Violator compensou a espera, embora se possa argumentar que as sete outras canções do disco talvez não brilhem tão intensamente quanto os singles que o precederam. Porém, não se pode ficar indiferente ao romantismo e sensualidade desavergonhados de “World in My Eyes”, faixa de abertura e quarto single extraído, prova cabal de que o Depeche Mode ainda sabia o que funcionava nas pistas de dança. Aos poucos, porém, o synthpop da banda abria caminho para arranjos mais rock and roll, como em “Sweetest Perfection” e na já citada “Personal Jesus”, uma tendência que a banda ainda seguiria em futuros álbuns. Mesmo elas, porém, ainda que calcadas em frases de guitarra (e Martin Gore mostra muita segurança nas seis cordas), são entremeadas com precisos ruídos eletrônicos (o que é, também, efeito da ótima co-produção de Flood). As filosóficas e climáticas “Halo” e “Policy of Truth” estão entre as melhores coisas que a banda já produziu, mas somente a última tornou-se single (o terceiro). Martin Gore refere-se a “Halo” como uma “defesa da imoralidade, mas com certo senso de culpa”, ao som de uma batida forte e cordas sintetizadas grandiosas. Por sua vez, “Policy of Truth” fala das consequências de não guardar certos segredos, como um lapso de infidelidade. Abrir o jogo nem sempre vai ser visto com bons olhos: “Nunca mais outra vez, foi o que você jurou da vez anterior”. “Blue Dress” tem um romantismo quase pueril, advindo do poder sugestivo de um objeto tão simples – como um vestido azul: “Vista-o, eu nem preciso tocar (...) Diga que acredita no quanto é fácil me agradar / Porque, quando aprender, você vai descobrir o que faz o mundo girar”. Fechando os trabalhos, “Clean” põe sua clara inspiração em “One of These Days”, do Pink Floyd, a serviço de uma letra de Martin Gore que, embora deva estar tratando de seus próprios processos de terapia e autocontrole, cai como uma luva na voz de Dave Gahan, tendo sido ele o integrante que mais problemas teve com o abuso de drogas, chegando a sofrer overdose e quase morrer, em 1996. Já se vão 35 anos desde Violator e, ainda que o Depeche Mode não tenha mais estado tão proeminente no mundo pop, como esteve em 1990, e embora tenham perdido dois colegas (Alan Wilder saiu em 1995 e Andrew Fletcher morreu em 2022), Dave Gahan e Martin Gore seguem ativos e influentes (seu último álbum, Memento Mori, de 2023, começou a ser composto antes da morte de Fletcher e, sem querer, funcionou como elegia ao amigo). Não há como prever por quanto tempo mais o Depeche Mode ainda existirá, mas, no que tange à sua obra-prima dos 30 anos, eles podem relaxar: a regra não escrita foi respeitada com rigor. Violator é um clássico desde seu parto.
12/09/2025
Música & Mágica #7
Violator compensou a espera, embora se possa argumentar que as sete outras canções do disco talvez não brilhem tão intensamente quanto os singles que o precederam. Porém, não se pode ficar indiferente ao romantismo e sensualidade desavergonhados de “World in My Eyes”, faixa de abertura e quarto single extraído, prova cabal de que o Depeche Mode ainda sabia o que funcionava nas pistas de dança. Aos poucos, porém, o synthpop da banda abria caminho para arranjos mais rock and roll, como em “Sweetest Perfection” e na já citada “Personal Jesus”, uma tendência que a banda ainda seguiria em futuros álbuns. Mesmo elas, porém, ainda que calcadas em frases de guitarra (e Martin Gore mostra muita segurança nas seis cordas), são entremeadas com precisos ruídos eletrônicos (o que é, também, efeito da ótima co-produção de Flood). As filosóficas e climáticas “Halo” e “Policy of Truth” estão entre as melhores coisas que a banda já produziu, mas somente a última tornou-se single (o terceiro). Martin Gore refere-se a “Halo” como uma “defesa da imoralidade, mas com certo senso de culpa”, ao som de uma batida forte e cordas sintetizadas grandiosas. Por sua vez, “Policy of Truth” fala das consequências de não guardar certos segredos, como um lapso de infidelidade. Abrir o jogo nem sempre vai ser visto com bons olhos: “Nunca mais outra vez, foi o que você jurou da vez anterior”. “Blue Dress” tem um romantismo quase pueril, advindo do poder sugestivo de um objeto tão simples – como um vestido azul: “Vista-o, eu nem preciso tocar (...) Diga que acredita no quanto é fácil me agradar / Porque, quando aprender, você vai descobrir o que faz o mundo girar”. Fechando os trabalhos, “Clean” põe sua clara inspiração em “One of These Days”, do Pink Floyd, a serviço de uma letra de Martin Gore que, embora deva estar tratando de seus próprios processos de terapia e autocontrole, cai como uma luva na voz de Dave Gahan, tendo sido ele o integrante que mais problemas teve com o abuso de drogas, chegando a sofrer overdose e quase morrer, em 1996. Já se vão 35 anos desde Violator e, ainda que o Depeche Mode não tenha mais estado tão proeminente no mundo pop, como esteve em 1990, e embora tenham perdido dois colegas (Alan Wilder saiu em 1995 e Andrew Fletcher morreu em 2022), Dave Gahan e Martin Gore seguem ativos e influentes (seu último álbum, Memento Mori, de 2023, começou a ser composto antes da morte de Fletcher e, sem querer, funcionou como elegia ao amigo). Não há como prever por quanto tempo mais o Depeche Mode ainda existirá, mas, no que tange à sua obra-prima dos 30 anos, eles podem relaxar: a regra não escrita foi respeitada com rigor. Violator é um clássico desde seu parto.
