18/04/2024

Sr. e Sra. Smith


Após concluir Sr. e Sra. Smith, a série, eu quis rever o filme de 2005, no qual é inspirada, com Brad Pitt e Angelina Jolie, para efeito de comparação. O filme foi um desses que demorei bastante a assistir, e só o havia feito uma vez. Lembro de ter pensado que parecia ser apenas um enorme comercial de perfume, no qual o casal mais bonito de Hollywood apenas desfilaria sua “boniteza” pela tela. Estava errado, claro: era fruto da imaginação ainda afiada de Simon Kinberg e dirigido por Doug Liman, um sujeito que quase nunca erra quando o assunto é ação com humor.

Sim, Pitt e Jolie estão lindos na tela (especialmente, ela) e, mesmo que o filme não seja lá muito exigente em termos de drama, exibem talento (especialmente, ele, que tem cenas impagáveis de humor físico). O estopim da briga entre o casal é meio fuleiro: eles são designados para a mesma missão, acabam se atrapalhando mutuamente e já partem para matar um ao outro, com sangue no olho e sem diálogo, mesmo após cinco – seis? – anos de casados, nos quais um não sabia da vida dupla que o outro levava. Precipitação é eufemismo.

Com oito episódios de cerca de 60 minutos para desenvolver sua trama, a série do Prime Video faz tudo com muito mais paciência e lógica. Donald Glover e Maya Erskine (em papel que antes seria de Phoebe Waller-Bridge) são os novos John e Jane Smith, completos estranhos um ao outro. Eles são designados para viver juntos e cumprir missões dadas por alguém que apelidam de Oioi, porque é assim que o misterioso chefe os cumprimenta no “zap do trabalho”, antes de passar suas instruções.

Donald Glover e Maya Erskine: chumbo trocado dói, sim!

As missões começam relativamente fáceis, mas, desde a primeira, John e Jane percebem que existe risco real envolvido. Conforme a dificuldade dos trabalhos aumenta, os dois vão se conhecendo melhor e acabam apaixonados – e é claro que misturar trabalho e sentimentos começa a comprometer a eficiência do casal de agentes, que só tem permissão para fracassar em suas missões três vezes.

O filme contava com muita gente boa, como Kerry Washington, Jennifer Morrison e Michelle Monaghan, mas em papéis modestos, meras escadas para o casal de astros. Adam Brody, sendo o pivô da missão que detonava a briga dos Smiths, teve sorte um pouco melhor. O filme ainda tinha Vince Vaughn, péssimo como sempre e irritante como nunca.

Na série, o elenco coadjuvante é estrelado e seus personagens têm função na história e tempo para brilhar. Gente como Paul Dano, John Turturro, Micaela Coel, Parker Posey e Wagner Moura – este último rouba para si cada cena em que aparece, exalando charme e desembaraço com o inglês. Há até piada com isso, quando John diz para Jane: “É aquele sotaque, né? A gente fica com vontade de ajudá-lo”.

Wagner Moura: dono ladrão da porra toda!

O luxuoso auxílio desses atores, porém, não significaria muito, caso o novo casal de protagonistas não desse conta do recado. Donald Glover e Maya Erskine são ótimos no humor, no romance e na ação, mas de um jeito bem mais “pé no chão” que o casal do filme. Primeiro, são donos de uma beleza bem diferente daquela. São bonitos, mas não parecem (perdão, se me repito) modelos em um comercial de perfume (e é de Glover a sensualidade mais explorada). Suas personalidades possuem tantas camadas interessantes, que é até covardia comparar os novos Smiths com os antigos. Os tiroteios não são posados e acrobáticos. Muita coisa dá errado para eles e tudo tem consequências.

