11/04/2024

Pobres Criaturas


“Didático” é um termo muito utilizado para qualificar filmes que não fazem questão de sutileza ao promover seu valor moral central. Acontece que somente pessoas já minimamente confortáveis com a questão social apresentada percebem o suposto didatismo – o filme, de certa forma, não foi feito para elas. É claro que um(a) feminista vai achar, por exemplo, Barbie um filme didático em seu feminismo. A mensagem é para quem ainda não entendeu o recado, já passado tantas vezes antes.

Não é muito diferente agora, com Pobres Criaturas, igualmente “didático” como peça feminista – com a diferença de que, enquanto Barbie pegou a estrada da fofura e do deboche, o filme de Yorgos Lanthimos escolheu o bem mais tortuoso caminho do surrealismo e da luxúria. Indicado em impressionantes 11 categorias no último Oscar, Pobres Criaturas saiu da festa com quatro deles: maquiagem e cabelo, figurino, design de produção e melhor atriz para Emma Stone, muito mais merecedora do que em 2017, quando venceu com La La Land.


Uma dessas personagens que entram sem escala para a História do Cinema, a Bella Baxter interpretada por Stone é uma espécie de Frankenstein fêmea: ela é o corpo de uma mulher suicida com o cérebro da bebê que carregava dentro de si ao morrer, trazida de volta à vida pelo Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) - apelidado, sem modéstia alguma, de “God” – ele próprio, um tipo de Frankenstein em experiências malucas realizadas por seu pai.

Como já chegou ao mundo crescida, vemos Bella amadurecer de forma extremamente rápida – com ações, expressões e falas infantis dando lugar às de uma mulher bastante segura e assertiva – e não digo exatamente “questionadora” porque Bella, criada por “God” (e há tantos sentidos nisso) sequer entende por que alguém viveria, senão segundo seus próprios desejos. Ela não conhece nem reconhece nada além da liberdade.


Enxergo um pouco do cinema de Wes Anderson nos cenários surreais com cores intensas e na conduta bizarra dos personagens. O elenco central (que, além de Stone e Dafoe, conta com Mark Ruffalo em grande momento) mergulha de cabeça, abraçando a excentricidade do roteiro de Tony McNamara (que já havia trabalhado com Lanthimos em A Favorita), o que certamente facilita para o espectador divertir-se com aquele ultraje final, quando o realismo dá um adeus definitivo e uma figura nefasta da vida anterior de Bella encontra seu destino.

Provavelmente, Pobres Criaturas só incomodou menos do que Barbie porque, afinal, não é um filme para as massas. Além de ser muito sexual (o que não significa que seja erótico), exige atenção, desprendimento e comprometimento intelectual que muita gente, hoje em dia, não parece muito disposta a empregar. Este é um problema do mundo, porém, não desta bela obra. É exatamente por causa das pessoas que vão achar seu feminismo “militante” ou “doutrinador” que ele existe e prova-se necessário. Quem dera todo filme “didático” fosse sempre tão interessante.

Pobres Criaturas pode ser visto no Star+.

2 comentários:

doggma disse...

E aí, Marlo!

Adorei a perspectiva. De certa forma, a "bolha God" em que Bella vivia foi essencial para a sua personalidade intocada por mitos, tradições e, principalmente, pelo patriarcado. Foi o que permitiu suas intensas aventuras e autodescobertas.

O personagem do Rufallo nem conseguiu anotar a placa. Não tinha a menor chance, coitado.

A direção de arte desse filme é estupenda. Por vezes lembra o clipe de "The Perfect Drug", no NIN, e até algumas coisas mais lisérgicas do conterrâneo Alex Proyas.

Ainda não vi Barbie...

Abração!

Luwig Sá disse...

Queria ter gostado mais desse filme... Entendi a moral & imoralidades da história, mas fiquei preso às comparações c/ A Favorita, do mesmo Yorgos. Temas e estética muito parecidas... Aquela câmera 360° então... O que pegou mais comigo foram as atuações acachapantes do Dafoe e a Stone; sempre c/ uma mãozinha de maquiagem e figurinos soberbos.