30/07/2025
Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80, de Ricardo Alexandre
Eu entrei na década de 1980 com sete anos de idade. Os males da época, como ditadura, inflação, reserva de mercado e outros, não me preocupavam. Eu só queria saber de ler os gibis da Disney e da Turma da Mônica. Com o tempo, descobri Marvel e DC. Lia os meus, de amigos, de parentes. A bem da verdade, eu lia qualquer coisa que caísse nas mãos. Era meio como um tique nervoso.
Porém, quase um ano antes de começar a comprar gibis com meu próprio dinheiro (hábito que jamais abandonei totalmente, ao longo dos últimos 40 anos), me vi acometido por outras duas paixões: uma de ouvir e uma de ler.
A primeira delas já se insinuava para mim havia algum tempo: o rock and roll. Uma das memórias mais antigas que tenho é a de estar na casa de meus padrinhos, em Feira de Santana, por volta de 1979 e, insistentemente, repetir “(I Can’t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones, em seu toca-discos. Eu não fazia ideias das palavras que Mick Jagger estava proferindo – eu não sabia sequer quem era Mick Jagger! – mas isso não importava: aquela batida, aquela melodia e aquele refrão me pegaram de tal maneira naquele momento que, quase 50 anos depois, aqui estou eu falando deles. Em minha própria casa, eu me lembro que meu pai tinha, entre outros, a coletânea Shaved Fish e o álbum Double Fantasy, de John Lennon. “Mind Games”, “Instant Karma”, “Woman” e “(Just Like) Starting Over” tocavam até dizer chega – principalmente porque, pouco depois de lançar Double Fantasy, Lennon seria morto a tiros, e a comoção foi geral.
Em janeiro de 1985, meu amor pelo rock foi confirmado, carimbado e assinado em três vias timbradas com o acontecimento do primeiro Rock in Rio. Aquelas pessoas estranhas e legais, que eu já acompanhava por programas de clipes e FMs, estavam ali, “pertinho” (elas, no Rio; eu, em Ibotirama, no remoto oeste baiano), e eu sempre queria assistir aos compactos que a Globo exibia nas tardes de sábado. Ao lado de grandes nomes estrangeiros, estavam muitas das bandas que, nos últimos cinco anos, estavam dando forma a um rock brasileiro totalmente diferente do modelo que existiu por aqui em décadas anteriores. Entrando na adolescência, eu me via muito ligado naquilo tudo. O rock era o momento.
Em agosto do mesmo ano, surgia minha segunda grande paixão: a revista Bizz, dedicada à música em geral, mas com foco majoritário no rock. Era anunciada na Globo em comerciais engraçadinhos, protagonizados por Marcelo Tas. As três primeiras traziam Bruce Springsteen, Madonna e Nina Hagen nas capas. A primeira que comprei foi a quarta edição, com Gilberto Gil. Longe demais de qualquer grande centro, onde eu pudesse sintonizar uma FM rockeira qualquer, era impossível reconhecer 95% dos nomes que eu lia nela. Mesmo assim, a Bizz foi, pouco a pouco, tornando-se uma espécie de oráculo musical para mim, moldando meus gostos e minhas opiniões – e isso, em alguns casos, revelava-se um problema que eu demorava a reconhecer. Ao longo dos anos, tive que derrubar muitos preconceitos musicais que eu ergui com ajuda da revista.
Apesar disso, a Bizz mais me ajudou do que prejudicou. Foi por meio dela que conheci vários de meus artistas favoritos até hoje em dia. Seus articulistas eram gente que acabava virando “amigos” distantes para o adolescente solitário e em conflito que eu era. Escrever para ela era um sonho que movia certa ambição minha de ser jornalista (carreira que nunca persegui). Minhas edições eram cuidadosamente dispostas em minha estante e relê-las era um perpétuo prazer. Ela acabou duas vezes: a primeira, em 2001. Depois, voltou para mais uma temporada em 2005, acabando de vez em 2007. Não houve e não haverá revista como a Bizz – até porque, hoje em dia, quem ainda compra revista?
O editor que reabriu e fechou as portas foi Ricardo Alexandre, cuja obra autoral inclui um dos livros que me ajudaram a eleger biografias como meu gênero literário favorito: o ótimo Nem Vem que Não Tem: a Vida e o Veneno de Wilson Simonal. É ele o autor de Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80, um belíssimo relato da dor e da delícia daqueles tempos em que citar Caetano Veloso, como fiz agora, era um tremendo vacilo. Sua primeira publicação data de 2002, mas a edição que li foi a comemorativa de 10 anos, com novas anotações.
Em mais de 400 páginas, Dias de Luta detalha o clima que reinava no país, naquela virada de década dos 70 pros 80, quando o Brasil aos poucos se abria para o mundo, com uma juventude sedenta por uma renovação cultural que escapasse, com igual desenvoltura, da sanha moralista do governo e do pedantismo que havia tomado conta da MPB “oficial”: como na profética canção de Belchior, os ídolos ainda eram os mesmos, e os mais jovens não se viam refletidos neles.
Acertadamente, o autor estabelece o disco homônimo de Rita Lee de 1979 (aquele com “Mania de Você” e “Doce Vampiro”) como a pedra fundamental da linguagem musical da década à frente e, se você estava vivo então, certamente se lembra do furacão que ele representou. Já a partir de 1980, as coisas começariam a tomar formas loucas e seguir caminhos inesperados, com uma naturalidade contagiante. Em pouco tempo, quando ficou impossível negar a juventude como uma força de consumo, os olhos da indústria se voltariam para o novo rock brasileiro e, para o bem e para o mal, as coisas nunca mais seriam as mesmas.
De Gang 90 & As Absurdettes em 1980 aos Inimigos do Rei em 1989, a linha evolutiva do rock nacional é destrinchada com precisão por Ricardo Alexandre, que destaca, em relatos mais extensos, as bandas e artistas que formaram a linha de frente do rock nacional, como Blitz, Barão Vermelho, Os Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, RPM, Titãs, Ira! e Legião Urbana. Ainda que as frentes carioca (do “rock de bermudas”) e paulista (dos punks e alternativos) tenham predominância, existe espaço para comentar cenas menores, como as de Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte.