Quando a coisa finalmente chega ao ponto em que um tenta matar o outro, já rolou muita água, amor e mágoa entre eles. A gente entende como eles chegaram ali (e aquela inesperada fatalidade do primeiro ataque certamente não ajudou). Acaba que a série, por melhor que seja como entretenimento de ação, revela-se um tratado sobre a incomunicabilidade – não apenas entre casais, mas entre pessoas – e como essa dificuldade em expressar sentimentos – um sério mal de nosso tempo – pode arruinar até as coisas mais belas.

Não quer dizer que Sr. e Sra. Smith seja uma série “cabeça”. Ela é inteligente, bem escrita e bem interpretada, não desaponta como espetáculo de ação e consegue fazer que nos importemos com o casal, temendo pelos desafios que enfrentam entre si e pelos perigos que correm em suas missões. Assim como foi com o filme, demorei a dar o play na série, mas, agora – especialmente, após o tenso gancho do último episódio – mal posso esperar por uma nova temporada!

15/04/2024

Kula Shaker - Natural Magick (2024)


Já beirando os 30 anos de carreira, o Kula Shaker não teve qualquer atenção de minha parte desde sua estreia. Foi apenas bem recentemente que dei um play em "Tattva", seu primeiro single. Achei legal e tal, mas não me animou a parar pra escutar sua discografia. O KS faz parte de uma leva de bandas britânicas de variadas ascendências asiáticas, surgidas na década de 90, que incluía, por exemplo, o Cornershop e o Asian Dub Foundation. Apesar de pinçar umas boas faixas aqui e ali, não foi uma geração que me cativou tanto assim.

No comecinho de fevereiro, eu abro meu Spotify pra escutar um sonzinho e me chega a recomendação do novo álbum do Kula Shaker. "Tá, bora ver qual é", pensei. 46 minutos e 13 belas canções depois, eu só conseguia pensar que há tempos não me divertia tanto com um disco de rock, desde já um dos melhores do ano.

A primeira faixa de Natural Magick é "Gaslighting", com guitarra, bateria e teclados Hammond absolutamente matadores, sobre os quais o vocalista Crispian Mills exalta a chegada de uma "era aquariana de comunicação e re-humanização". Se você se pegar batendo palmas, marcando o ritmo com o pé, fazendo air guitar, balançando a cabeça ou sacudindo o corpo, não se preocupe: essas são reações naturais ao bom rock psicodélico.

A herança hindu do KS aparece na letra em idioma vigilar da bonita "Chura Liya (You Stole My Heart)" (com um sabor estradeiro texano e metais mariachi) e na altamente assobiável "Indian Record Player". A cítara em "Something Dangerous" emoldura versos como "não tenho vergonha de chorar/pois estou chapado, chapado, chapado/como nunca achei que pudesse estar". Impossível não imaginar como um show com esse repertório deve ser dançante e poderoso.


Kula Shaker: Alonza Bevan, Crispian Mills, Paul Winterhart e Jay Darligton

E aí, no meio do disco, quando você acha que não vai nem conseguir parar pra respirar, a banda desacelera e entrega um baladão maravilhoso, "Stay With Me Tonight". "Happy Birthday" é um momento hare krishna e mesmo isso tem um sabor de rock and roll perene. Aliás, esta é uma grande virtude deste álbum: embora seja obra de uma banda com três décadas de atividade e esteja pautado sobre uma escola musical com seis décadas de existência, tudo soa muito moderno. É música para se ouvir em qualquer momento da História.

"Idontwannapaymytaxes" (eu não quero pagar meus impostos) é a classe operária dando o dedo médio pra classe política inglesa, que se mete (e gasta) cada vez mais com intervenções militares. "F-Bombs" vai na mesma toada, com citações hilariamente equivocadas: "acho que foi Mahatma Ghandi, ou talvez tenha sido Groucho Marx, quem disse, num de seus momentos mais lúcidos, 'foda-se a guerra!'" Já perto do fim, "Whistle and I Will Come" é uma power ballad que o Oasis teria se orgulhado de gravar.

