10/06/2025

The Ting Tings - Home (2025)

 

Sendo bastante honesto, uma das últimas coisas que eu esperava estar fazendo em meados de 2025 era escrever sobre um disco do The Ting Tings, porque, por mais simpáticas que as canções da dupla (e casal) Katie White e Jules De Martino fossem, elas sempre me deram aquela impressão de fast food musical. Lá em 2008, “That’s Not My Name” e “Shut Up and Let Me Go” surgiram como pílulas de escapismo dançante e estridente, e, para mim, morreu aí – até que, em 2014, a ótima “Wrong Club” surfou as marolas do tsunami disco que foi “Get Lucky”, do Daft Punk, do ano anterior.

Vai ver que a culpa é minha, já que nunca havia colocado um disco do The Ting Tings pra tocar do começo ao fim, mas o fato é que, do meu ponto de vista, eles sempre estiveram, se tanto, na série C do pop, aquela multidão de esfomeados com (e/ou sem) talento e substância, que raramente consegue furar a resistente e pouco espaçosa bolha do topo das paradas. O Spotify, porém, entende que a minha obsessão com “Wrong Club” me qualifica como seguidor interessado e me sugeriu escutar Home, o novo álbum.

E, homi, não é que o danado é uma bela surpresa?

Pra começo de conversa, esqueça batidões, eletropop, disco, ou qualquer coisa que lembre os “velhos” Ting Tings - e que o fã me perdoe caso Home se pareça com Sounds From Nowheresville (2012) ou The Black Light (2018), dos quais não ouvi absolutamente nada – pois este aqui é um bonito álbum de soft rock, numa pegada eletroacústica que lembra Fleetwood Mac e Dire Straits, pasme! Tudo é muito melodioso, harmonioso e gostoso de ouvir, de uma elegância que remete imediatamente ao fim dos anos 1970. Não fosse um rótulo tão pedante (coisa que o disco não é), daria pra chamar de AOR (Adult-Oriented Rock), mas, melhor não.

Com seu título agridoce, “Good People Do Bad Things” já estabelece o tom do disco, com a bonita voz de Katie White sobre uma “cozinha” bastante segura e potente, desembocando num solo de guitarra que vai trazer à memória flashes de Mark Knopfler, do Dire Straits. “Dreaming”, a faixa seguinte, tem uma intro de tom épico, com loops de bateria e acordes ao piano elétrico, emoldurando uma melodia que não soaria equivocada na voz de Stevie Nicks, do Fleetwood Mac.

“Home” abre com harmonias vocais a cappella para desaguar num folk country marcial vigoroso, com Katie dividindo o canto com Jules. Lá pelo finzinho, ainda cabe um solo de sax tenor – e impressiona ouvir a riqueza desses arranjos, num tempo em que música é vista por muita gente como só mais um penduricalho numa trend de 15 segundos no TikTok. Home tem uma simplicidade opulenta e muito bem cuidada, por mais que o conceito soe contraditório.

Uma coisa que me agrada muitíssimo é o uso de bonitos solos de guitarra, esta instituição do rock praticamente sepultada nos tempos que correm. Em canções mais introspectivas e acústicas, como as vizinhas “In My Hand” e “Danced on the Wire”, Katie e Jules soam como James Taylor e Carole King modernos. Da virada inicial de bateria à explosão do refrão, “Song for Meadow” parece pinçada diretamente do repertório setentista de gente como Steely Dan, Player ou Christopher Cross.

A penúltima e reflexiva “Mind Thunder” revela questionamento e inquietação com os tempos atuais. Fechando o disco, “Down” é romantismo acústico levado ao violão, com um refrão feito pra uma plateia acompanhar, e sua calmaria só é interrompida pela chegada de piano, guitarra e sintetizadores discretos, num bonito crescendo, botando ponto final em um disco anacrônico (e o digo como um sincero elogio), cheio de beleza e virtude. Se é por este caminho de carinhosa nostalgia e altíssima qualidade que The Ting Tings vão de agora em diante, fico muito feliz em percorrê-lo com eles.

* * * * *

The Ting Tings
Home
Produzido por The Ting Tings
Lançado em 6 de junho de 2025

1. Good People Do Bad Things
2. Dreaming
3. Home
4. Goodbye Song
5. Winning
6. In My Hand
7. Danced on the Wire
8. Song for Meadow
9. Mind Thunder
10. Down

04/06/2025

Pecadores

O diretor estadunidense Ryan Coogler possui uma filmografia ainda pequena, mas que demonstra invejável solidez. Do modesto Fruitvale Station (2013) ao multimilionário Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022), Coogler usa seus filmes (que também roteiriza) como vitrine de suas fortes convicções, brandindo o dedo acusador na cara dos racistas. O fato de que conseguiu imprimir personalidade a dois filmes de um estúdio (Disney) notório por inibir visões artísticas muito particulares, em favor de uma mesmice homogeneizada, dá noção do cacife (ou da lábia) do homem – e, por mais divisivo que o segundo Pantera Negra tenha sido, a verdade é que ele fez uma montanha de dinheiro (cerca de 850 milhões de dólares) que deixou o estúdio bastante satisfeito.