As histórias de bastidores e entrevistas ajudam a elucidar episódios que, para mim, ainda eram nebulosos – menos por falta de fontes e mais por mero esquecimento de buscar a verdade – como as razões para o fim da Blitz e para o sumiço da obra de João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, e por que tantos artistas de sucesso jamais eram vistos no programa do Chacrinha, entre outros.
As histórias de formação das bandas e os bastidores das gravadoras e shows renderiam (algumas até já renderam) livros à parte, tantos que são os lances de sorte e azar, esperteza e burrice, amor e ódio, ruína e superação. Dias de Luta funciona como um muito eficiente resumo da trajetória de uma geração que, na raça, peitou e subverteu as regras do jogo, criando todo um contexto cultural que se estendeu para muito além da música. De tudo, porém, foi principalmente ela que ficou, e o grande barato da leitura é revirar nossa própria memória e perceber que foi sensacional estar vivo para testemunhar, de perto ou de longe, em tempo mais ou menos real, os impactantes eventos reunidos nestas páginas. Belíssimo livro.
21/07/2025
Música & Mágica #6
Acústico MTV
2000
Música & Mágica é uma seção deste blog dedicada a discos clássicos. Eu tento sempre mantê-la restrita a álbuns originais, mas algumas coletâneas e discos ao vivo acabam tornando-se tão representativos dentro da obra de certos artistas, que fica difícil negar seu status. Foi por esta “brecha na lei” que o Acústico MTV do Capital Inicial ganhou sua vez: ele funcionava muito bem como retrospectiva dos primeiros 15 anos de carreira do Capital e sedimentava a volta à boa forma, alcançada com o álbum Atrás dos Olhos, de 1998. Trouxe algumas das versões definitivas para os clássicos da banda e ótimas novas canções e participações especiais, fazendo sucesso avassalador.
Um pouco de contexto: exceto pelo primeiro álbum, quando “Música Urbana” era escutada em toda parte, o Capital Inicial (Dinho Ouro Preto, Lôro Jones, e os irmãos Felipe e Flávio Lemos) não conseguiu mais furar a bolha da “série B” do rock brasileiro. Nenhum hit posterior, como “Independência”, “Fogo” ou “Mickey Mouse em Moscou”, repetia aquele êxito ou, muito menos, colocava o Capital em pé de igualdade com outras bandas nacionais em grande momento criativo naquela virada dos anos 80 para os 90, como Titãs e Paralamas do Sucesso.
Muito disso vinha do fato de que personalidade não era o forte do som do Capital Inicial. Até que Dinho Ouro Preto começasse a cantar, uma música deles podia estar tocando e dificilmente alguém diria “isso parece Capital Inicial”. A cada disco, a banda era espinafrada pela crítica musical – e eu, que nunca fui muito fã, cedia ao alerta de prevenção e mantinha distância segura. Em 1992, o tecladista Bozo Barretti (agregado em 1987) deixou a banda. Pouco depois, foi a vez de Dinho abandonar o barco e tentar carreira solo. O Capital chegou a gravar um álbum, Rua 47, com um novo vocalista, Murilo Lima. O impacto foi zero.
A maré virou quando a formação original se reuniu e gravou Atrás dos Olhos – de fato, um belo disco, maduro e bem-produzido. “O Mundo” e “Eu Vou Estar” foram hits, e o Capital foi convidado a gravar seu Acústico MTV, um formato que, celebrando 10 anos na MTV Brasil, já dava sinais de desgaste, mas ainda funcionava – e, caramba, como funcionou para o Capital! Os números definitivos nunca foram divulgados, mas o CD recebeu disco de platina triplo. Por conta da pirataria, as vacas eram tão magras naquela virada de século que bastava vender 100.000 cópias para receber um disco de platina, mas não seria surpresa se os números estivessem muito acima dos 300.000, porque onde quer que se fosse, ali estava tocando uma música do álbum. Uma altamente improvável “capitalmania” assolou o país.
O sucesso veio por indiscutível mérito: o formato acústico deu novo frescor ao repertório da banda e as músicas inéditas escolhidas tinham potência e gancho pop. Como bons punks, o Capital abriu mão da pompa de violinos ou metais. Ao de Lôro Jones, foram acrescidos os violões de Kiko Zambianchi e Marcelo Sussekind (que também toca slide guitar e produz o disco). Aislan Gomes ficou com o órgão Hammond e Denny Conceição com a percussão. A única convidada especial do disco, Zélia Duncan, toca bandolim na bonita "Eu Vou Estar". Os arranjos enxutos e precisos foram coroados com a ótima performance vocal de Dinho (que não perdeu, mas aprendeu a dosar melhor os cacoetes que irritavam seus detratores).
O disco abre com uma bela versão desacelerada de “O Passageiro”, cover de “The Passenger”, de Iggy Pop. Em seguida, “O Mundo” (um clássico instantâneo composto por Pit Passarell) explode com pegada forte e arrepiantes riffs de Hammond. A primeira inédita, “Tudo que Vai”, é uma pepita pop de alto quilate, parceria de Alvin L. com Dado Villa-Lobos e Toni Platão, com caprichadíssima entrega de Dinho.
A leveza acústica trouxe à tona belezas antes escondidas em arranjos confusos ou equivocados, caso de “Independência” e “Fogo”. A segunda inédita, “Natasha” é uma bobagem sobre uma garota “rebelde” que parece ter saído de algum túnel do tempo, vinda dos anos 80, mas é tocada com tanto tesão que a gente até esquece o quanto aquele “feminismo” é anacrônico.
O maior sucesso do disco, porém, não foi uma música do próprio Capital: “Primeiros Erros (Chove)”, clássico de Kiko Zambianchi, viu-se apropriada pelos brasilienses diante de seus olhos e com sua luxuosa ajuda, sendo ouvida em toda parte e a todo instante.
