16/02/2024

Música & Mágica #1


MARISA MONTE
Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão
1994

Não faltam na internet artigos, vídeos ou podcasts dizendo que 1994 foi revolucionário na música brasileira. Aos tantos bons e novos artistas que surgiram ou se firmaram naquele ano, juntaram-se trabalhos expressivos de artistas já consagrados, das mais variadas vertentes.

Um notável salto qualitativo foi dado por Marisa Monte em seu terceiro álbum. Surgida em 1989, no que acabou sendo um boom de cantoras de MPB chamadas de “ecléticas”, Marisa foi lançada num disco de covers ao vivo, MM (contendo a inédita “Bem Que Se Quis”, versão de um hit italiano), começou a dar sinais de talento de compositora no segundo álbum, Mais (1991), e chegou ao terceiro disco cercada de boas ideias e boas companhias.

Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão é uma incomparável coleção de canções simpáticas, interessantes e comoventes. Para alcançar tal resultado, Marisa trouxe a bordo parceiros como Nando Reis, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown e dividiu a produção com um gringo acostumado à música brasileira, Arto Lindsay (que produziu, por exemplo, O Estrangeiro, de Caetano Veloso).

O disco tem brilho pop e ostenta uma brasilidade orgulhosa, mesmo ao servir um clássico do rock, como “Pale Blue Eyes”, de Lou Reed, toda em violão e percussão. As covers do álbum incluem “Dança da Solidão”, de Paulinho da Viola, com Gilberto Gil provendo violão e vocais; a suingada “Balança Pema”, de Jorge Benjor; e “Esta Melodia”, de Jamelão, em que Marisa expõe sua veia sambista, abrindo com o violão triste de Paulinho da Viola e desaguando em versos doloridos (“não suporto mais tua ausência / já pedi a Deus paciência”).

É nas canções inéditas, porém, que Marisa Monte mais contribui na criação de um modelo de pop altamente melódico e com os dois pés fincados na música brasileira. Exceto por “De Mais Ninguém”, uma seresta ortodoxa escrita por (pasme!) Arnaldo Antunes e executada pelo grupo de choro Época de Ouro, tudo mais vinha embalado em um frescor que só mesmo a “madura juventude” de seus parceiros poderia proporcionar.


A primeira do disco, “Maria de Verdade”, tem grife Carlinhos Brown, com rimas percussivas na letra que fala de uma mulher que se sente forte o bastante sozinha para entregar-se a outra pessoa – “mesmo que doa, Maria”. Também é dele a monumental “Segue o Seco”, com sua percussão abrindo a estrada por onde a sanfona de Waldonys serpenteia, nordestina em sonoridade e temática. Em parceria com Marisa e Nando Reis, ele ainda entrega a mais perfeita “carta de intenções” do disco, “Na Estrada”, uma melodia solar e ótima de cantar junto.

Além de “De Mais Ninguém”, Arnaldo Antunes contribui com “Bem Leve”, parceria com Marisa, que fala de aceitação da morte de uma maneira, digamos, bem leve. “Alta Noite” é, tecnicamente, uma cover, mas quem é que lembra da versão contida em Nome, primeiro disco solo de Arnaldo, do ano anterior? O belíssimo arranjo de cordas, violão e percussão acentua a solidão resignada do personagem na letra.

“Ao Meu Redor”, de Nando Reis, é aquilo que sentimos quando não conseguimos deixar de pensar em alguém, mesmo e principalmente quando essa pessoa não está por perto. “O Céu” é sobre o céu, mesmo, a coisa mais rock and roll em um álbum sem guitarras. Nando e Marisa brilham excepcionalmente, porém, em “Enquanto Isso”, uma reflexão sobre como as coisas estão acontecendo sempre e em toda parte, mesmo longe de nosso olhar, numa narrativa em tempo reverso, da madrugada à alvorada. Uma versão em inglês da letra é falada por Laurie Anderson, artista conceitual e viúva de Lou Reed.

