06/02/2024

Sociedade da Neve


O célebre livro Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan, foi escrito sob o impacto de uma foto feita em 1990 pela sonda Voyager 1, quando ela estava a cerca de impressionantes 6 bilhões de quilômetros da Terra. Apontando uma de suas câmeras para onde estava nosso planeta, a Voyager o registrou como um ponto azul que mal se vê, em meio à imensidão negra do espaço. “Que mundo pequeno” é uma frase recorrente em nosso cotidiano. “Encurtar distâncias” já configura um clichê quando se fala de tecnologia.

Não caia nessa. Este não é um mundo pequeno.

Que o digam os sobreviventes do acidente ocorrido nos Andes argentinos em 13 de outubro de 1972, quando um pequeno avião fretado para transportar o time uruguaio de rugby se espatifou ao bater a cauda numa montanha, com 43 pessoas a bordo, entre passageiros e tripulantes. Dezesseis delas morreram quase imediatamente. Das 27 restantes, apenas 16 acabariam resgatadas, ao fim de dois meses que pareceram intermináveis para aquele grupo, que só via rocha e neve para onde quer que se olhasse.


A história de horror vivida pelos uruguaios já foi contada antes em Hollywood, no filme Vivos (1993), de Frank Marshall, estrelado por Ethan Hawke. Com a efeméride dos 50 anos do episódio, “celebrados” em 2022, a Netflix entregou a direção desta poderosa produção, dividida entre EUA e Espanha, ao cineasta J. A. Bayona, diretor de filmes impactantes e sensíveis como O Impossível (2012) e Sete Minutos Antes da Meia-Noite (2016), além de um nada lisonjeiro Jurassic World: Reino Ameaçado (2018).

Como em O Impossível, Bayona não decepciona ao filmar sequências desesperadoras. A tensão que precede o acidente culmina numa sequência curta, mas assustadora, com o avião despedaçando-se no primeiro impacto, enquanto pessoas são atiradas para fora e aquelas ainda dentro do avião passam por todo tipo de terror físico e psicológico. 

Não chega a ser spoiler, é um fato célebre e que ocorreu há meio século, então, vamos lá: com o passar dos dias, o grupo vê-se obrigado a recorrer ao impensável para sobreviver - comer a carne dos amigos e familiares mortos. A decisão não é fácil, mas parece não haver ética ou dogma que se sobreponha à necessidade de sobreviver. Apesar da sutileza do diretor, que não apela de graça ao gore, ainda é uma cena incômoda de diversas maneiras.


Além da fome, existe o perigo do clima extremo. A própria natureza parece empenhada em fazer aquelas pessoas aceitarem que vão morrer ali. Há uma rápida cena que é como um presságio de que as coisas ainda pioram muito antes de melhorar, com as nuvens agitando-se como tentáculos ao redor do sol pálido. É como se as montanhas estivessem dizendo “esqueçam, vocês não vão a parte alguma”.

Sociedade da Neve me faz desejar que, assim como é com os filmes, também fossem até 10 os indicados ao Oscar de Melhor Direção, porque Greta Gerwig (Barbie) não foi a única injustiçada. O que o espanhol Bayona consegue aqui é muito digno de prêmios. Um filme que fica com a gente muito depois de terminar.

4 comentários:

Luwig Sá disse...

Não só dez diretores indicados, como também dez filmes internacionais. Porque tem sido um prazer riscá-los da minha hitlist; só coisa boa e difícil de fechar questão sobre um favorito em ambas as categorias. Sugiro ver o maravilhoso Vidas Passadas. Ele termina, mas você não termina com ele.

Sobre Sociedade, a patroa não conseguiu assistir até o fim dada a tensão e sofrimento dos passageiros sobreviventes. Confesso que o trecho da avalanche após o clima descontraído entre eles foi a cena que mais me impactou.

Belo texto, parceiro.

Marlo de Sousa disse...

LUWIG, faço coro ás 10 indicações para os maiores prêmios da noite: filme (incluindo as listas de internacionais e animações), diretor, ator principal e coadjuvante, atriz principal e coadjuvante, roteiro original e adaptado.

Já baixei Vidas Passadas pra assistir, bem como American Fiction, que até há pouco nem tinha distribuição garantida no Brasil.

Abraço!

doggma disse...

Fala!

Resenha finíssima, como sempre. Mas essa intro acareando o trágico evento com PPA foi futebol-arte. Tipo do fluxo que passa longe de redações de grandes portais.

Verei no finde (também, depois dessa leitura!). Adianto que minha referência dessa história é Vivos, que ainda funciona e ainda impressiona. Em contrapartida, O Impossível foi uma ótima surpresa.

Curioso... outro dia revi A Longa Caminhada, um survival que me chocou bastante quando guri. Acho que também serve como contraponto a esse grupo vitimado pelas forças da natureza - no caso, são duas crianças vitimadas pelo elemento humano e que tentam sobreviver no meio de um deserto escaldante.

Marlo de Sousa disse...

DOGGMA, não conheço "A Longa Caminhada", mas já vai pro topo da "pilha de filmes". Obrigado pela audiência e pelos elogios, e espero que tenha curtido Sociedade da Neve. Abraço!