A trinca que encerra o disco são canções da Aborto Elétrico, banda punk da qual se originaram o Capital e a Legião Urbana. As antes polêmicas e censuradas “Fátima” e “Veraneio Vascaína” puderam ser melhor apreciadas em tempos mais tolerantes, apesar de as provocações soarem bem mais ingênuas para o homem à beira dos 30 que eu era naquele ano 2000 – imagine hoje. O disco chega ao fim, claro, com “Música Urbana”, seu primeiro sucesso, fechando um ciclo de 15 anos com rápida ascensão, prolongada queda e inesperada ressurgência.
O apogeu viria numa consagradora apresentação no Rock in Rio de 2001, diante de 250 mil pessoas. Hoje em dia, o Capital segue colhendo os louros (e os lucros) do Acústico, com uma turnê que celebra os 25 anos do disco. Para mim, depois dele, rapidamente voltaram a ser aquela banda que lança um monte de discos que não colam nos meus ouvidos – mas, tudo bem. Por terem protagonizado uma das voltas por cima mais sensacionais que já testemunhei, o Capital tem meu respeito, ainda que respeito seja a última coisa que um punk de verdade espere ou ofereça.
20/07/2025
Batman: Acossado
A DC até se esmera na escolha dos roteiristas para o personagem, mas mesmo gente testada e aprovada parece empenhada em dar sua questionável cota de contribuição, adicionando um fato “bobástico" sobre os Wayne. ou sobre algo muito burro que o Batman fez no passado e deu muito ruim no presente. Essas tolices acabam, claro e felizmente, esquecidas em dois tempos, porque, na verdade, a essência original do Batman é forte o suficiente para garantir um chão seguro para qualquer bom argumento: filho de pais amorosos fica órfão de maneira violenta e passa a lutar para garantir que ninguém mais sofra o que ele sofreu. É muito simples e é muito sólido.
Houve um tempo em que inserções no passado do Batman eram feitas de um jeito bem mais elegante, que não mudava o que era intrínseco ao personagem. O título Legends of the Dark Knight – que a Editora Abril trouxe para nós como Um Conto de Batman, a partir de 1991, em forma de minisséries especiais – trazia aventuras dos primeiros anos de atuação do herói, enriquecendo o conhecimento sobre suas motivações e seu treinamento, sem transformá-lo num hipócrita e sem jogar a reputação de seus pais na lama.
Além de serem belas histórias (quase sempre, pelo menos), as capas tinham uma unidade visual que lhe dava muita personalidade. Com o passar dos anos e os sucessivos relançamentos em encadernados, esse charme acabou perdido. Foi numa dessas versões reestilizadas que Acossado voltou pela Panini – e eu, que, volta e meia, me via obrigado a me desfazer de partes de minha coleção a cada mudança (já viram quanto pesa uma caixa de gibis?), aproveitei a chance de ter um de meus Contos de Batman favoritos de volta na estante.
Na história, Batman está em seus primórdios de luta contra o crime: a polícia está em seu encalço e somente o ainda capitão James Gordon apoia sua atuação. Por mais que ajude em capturas e salvamentos, ele ainda é visto como mais um problema pra polícia resolver. A opinião pública e midiática está igualmente dividida, e vários especialistas se dedicam a tentar desvendar sua identidade e suas motivações – entre eles, Hugo Strange, famoso e polêmico psiquiatra. Com a ajuda de uma força-tarefa da polícia de Gotham, liderada pelo disciplinado e obcecado sargento Maxwell Cort, Strange vai chegando cada vez mais perto da verdade sobre o Batman.
Aqui, Doug Moench está em grande fase. Passaram-se mais de 30 anos desde que foi escrita, mas Acossado ainda é lida com grande prazer e, mesmo que os quadrinhos não sejam o meio ideal para grandes aprofundamentos, os insights psicológicos de Hugo Strange nunca descambam para o óbvio ou absurdo. Os momentos em que “personifica” o Batman (com direito a uniforme), emulando a provável linha de raciocínio do herói, chegam a exalar certo erotismo, tamanho o frenesi de Strange a cada conclusão. Não é diferente com Batman/Bruce. Os diálogos são precisos e temos aqui “o Batman que vale”, em qualquer época: um investigador implacável no topo do vigor físico (mas sofrendo as agruras de seu um vigilante pedestre, já que o Batmóvel ainda não está pronto).
Paul Gulacy – um desenhista cujo estilo não me agradou de primeira, quando, na Batman de 1987 da Abril, uma história sua sucedeu o impoluto Ano Um, de David Mazzucchelli – está desenhando o fino, também (impressão apoiada pela ótima arte-final de Terry Austin). Algumas expressões faciais podem lembrar os rostos “de psicopatas” de Gary Frank, mas, vindo do título do Mestre do Kung-Fu, na Marvel, Gulacy impõe ao Batman algumas poses e movimentos bem elegantes. Há ainda uma vibe geral meio Jim Steranko, o que é sempre bom sinal.
De resto, reforço o quanto é bom ler uma história dos tais “bons tempos” que ainda funciona perfeitamente, sem que pareça, por um momento que seja, datada ao ponto de essas inevitáveis diferenças temporais tirarem a atenção do leitor. Acossado é leitura altamente recompensadora.
A segunda metade do encadernado é composta de Terror, história em cinco partes, continuação “direta” de Acossado, lançada onze anos depois, com os mesmos Moench e Gulacy. Nela, Hugo Strange volta ainda mais obcecado e se alia ao Espantalho para atormentar o Batman. Porém, tudo aqui fica muito abaixo da régua estabelecida em 1990. É tudo muito raso e cartunesco, do tom geral da trama aos desenhos bem menos inspirados. Só mesmo o fato de que as histórias falam uma com a outra justificam sua inclusão num livro que poderia ter metade do volume (e do preço), além de ser um perfeito exemplo do que acontece quando artistas não sabem a hora de deixar o próprio legado em paz. Nada que prejudique a reputação da história original, mas, definitivamente, uma lição a ser aprendida.