À parte este tropeço (se é que dá para chamar assim um filme que ganhou o Oscar de design de figurino e rendeu a Angela Bassett sua segunda indicação), o cinema de Coogler é constante e vigoroso, expondo a injustiça da brutalidade policial americana (Fruitvale Station), dando ao espectador a sensação de estar no ringue durante lutas de boxe (Creed), celebrando uma África que não se curva diante das potências ocidentais (Pantera Negra) e, agora, com o novo Pecadores, atribuindo à música poderes sobrenaturais e retratando o racismo como um pacto de sangue para sugar tudo que se puder dos negros, figurativa e literalmente.

Após sete anos longe de Clarksdale, Mississipi, os gêmeos Elias e Elijah Moore (duplo papel de Michael B. Jordan) - ou Fumaça e Fuligem – estão de volta. Com o dinheiro que ganharam trabalhando com a Máfia italiana em Chicago (e com as bebidas que roubaram dela e da rival irlandesa), querem abrir um clube de blues em menos de 24 horas, numa velha serraria que compram de um velho membro da Ku Klux Klan, supondo (torcendo?) que ele entenda que dinheiro é dinheiro, não importando que venha de mãos brancas ou pretas.

Para abrir naquela mesma noite, os gêmeos contam com a ajuda de diversos amigos e parentes, entre os quais está o absurdamente talentoso primo Samuel Moore (Miles Caton), ou “Preacher Boy” Sammie, filho do pastor local, com um dedilhar tão preciso nas cordas de aço e uma voz tão calorosa que, segundo uma lenda, narrada nos primeiros segundos do filme, seria capaz de romper o véu do tempo e da realidade. O velho e pinguço pianista Delta Slim (Delroy Lindo) pode ter décadas a mais de experiência, mas Sammie nasceu com um dom para o blues que só pode mesmo ser descrito como sobrenatural.

O baile inaugural acontece e é um sucesso (embaçado apenas pelo baixo poder de compra da freguesia), mas acaba atraindo o vampiro Remmick (Jack O'Connell) e outros dois “convertidos”, que desejam entrar, em troca de gastar muito e tocar música de graça, mas são mantidos de fora pelo desconfiado Elijah – que ainda não sabe que eles são vampiros, mas aprendeu a desconfiar de todo e qualquer branco que chega com muita conversa mole – e vampiros, como se sabe, só entram no espaço alheio quando convidados. É claro que esta breve resistência será vencida, o baile virará um banho de sangue e a sobrevivência será privilégio de uns poucos.

Coogler mistura elementos de filmes de gângster, blaxploitation (gênero de filmes policiais dos anos 70 que agregava discussão de direitos civis e elementos da cultura negra) e terror, embalados em uma atmosfera carregada de tensão, misticismo e sensualidade. É o seu filme mais pessoal, sua primeira história 100% original – e como é bom a gente ver o sucesso de um filme que não é um remake ou continuação! É ainda melhor que este sucesso seja fruto de seus indiscutíveis méritos.

O elenco tem Delroy Lindo arrasando, pra variar. Hailee Steinfeld diverte como uma mestiça que passa por branca, desbocada ex-namorada de Fuligem. Jack O’Connell, como Remmick, é um vampiro irlandês caipira assustador – menos pelos dentes ou sede de sangue, e mais por seus modos suaves e por representar a rapinagem branca sobre a cultura negra: “nós queremos sua música, suas histórias”, diz ele, a certa altura. Todo o elenco é bastante competente e, em papel duplo, o astro Michael B. Jordan exala em dobro o habitual carisma.

Além de Jordan, outro parceiro recorrente de Coogler é o compositor sueco Ludwig Göransson, que se supera na trilha de um filme em que a música está no centro nervoso dos acontecimentos, especialmente quando está em cena o estreante Miles Caton, jovem músico que, ao contrário do que o filme sugere, teve apenas dois meses para se familiarizar com a guitarra do blues, revelação muito promissora. É arrepiante, quase paralisante, a espetacular cena em que Sammie se entrega à literal magia do blues durante o baile e, se é que consigo evitar spoilers, acontece a coisa mais legal vista no cinema em muito tempo. Um momento brilhante, que fãs e estudiosos da arte vão comentar para sempre.

Como parece que tudo tem que virar “franquia”, “universo” e outras bobagens, já houve quem perguntasse a Coogler se ele já pensa em uma continuação, ao que ele respondeu com uma sonora negativa: “eu nunca sequer penso nisso”, disse, em entrevista. Tomara que ele mantenha sua palavra, já que Pecadores tem um fim meio “devedor”, mas retorna, logo após os primeiros créditos, para dar conta do destino de certos personagens, em cena arrebatadora e saudosa, colocando um indiscutível ponto final. É claro que, aplicando-se a pre$$ão correta, Coogler pode mudar de ideia – ele é apenas humano, enfim – mas, torçamos que seja esperto e desapegado o bastante para não macular o próprio legado.