20/02/2024

Como Pedra


O sertão nordestino pode ser bastante inóspito. Lembro de viajar ao lado de meu pai pelo interior baiano, quando criança, e passar por certos lugares que me faziam pensar: como é possível alguém viver aqui? Ainda hoje, é uma pergunta que me faço, ao passar por lugares onde parece faltar o básico que garanta uma mínima dignidade cidadã. Lugares onde não se vê muito mais que poeira, pedras e espinheiros. Se há água, não parece fácil apontar onde ela é encontrada.

A verdade é que ninguém quer morar mal. Ninguém quer passar por privações - muito menos, aquelas que têm o poder de enfraquecer o corpo e o espírito, como a fome. Sair do seu quinhão de terra natal em direção a uma cidade grande qualquer, porém, costuma ser caro, penoso e não oferecer qualquer garantia de que se vai “vencer na vida” (ainda mais considerando as noções deturpadas de sucesso e felicidade que alimentamos).

Cristo, como prefere ser chamado Cristóvão, vive com sua mulher sem nome (sim, isso mesmo) e a filha Rosa. A menina, que falava e andava normalmente, um dia, simplesmente amanheceu em estado vegetativo e assim ficou. Com a aridez da caatinga acentuada pela prolongada falta de chuva, a família começa a ver-se tomada pelo desespero quando a já pouca ajuda do governo começa a falhar. Certo dia, o filho adulto do casal volta para casa, trazendo consigo uma figura que muda a dinâmica das coisas... e mostra que pode haver perigos maiores que a natureza inclemente.

Luckas Iohanathan é um artista e roteirista nascido em Mossoró, RN, que vive na Argentina. Sua estreia deu-se em O Monstro Debaixo da Minha Cama, de 2020, vencedora de prêmios como o Troféu HQMix. Como Pedra é uma obra forte e sensível, que mostra a fibra dos sertanejos que – por opção ou falta de uma – enfrentam os rigores do nordeste brasileiro, além de alertar para o estrago que o fanatismo religioso pode causar para os desesperados. O traço de Luckas é econômico e, curiosamente, bastante cinético. As cores usadas são apenas branco, preto e laranja, o que ajuda na construção do cenário de pobreza e calor. A edição da Comix Zone, em capa dura e papel de excelente qualidade, não é barata, mas vale a pena ficar de olho em promoções.

Apesar de não ter nome, a mulher de Cristo é a personagem central de Como Pedra. É ao seu redor que os principais eventos tomam forma e, quase sempre, é de sua percepção que o leitor acompanha tudo. Ela é, ainda, a pessoa mais sensata em cena, mantendo-se em luta e agarrada à própria sanidade, enquanto Cristo sucumbe – primeiro, ao desespero e, depois, ao que parece a saída mais fácil, uma saída que apenas agiganta sua própria tragédia.

Embora possamos contar com um final redentor, ele também faz parecer que a vida apenas coloca a mulher diante de um novo tipo de dificuldade. A vida é dura como pedra. Ninguém passa por ela sem marcas, e não são poucas as que ficam na mente e no coração de quem lê este quadrinho arrebatador.

3 comentários:

Luwig Sá disse...

Me interessei. Fui na Amazon ver o preço... Caramba, é uma pedrada também. 🙃 Vou ficar de olho numa promoção. Impressão minha ou o título tem duplo sentido...?!

doggma disse...

Parece espetacular realmente. A palheta parece herdada da fotografia que os filmes americanos usam para retratar o México. Sempre aquele filtro alaranjado reforçando a sensação de calor, aridez e desolação. Os chicanos ficam putos, rs.

Já joguei no carrin... ops, na lista dos desejos. O valor é justo, o bichão é encorpado, mas não custa segurar um pouquinho por uma promocha.

O problema é que as do material CZ são bem limitadas. E quase sempre no meio da madruga...

Marlo de Sousa disse...

LUWIG, eu cheguei a pensar que o título era um trocadilho com a situação de penúria, mas não há nada do tipo na história. Felizmente.

DOGGMA, americano estereotipar mexicano é o mínimo. Pior foi tomar o Texas, hahaha! Nunca vejo essas editoras de "petardos" fazendo promoções generosas. Achei justos os 56 que paguei, mas 90 são o dinheiro de comprar uns 3 kg de carne boa.

Abraços, amigos!