13/07/2025
Superman
Superman chega para enterrar de vez a estapafúrdia noção de que o Universo DC seja “sombrio e realista”, um pueril combo de adjetivos que, se o bom Rao permitir, jamais voltaremos a usar, principalmente para falar de um filme do mais solar dos super-heróis. É um filme que abraça, sem vergonha alguma, tudo que faz o Superman único entre seus pares: o poder, o otimismo, a fé no potencial da humanidade, e a absoluta necessidade de salvar todas as vidas que puder. Além disso, o faz com cores vibrantes, emoção e bom humor.
A exemplo do que fez Grant Morrison em Grandes Astros: Superman, contando a origem do herói em apenas quatro quadros com legendas curtinhas, James Gunn também abdica da necessidade de contá-la mais uma vez. No mundo do filme, Superman e outros super-heróis já estão estabelecidos e absorvidos pela opinião pública. São um fato da vida. Na verdade, o filme começa no meio de uma briga, a primeira perdida pelo herói. A partir daí, somos sugados para dentro do plano de Lex Luthor para tirar a credibilidade e a vida do herói – e, olha, está funcionando. A primeira cena é aquela que ficou famosa nos trailers, com o herói caindo no Ártico, todo arrebentado, e sendo resgatado por Krypto.
Superman também está sendo questionado por sua intervenção em um conflito internacional, entre as nações fictícias de Borávia e Jarhanpur – e semelhanças entre ficção e realidade devem ser vistas pelo que são: provocação deliberada a tiranos do mundo real, e eles que vistam a carapuça, se quiserem. Ao herói, interessava impedir a perda de vidas, dada a desproporção do aparato militar da Borávia ao invadir a paupérrima Jarhanpur. Ao fazê-lo, porém, Superman (um alien americano, enfim) erra a mão e desencadeia tensão diplomática e um pesado revide, com um suposto defensor boraviano, o Martelo de Borávia, se juntando aos já muito poderosos agentes de Luthor, Ultraman e Engenheira.
Os acertos desta caracterização do herói vão além de sua inabalável bondade. Superman tranquiliza os que salva, sempre com uma piada pronta para minimizar o susto da vítima, e até para que ele próprio não se deixe abater pela gravidade das ameaças que enfrenta. A certa altura, ele não consegue impedir a morte de uma pessoa querida, e a gente se choca e sofre com ele. Aquela lágrima escorre ardida e, se tudo der certo, ela há de fazer todo mundo esquecer que, um dia, já fizeram do Superman um ser que pairava, inacessível, acima da humanidade, e que quebrou o pescoço do primeiro vilão que enfrentou.
Mas, perdão, divaguei.
Outro que está fielmente caracterizado é Lex Luthor, que, há três anos, usa sua fortuna para comprar alianças e tecnologia que o ajudem a livrar-se do kryptoniano, a quem enxerga como uma ameaça ao potencial da humanidade e um eterno lembrete de nossa inferioridade. Inteligente, arrogante e mesquinho, Luthor é um vilão “raiz”, arquetípico, ao ponto de dar um daqueles discursos em que detalha todo seu plano maquiavélico.
Obviamente, o filme poderia ter virado um cemitério de boas intenções, caso Gunn não tivesse se cercado de gente talentosa. O maior dos acertos é o próprio protagonista: David Corenswet acerta cada nota, seja como Superman ou Clark Kent, exalando charme, bravura e retidão moral – e a gente só não decreta que ele está melhor que Christopher Reeve pela heresia que dizer isso representa, mas, olha, ele chega bem perto. O mesmo pode ser dito sobre Nicholas Hoult como Lex Luthor – uma escolha que me deixou desconfiado no começo, mas que se justifica: Hoult está ótimo como gênio do mal, mentiroso cínico e namorado tóxico.
O elenco coadjuvante também não deixa a peteca cair: Rachel Brosnahan é uma Lois Lane sagaz e determinada, mostrando muita química com Corenswet; Skyler Gisondo faz rir como um Jimmy Olsen galã involuntário; o resto do staff do Planeta Diário carece de oportunidades para brilhar, principalmente o ótimo Wendell Pierce, que faz Perry White.
A “Gangue da Justiça”, protótipo da inevitável Liga que virá, cumpre bem seu papel, já ostentando fama própria e ajudando a tirar o Super de enrascadas. Isabela Merced faz uma boa Moça-Gavião, mas é meio samba de uma nota só. Nathan Fillion tem ótimos momentos como Guy Gardner, o metido Lanterna Verde com cabelinho de cuia; mas quem brilha muito é Edi Gathegi como Sr. Incrível, um herói que 90% do público “civil” deve desconhecer, mas que conquista espaço nobre, com uma das melhores sequências de ação do filme e uma petulância intelectual meio militar e meio autista – e é um barato ver a Sala de Justiça, linda por fora e em obras por dentro.
Outro imenso destaque é Krypto. O supercão é ainda apenas um filhote grande e, como tal, é estabanado e impulsivo, sem noção da própria força e tamanho, mordendo tudo que vê como brinquedo e buscando colo como se fosse um pinscher zero. Um belo argumento em favor da utilização de bichos digitais.
Há outros bons personagens, como Metamorfo (Anthony Carrigan), o robô número 4 (Alan Tudyk) e os adoráveis pais adotivos de Clark Kent (Pruitt Taylor Vince e Neva Howell), velhinhos caipiras do Kansas, no melhor dos sentidos. Frank Grillo finalmente aparece como Rick Flag Sr. em carne e osso, depois de dar voz ao personagem na animação Comando das Criaturas; Sean Gunn faz rapidíssima aparição, como Maxwell Lord, o financiador da Gangue da Justiça; e William Reeve, filho de Christopher, aparece como um repórter de TV.
