02/02/2024

Matar ou Morrer

 

Em The Sandman #4 (1989), quando Sonho/Morfeu desce ao Inferno em busca de seu elmo roubado, ele o encontra em posse do demônio Choronzon, que se recusa a abrir mão do artefato e desafia Sonho para uma batalha verbal de imaginação, na qual se revezam criando imagens que sobrepujem a de seu oponente. Choronzon parece próximo de vencer, ao declarar-se a Entropia, a morte de todas as coisas, quando Sonho dá a réplica irretorquível:

- Eu sou a Esperança.

Choronzon não rebate. Como se derrota a Esperança? Sonho deixa o Inferno com seu elmo, vitorioso.

Dylan, protagonista de Matar ou Morrer, talvez pensasse numa tréplica capaz de silenciar o Sonho. Para ele, é impossível entender como alguém pode manter esperança de um futuro num mundo como este. A humanidade afunda em violência, corrupção e estupidez. O único planeta onde podemos viver está à beira do colapso. Como dar sentido à vida que se vive aqui?

Não que a esperança já tenha sido um ponto forte do rapaz: universitário tardio, reprimido e deprimido, ele já tentara dar cabo da própria vida antes e, quando o conhecemos, está a ponto de tentar novamente. Por ironia do destino, quando o pensamento de desistir o atinge, ele despenca para a morte e... não morre. Um ossinho quebrado aqui, outro ali, nada mais. Dylan não consegue acreditar na própria sorte.

Daí que, de repente, ele começa a enxergar um demônio. Um diabão horroroso, assustador, que diz tê-lo salvado da morte e, em troca, exige que ele mate uma pessoa ruim por mês, como pagamento. Caso se recuse, será ele, Dylan, a morrer. Nem chega a ser um dilema tão grande para alguém já tão puto com tudo: uma pessoa ruim por mês, num mundo tão cheio delas? Moleza.


Inicialmente, Dylan não quer ser um assassino – ou não teríamos como torcer minimamente por ele – mas cada vez que se recusa ou “esquece” de matar alguém, sua saúde começa a definhar e o demônio reaparece para lembrá-lo de sua “responsabilidade”. Então, ele não só prossegue, como vai ficando cada vez melhor na coisa, enquanto tenta manter seu segredo e levar uma vida normal – pelo menos, tão normal quanto alguém que enxerga demônios pode ter.

Há algo do cinema de Ethan e Joel Coen nas histórias da dupla Ed Brubaker e Sean Phillips. Seus protagonistas são quase sempre sujeitos ordinários, medíocres até, metidos em circunstâncias extraordinárias, das quais não encontram saída. Tudo parece mais ou menos sob controle, até que começa a dar muito errado e a espiral de infortúnios parece não ter fim.

Em tempos de “bandido bom é bandido morto” sendo usado como mote de campanha eleitoral, Brubaker parece querer que confrontemos nossas próprias convicções. É por isso que Dylan não parece louco – pelo contrário, ele tem retórica impecável. Gente que toma a justiça nas próprias mãos normalmente usa a indignação social geral ou a inação/ineficácia/leniência da lei como álibis para justificar o que fazem. É um discurso que apela aos piores instintos e muita gente cede facilmente a eles. Estamos torcendo pra Dylan se safar?


A dualidade moral das ações de Dylan não é a única dúvida na cabeça do leitor: ele está realmente sendo assediado por um demônio? O aspecto sobrenatural de Matar ou Morrer seria uma novidade na obra autoral da dupla. Aquilo é pra valer ou mero pretexto de Dylan pra fazer o que faz?

Cada uma das 20 edições (reunidas pela Editora Mino em quatro encadernados) termina com um gancho que deixa a gente nos cascos pela sequência. Com suas idas e vindas no tempo – muito por conta das pobres habilidades narrativas do protagonista – Brubaker e Phillips sustentam o suspense e o mistério até os momentos finais da série. Se um demônio (ou, pelo menos, um amigo) mandar você comprar, feche negócio!

Um comentário:

Marlo de Sousa disse...

RODRIGO, é daquelas coisas que a gente fica feliz em adquirir, né não? Você está certo, é leitura pra varar a madrugada, porque os ganchos são perfeitos, você fica ansioso pelo que vem a seguir! Fico feliz que tenha seguido esta dica e ficado satisfeito. Abraço!