ou financeiro ele sempre acaba creditando justamente à falta de dinheiro ou liberdade. Pior: de alguma forma, ele ainda consegue convencer os mesmos estúdios aos quais deu prejuízo a dar-lhe ainda mais dinheiro e liberdade – e, depois, seguir reclamando da falta destes! Picaretice é pouco, o que Snyder faz ainda não tem nome.

"O cinema desse cara fede, ainda bem que vim de máscara!"

Dito isto, Aquaman 2: O Reino Perdido.

Este segundo filme do soberano da Atlântida e fanfarrão-mor da Liga da Justiça (uma caracterização que funciona por conta do imenso carisma do astro Jason Momoa, mas que pouco tem a ver com o personagem nos gibis) é dirigido pelo mesmo James Wan do primeiro. Tem alguns velhos vícios dos filmes de super-heróis: cenas confusas para disfarçar CGI meia-boca, humor inoportuno, vilões fuleiros, mas acaba sendo uma aventura simpática – e não apenas por conta de Momoa, mas, também, porque Patrick Wilson tem seus bons momentos como o Mestre do Oceano, irmão de Aquaman, derrotado e aprisionado ao fim do primeiro filme. A dinâmica entre os irmãos é boba, às vezes, mas, em geral, funciona. Este Aquaman está para a DC como Thor está para a Marvel: é o palhaço residente.

Sendo este um universo condenado, as refilmagens devem ter sido feitas para garantir que não ficassem pontas soltas – tanto que a cena pós-créditos é apenas uma gracinha (nojeirinha?) já vista durante o filme. A aposta no seguro é tamanha que não se veem outros heróis e tudo parece uma reciclagem do primeiro. O vilão é o mesmo Arraia Negra, com a mesma motivação do primeiro filme: vingar o pai. A diferença é que agora ele busca a mesma a coisa estando possuído pelo espírito de um antigo rei maligno. Yahya Abdul-Mateen II está no automático e seu David Kane não tem qualquer profundidade (piada involuntária, desculpe). "Punida" pelos muitos problemas em sua nada privada vida pessoal, Amber Heard entra e sai de cena como Mera e mal é percebida.


Na história, ficou impossível não lembrar da Wakanda de Pantera Negra quando a Atlântida se vê na responsabilidade de revelar-se ao mundo e intervir nas questões ecológicas e climáticas que ameaçam a água e a terra. Tem sua graça ver o Aquaman tendo seu momento "Homem de Ferro" durante uma coletiva de imprensa na ONU.

No fim das contas, por mais que Aquaman 2 possa entreter, pouca gente se animou a ir vê-lo. Demorou demais a sair e, agora, não tem qualquer consequência para os rumos do UDC. Não dá nem para culpar o público, mas espera-se que o fato de que saímos de um primeiro filme bilionário para um segundo com prejuízo acenda algumas luzes amarelas. Passado o encanto gratuito (e bastante prolongado) da novidade, o público deste tipo de filme já não se ilude com pouco. Que DC e Marvel tirem lições dos tropeços.