Não é que Superman acerte em absolutamente tudo: existem algumas soluções apressadas e umas gags previsíveis, mas, no geral, Gunn fez um ótimo trabalho em reposicionar o Superman como o modelo de herói a seguir. Reconhecemos aqui e ali influências e homenagens, mas, do jeito que está, é uma ótima história original, já preparando o terreno para um novo filme deste universo. Com ação, humor, surpresas e substância, é uma reabertura que deixa ótima impressão para os novos rumos da DC no cinema. Que a mão de James Gunn seja tão generosa e firme na condução dos próximos trabalhos (seja como diretor, produtor ou supervisor) quanto a do maior dos heróis.
10/06/2025
The Ting Tings - Home (2025)
Sendo bastante honesto, uma das últimas coisas que eu esperava estar fazendo em meados de 2025 era escrever sobre um disco do The Ting Tings, porque, por mais simpáticas que as canções da dupla (e casal) Katie White e Jules De Martino fossem, elas sempre me deram aquela impressão de fast food musical. Lá em 2008, “That’s Not My Name” e “Shut Up and Let Me Go” surgiram como pílulas de escapismo dançante e estridente, e, para mim, morreu aí – até que, em 2014, a ótima “Wrong Club” surfou as marolas do tsunami disco que foi “Get Lucky”, do Daft Punk, do ano anterior.
Vai ver que a culpa é minha, já que nunca havia colocado um disco do The Ting Tings pra tocar do começo ao fim, mas o fato é que, do meu ponto de vista, eles sempre estiveram, se tanto, na série C do pop, aquela multidão de esfomeados com (e/ou sem) talento e substância, que raramente consegue furar a resistente e pouco espaçosa bolha do topo das paradas. O Spotify, porém, entende que a minha obsessão com “Wrong Club” me qualifica como seguidor interessado e me sugeriu escutar Home, o novo álbum.
E, homi, não é que o danado é uma bela surpresa?
Pra começo de conversa, esqueça batidões, eletropop, disco, ou qualquer coisa que lembre os “velhos” Ting Tings - e que o fã me perdoe caso Home se pareça com Sounds From Nowheresville (2012) ou The Black Light (2018), dos quais não ouvi absolutamente nada – pois este aqui é um bonito álbum de soft rock, numa pegada eletroacústica que lembra Fleetwood Mac e Dire Straits, pasme! Tudo é muito melodioso, harmonioso e gostoso de ouvir, de uma elegância que remete imediatamente ao fim dos anos 1970. Não fosse um rótulo tão pedante (coisa que o disco não é), daria pra chamar de AOR (Adult-Oriented Rock), mas, melhor não.
Com seu título agridoce, “Good People Do Bad Things” já estabelece o tom do disco, com a bonita voz de Katie White sobre uma “cozinha” bastante segura e potente, desembocando num solo de guitarra que vai trazer à memória flashes de Mark Knopfler, do Dire Straits. “Dreaming”, a faixa seguinte, tem uma intro de tom épico, com loops de bateria e acordes ao piano elétrico, emoldurando uma melodia que não soaria equivocada na voz de Stevie Nicks, do Fleetwood Mac.
“Home” abre com harmonias vocais a cappella para desaguar num folk country marcial vigoroso, com Katie dividindo o canto com Jules. Lá pelo finzinho, ainda cabe um solo de sax tenor – e impressiona ouvir a riqueza desses arranjos, num tempo em que música é vista por muita gente como só mais um penduricalho numa trend de 15 segundos no TikTok. Home tem uma simplicidade opulenta e muito bem cuidada, por mais que o conceito soe contraditório.
Uma coisa que me agrada muitíssimo é o uso de bonitos solos de guitarra, esta instituição do rock praticamente sepultada nos tempos que correm. Em canções mais introspectivas e acústicas, como as vizinhas “In My Hand” e “Danced on the Wire”, Katie e Jules soam como James Taylor e Carole King modernos. Da virada inicial de bateria à explosão do refrão, “Song for Meadow” parece pinçada diretamente do repertório setentista de gente como Steely Dan, Player ou Christopher Cross.
A penúltima e reflexiva “Mind Thunder” revela
questionamento e inquietação com os tempos atuais. Fechando o disco, “Down” é romantismo
acústico levado ao violão, com um refrão feito pra uma plateia acompanhar, e
sua calmaria só é interrompida pela chegada de piano, guitarra e sintetizadores
discretos, num bonito crescendo, botando ponto final em um disco anacrônico (e o
digo como um sincero elogio), cheio de beleza e virtude. Se é por este
caminho de carinhosa nostalgia e altíssima qualidade que The Ting Tings vão de
agora em diante, fico muito feliz em percorrê-lo com eles.
04/06/2025
Pecadores
O diretor estadunidense Ryan Coogler possui uma filmografia ainda pequena, mas que demonstra invejável solidez. Do modesto Fruitvale Station (2013) ao multimilionário Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022), Coogler usa seus filmes (que também roteiriza) como vitrine de suas fortes convicções, brandindo o dedo acusador na cara dos racistas. O fato de que conseguiu imprimir personalidade a dois filmes de um estúdio (Disney) notório por inibir visões artísticas muito particulares, em favor de uma mesmice homogeneizada, dá noção do cacife (ou da lábia) do homem – e, por mais divisivo que o segundo Pantera Negra tenha sido, a verdade é que ele fez uma montanha de dinheiro (cerca de 850 milhões de dólares) que deixou o estúdio bastante satisfeito.
À parte este tropeço (se é que dá para chamar assim um filme que ganhou o Oscar de design de figurino e rendeu a Angela Bassett sua segunda indicação), o cinema de Coogler é constante e vigoroso, expondo a injustiça da brutalidade policial americana (Fruitvale Station), dando ao espectador a sensação de estar no ringue durante lutas de boxe (Creed), celebrando uma África que não se curva diante das potências ocidentais (Pantera Negra) e, agora, com o novo Pecadores, atribuindo à música poderes sobrenaturais e retratando o racismo como um pacto de sangue para sugar tudo que se puder dos negros, figurativa e literalmente.