Temos aqui um monte de riffs de guitarras inspiradíssimos, uma "cozinha" sólida e groovada, letras sagazes e um punhado de melodias absolutamente contagiantes. Se houvesse alguma justiça neste mundo, tão distraído com vinhetas e coreografias de TikTok, o Kula Shaker estaria lotando estádios e Natural Magick seria item da cesta básica. Para nossa sorte, o rock não apenas está vivo: ele também está com um tesão indecente!

* * * * *

Kula Shaker
Natural Magick
Produzido por Crispian Mills, Alonza Bevan e Kevin Nixon
Lançado em 2 de fevereiro de 2024

01 - Gaslighting
02 - Waves
03 - Natural Magick
04 - Indian Record Player
05 - Chura Liya (You Stole My Heart)
06 - Something Dangerous
07 - Stay With Me Tonight
08 - Happy Birthday
09 - Idontwannapaymytaxes
10 - F-Bombs
11 - Whistle and I Will Come
12 - Kalifornia Blues
13 - Give Me Tomorrow

11/04/2024

Pobres Criaturas


“Didático” é um termo muito utilizado para qualificar filmes que não fazem questão de sutileza ao promover seu valor moral central. Acontece que somente pessoas já minimamente confortáveis com a questão social apresentada percebem o suposto didatismo – o filme, de certa forma, não foi feito para elas. É claro que um(a) feminista vai achar, por exemplo, Barbie um filme didático em seu feminismo. A mensagem é para quem ainda não entendeu o recado, já passado tantas vezes antes.

Não é muito diferente agora, com Pobres Criaturas, igualmente “didático” como peça feminista – com a diferença de que, enquanto Barbie pegou a estrada da fofura e do deboche, o filme de Yorgos Lanthimos escolheu o bem mais tortuoso caminho do surrealismo e da luxúria. Indicado em impressionantes 11 categorias no último Oscar, Pobres Criaturas saiu da festa com quatro deles: maquiagem e cabelo, figurino, design de produção e melhor atriz para Emma Stone, muito mais merecedora do que em 2017, quando venceu com La La Land.


Uma dessas personagens que entram sem escala para a História do Cinema, a Bella Baxter interpretada por Stone é uma espécie de Frankenstein fêmea: ela é o corpo de uma mulher suicida com o cérebro da bebê que carregava dentro de si ao morrer, trazida de volta à vida pelo Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) - apelidado, sem modéstia alguma, de “God” – ele próprio, um tipo de Frankenstein em experiências malucas realizadas por seu pai.

Como já chegou ao mundo crescida, vemos Bella amadurecer de forma extremamente rápida – com ações, expressões e falas infantis dando lugar às de uma mulher bastante segura e assertiva – e não digo exatamente “questionadora” porque Bella, criada por “God” (e há tantos sentidos nisso) sequer entende por que alguém viveria, senão segundo seus próprios desejos. Ela não conhece nem reconhece nada além da liberdade.


Enxergo um pouco do cinema de Wes Anderson nos cenários surreais com cores intensas e na conduta bizarra dos personagens. O elenco central (que, além de Stone e Dafoe, conta com Mark Ruffalo em grande momento) mergulha de cabeça, abraçando a excentricidade do roteiro de Tony McNamara (que já havia trabalhado com Lanthimos em A Favorita), o que certamente facilita para o espectador divertir-se com aquele ultraje final, quando o realismo dá um adeus definitivo e uma figura nefasta da vida anterior de Bella encontra seu destino.

Provavelmente, Pobres Criaturas só incomodou menos do que Barbie porque, afinal, não é um filme para as massas. Além de ser muito sexual (o que não significa que seja erótico), exige atenção, desprendimento e comprometimento intelectual que muita gente, hoje em dia, não parece muito disposta a empregar. Este é um problema do mundo, porém, não desta bela obra. É exatamente por causa das pessoas que vão achar seu feminismo “militante” ou “doutrinador” que ele existe e prova-se necessário. Quem dera todo filme “didático” fosse sempre tão interessante.

Pobres Criaturas pode ser visto no Star+.