Num ano em que artistas como Chico Science e tantos outros buscavam uma nova identidade musical que fosse simultaneamente brasileira e cosmopolita, Marisa foi uma das que estavam mais atentas aos ventos que sopravam naqueles tempos.  Menos ousada que seus contemporâneos, talvez, mas ciente de que um pop brasileiro de fato (não apenas feito no Brasil) era possível, Marisa encheu nossos olhos e ouvidos com um disco lindo em forma e conteúdo.

*   *   *   *   *

Marisa Monte
Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão
Produzido por Arto Lindsay e Marisa Monte
Lançado em 29 de Julho de 1994

01 - Maria de Verdade
02 - Na Estrada
03 - Ao Meu Redor
04 - Segue o Seco
05 - Pale Blue Eyes
06 - Dança da Solidão
07 - De Mais Ninguém
08 - Alta Noite
09 - O Céu
10 - Bem Leve
11 - Balança Pema
12 - Enquanto Isso
13 - Esta Melodia

4 comentários:

doggma disse...

Fala, meu chapa! Que bela supresa esse textaço sobre o "Rose and Charcoal".

Este disco é a perfeição. O trabalho de cordas é sublime e a produção do Arto é afiadíssima. Em termos de repertório e arranjos, é bem mais coeso que os anteriores - apesar de adorar os sabores world do Mais.

Pra mim, é a partir daí que a Marisa assimila a catimba sambista em definitivo. Ela passeia pelo folk e pela psicodelia nova-iorquina à Velha Guarda da Portela de forma impecável.

O paralelo com a geração do Science foi ótimo. Tipo de coisa que o jornalismo musical alternativo da época até poderia ter se atentado, caso não nutrisse um recalque gigante pela artista.

Ps: botei muito "Maria de Verdade" como despertador (CD da minha irmã, que era fissurada na MM)... se insistisse em não acordar com os violões e as harmonias dos primeiros segundos, as percussões do Carlinhos Brown e do Suzano e a batera do Jorginho Gomes (que banda!) resolviam a parada...

Marlo de Sousa disse...

DOGGMA, faz tempo que eu tava me devendo um texto sobre esse disco. Ele é fantástico e um dos primeiros que me vêm à cabeça quando penso naquele 1994 histórico da música brasileira.

Tenho uma história curiosa envolvendo "Enquanto Isso": ela foi a trilha do que deve ter sido uma experiência extracorpórea ou coisa do tipo. Me lembro de me sentir "preso" entre estar dormindo e acordado, e a música (que tocava baixinho perto de mim) parecia que tinha forma ou textura, não sei - só sei que era uma percepção diferente. Mesmo hoje, ela toca no som e toca alguma coisa em mim, também.

Abraço!

doggma disse...

Interessante é que a própria letra da música se relaciona com a sua experiência.

Vai aí um relato pessoal. Não sei bem se é a mesma experiência que a sua, mas lá pelo final dos meus 20 até a metade dos 30 tive muita paralisia do sono (basicamente, a mente desperta durante o sono e o corpo não). Depois de um período de absoluto cagaço, em que só acordava com muita dificuldade, urrando, dando chutes e socos no ar, soube que era "só" manter a calma que passava. E funcionava.

Também descobri que era possível levantar naquele estado de transição. Se ver dormindo, olhar ao redor e tal. Tirei a "prova dos 9" algumas vezes, pra ver se aquilo era real mesmo ou era alguma viagem da bioquímica do sono.

Numa dessas de projeção à Stephen Strange, quando ia levantar, alguém me disse (só ouvi a voz, mas sei quem é): "não faz isso, não". E me empurrou de volta. Acordei na hora, com o céu começando a clarear, uma puta sensação de surrealidade.

Nunca mais tive a paralisia. O que foi um alívio e uma pena.

Provavelmente foi melhor. Lendo a respeito, soube que essas experiências são muito arriscadas, especialmente para leigos como eu.

Abração!

Marlo de Sousa disse...

Olha isso, cara... Um dia, vou criar coragem pra escrever sobre minha única experiência com ayahuasca - mas se eu tive coragem de contar em detalhes minha cirurgia de hemorroidas (ainda no finado Gotham City), falar de um transe psicodélico é mato. Abraço, Dogg!