Após sete anos longe de Clarksdale,
Mississipi, os gêmeos Elias e Elijah Moore (duplo papel de Michael B. Jordan) -
ou Fumaça e Fuligem – estão de volta. Com o dinheiro que ganharam trabalhando
com a Máfia italiana em Chicago (e com as bebidas que roubaram dela e da rival
irlandesa), querem abrir um clube de blues em menos de 24 horas, numa velha
serraria que compram de um velho membro da Ku Klux Klan, supondo (torcendo?)
que ele entenda que dinheiro é dinheiro, não importando que venha de mãos
brancas ou pretas.
Para abrir naquela mesma noite, os gêmeos contam com a ajuda de diversos amigos e parentes, entre os quais está o absurdamente talentoso primo Samuel Moore (Miles Caton), ou “Preacher Boy” Sammie, filho do pastor local, com um dedilhar tão preciso nas cordas de aço e uma voz tão calorosa que, segundo uma lenda, narrada nos primeiros segundos do filme, seria capaz de romper o véu do tempo e da realidade. O velho e pinguço pianista Delta Slim (Delroy Lindo) pode ter décadas a mais de experiência, mas Sammie nasceu com um dom para o blues que só pode mesmo ser descrito como sobrenatural.
O baile inaugural acontece e é um sucesso (embaçado apenas pelo baixo poder de compra da freguesia), mas acaba atraindo o vampiro Remmick (Jack O'Connell) e outros dois “convertidos”, que desejam entrar, em troca de gastar muito e tocar música de graça, mas são mantidos de fora pelo desconfiado Elijah – que ainda não sabe que eles são vampiros, mas aprendeu a desconfiar de todo e qualquer branco que chega com muita conversa mole – e vampiros, como se sabe, só entram no espaço alheio quando convidados. É claro que esta breve resistência será vencida, o baile virará um banho de sangue e a sobrevivência será privilégio de uns poucos.
Coogler mistura elementos de filmes de
gângster, blaxploitation (gênero de filmes policiais dos anos 70 que agregava
discussão de direitos civis e elementos da cultura negra) e terror, embalados
em uma atmosfera carregada de tensão, misticismo e sensualidade. É o seu filme
mais pessoal, sua primeira história 100% original – e como é bom a gente ver o
sucesso de um filme que não é um remake ou continuação! É ainda melhor que este
sucesso seja fruto de seus indiscutíveis méritos.
O elenco tem Delroy Lindo arrasando, pra variar. Hailee Steinfeld diverte como uma mestiça que passa por branca, desbocada ex-namorada de Fuligem. Jack O’Connell, como Remmick, é um vampiro irlandês caipira assustador – menos pelos dentes ou sede de sangue, e mais por seus modos suaves e por representar a rapinagem branca sobre a cultura negra: “nós queremos sua música, suas histórias”, diz ele, a certa altura. Todo o elenco é bastante competente e, em papel duplo, o astro Michael B. Jordan exala em dobro o habitual carisma.
Além de Jordan, outro parceiro recorrente de Coogler é o compositor sueco Ludwig Göransson, que se supera na trilha de um filme em que a música está no centro nervoso dos acontecimentos, especialmente quando está em cena o estreante Miles Caton, jovem músico que, ao contrário do que o filme sugere, teve apenas dois meses para se familiarizar com a guitarra do blues, revelação muito promissora. É arrepiante, quase paralisante, a espetacular cena em que Sammie se entrega à literal magia do blues durante o baile e, se é que consigo evitar spoilers, acontece a coisa mais legal vista no cinema em muito tempo. Um momento brilhante, que fãs e estudiosos da arte vão comentar para sempre.
Como parece que tudo tem que virar “franquia”, “universo” e outras bobagens, já houve quem perguntasse a Coogler se ele já pensa em uma continuação, ao que ele respondeu com uma sonora negativa: “eu nunca sequer penso nisso”, disse, em entrevista. Tomara que ele mantenha sua palavra, já que Pecadores tem um fim meio “devedor”, mas retorna, logo após os primeiros créditos, para dar conta do destino de certos personagens, em cena arrebatadora e saudosa, colocando um indiscutível ponto final. É claro que, aplicando-se a pre$$ão correta, Coogler pode mudar de ideia – ele é apenas humano, enfim – mas, torçamos que seja esperto e desapegado o bastante para não macular o próprio legado.
26/05/2025
Seu Pereira e Coletivo 401 - Obsoleto (2025)
Talvez você não saiba, mas, a despeito do nome sofrível, a banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401 é uma das melhores do país. É dela um dos melhores discos brasileiros dos anos 2010, Eu Não Sou Boa Influência Pra Você (2017) – qualquer dúvida, recomendo audição da faixa-título, “Otário”, “Love in Gotham City”, ou da estupenda “Geladeira Azul”, balada que crava as unhas no coração de qualquer um, a quem o surrado órgão ainda pudesse ter alguma serventia.
Jonathas Pereira Falcão, vulgo Seu Pereira, letrista e cantor, é uma espécie de “menestrel da bagaceira”, escrevendo com muita autoironia e perspicácia sobre coisas nas quais os jovens de hoje parecem cada vez menos interessados: sair pela noite pra beber e conhecer pessoas e lugares ordinários, quando não abertamente questionáveis, pouco ou nada “instagramáveis”, para filosofar sobre a vida e/ou apenas jogar conversa fora.
A prosa de Seu Pereira é direta, sem curvas, o que não a impede de soar lírica. Carrega uma aspereza que é típica dos compositores nordestinos desde sempre, entoada em um timbre barítono cheio de personalidade, que não hesita em fazer uso de sotaque e gírias regionais. Além do vocalista, que também toca guitarra, a banda conta com Thiago Sombra (baixo), Chico Correa (guitarras) e Victor Rama (bateria). O quarteto pratica um combo de rock and roll e MPB eletrificada, muito bem temperado com cerveja, sarcasmo e corações partidos.
Eis que, após oito anos de espera (período no qual a banda lançou singles e o vocalista lançou um álbum solo, Módulo Lunar, de 2022), Seu Pereira e Coletivo 401 estão de volta, e os paraibanos não decepcionam: as 10 faixas de Obsoleto recolocam a banda como uma das mais interessantes em atividade no país, consagrando Jonathas como um dos melhores letristas da atualidade – e todas as disposições em contrário ficam revogadas desde a primeira audição. Quer discordar, vá discordar na sua casa (apud Hilton).
A funkeada “Desde o Dia em que Meu Bem Partiu” abre os trabalhos, dando a medida do estrago emocional de uma separação: “meus amigos não suportam mais a minha cara fudida”. Como uma viajante do tempo a surgir de um portal em 2025, “Sem Futuro” é uma balada egressa de algum ponto dos anos 1970, com um órgão Hammond (e uma classe) que quase não se ouve mais por aqui. O arranjo, a letra, a interpretação... Tudo nela evoca Belchior e/ou Raul Seixas – tente imaginar que os dois se apaixonaram e tiveram um filhotinho eloquente e boêmio.
Fosse por mim, inverteria a ordem desta última com “Boy da Amarok”, título que pode evocar sertanejo universitário, mas que está mais para uma parente distante e socialmente promovida da clássica “Fuscão Preto”, de Almir Rogério, em que certa mulher dispensa a “cross” do vocalista, preferindo o conforto da cabine da picape. Parece um encerramento mais adequado pra esse cordel de obsolescência – programada, talvez; e enfrentada, certamente.
21/05/2025
O Dia do Chacal
Sem ter lido o livro homônimo de Frederick Forsyth, escrito em 1971, e sem ter visto o filme que o adaptou em 1973, eu decidi ver O Dia do Chacal porque ela esteve presente em diversas listas das melhores coisas de 2024. Também me chamaram atenção os protagonistas: Eddie Redmayne, como o Chacal, matador de aluguel mais letal do mundo; e Lashana Lynch, como Bianca Pullman, agente do MI6 em seu encalço. Ambos ingleses, como o autor do livro, hoje com 86 anos.
Como está adaptando uma história de cinco décadas atrás, a série (um produto original do streaming Peacock, disponível para nós pelo Disney+) teve que fazer mudanças na trama e nos personagens, para encaixá-los no século XXI, a maior delas sendo substituir o detetive Claude Lebel pela agente Bianca Pullman, com seu senso de dever inabalável de veterana de guerra e forte faro investigativo, mas que, com frequência, mete os pés pelas mãos em seu esforço para capturar o Chacal. Enquanto tenta ser boa agente, boa mãe e boa esposa, Bianca vai acumulando bolas fora aqui e ali, mas sem jamais perder o rastro do assassino. O roteiro também tenta surfar a onda de assuntos da hora, como as críticas aos bilionários e a responsabilidade social (ou falta dela) das big techs.
O bom elenco é um dos grandes acertos aqui. OK, Redmayne tem um Oscar pra chamar de seu, mas ele caminha sobre uma linha muito fina, que separa estilo de interpretação da falta de versatilidade. Apesar disso, seu jeitão gélido e impassível caiu bem para o assassino Chacal, um atirador capaz de acertar alguém a quase 4 km de distância e que, determinado a levar uma vida normal ao lado da esposa espanhola (Úrsula Corberó, de La Casa de Papel) e do filho pequeno, vê-se tentado pelo altíssimo cachê e altíssima complexidade de um último serviço. Acontece que o penúltimo (no qual, ainda por cima, levou calote) chamou a atenção de Bianca Pullman, e ela não é do tipo de que ignora sua intuição ou desiste fácil. Na pele da obstinada Bianca, Lynch traz de volta a fisicalidade que a tornou destaque em cenas de ação de A Mulher Rei e 007: Sem Tempo Para Morrer, apesar do corpo sempre coberto por pesados uniformes ou roupas “de mãe”.
O jogo de gato-e-rato prende a atenção e deixa a gente nos cascos, apesar de alguns lances de pura “sorte de protagonista” em favor do Chacal – aliás, li em algum lugar na internet que o espectador ficava torcendo por ele e contra Bianca, mas não me peguei nessa contradição moral, basicamente, porque o Chacal de Redmayne não é um assassino charmoso: ele é uma mera máquina de matar. Há pouco espaço para identificação, e mesmo o esforço dele em ficar disponível para a esposa e o filho pequeno parece pouco sincero. Do lado de Bianca, a crise no casamento, embora mais passível de empatia, carece de peso dramático, previsivelmente voltando à estaca zero, bem no momento em que mais deveria importar.
Com seus dez episódios carregados de tensão, a série garante uma diversão bastante eletrizante, em produção de alto nível. O último episódio tem um final que diverge daquele do livro, medida que pareceu ter sido só um jeito de garantir uma segunda temporada – já confirmada. Achei o destino de certo personagem um exagero desnecessário (na verdade, eu espumei de ódio), mas, apesar dos pesares, O Dia do Chacal realmente merece uma vaga em qualquer lista decente das boas coisas do streaming no ano que passou – mas, para mim, longe das cabeças. Um meio do caminho honesto entre a base e o topo já está de bom tamanho.
13/05/2025
Máquina do Tempo
A ideia de deslocar-se no tempo sempre foi um poderoso motor da imaginação: em algum momento, todo mundo já sonhou em poder voltar ao passado, para tentar consertar pequenos ou grandes erros; ou visitar o futuro, para saber se o mundo (ou, pelo menos, o seu mundo) será melhor ou pior. Muito já foi escrito e filmado sobre o assunto – e não somente a serviço da ficção científica: até o romance e a comédia já se utilizaram do artifício. Controlar o tempo é um sonho antigo da humanidade – hoje, mais pelo desejo de honrar as demandas diárias e conseguir descansar do que por uma vontade de corrigir o passado ou moldar o futuro.
Na segunda metade dos anos 1930, a vida era bem simples no interior da Inglaterra, em que duas irmãs órfãs, Thomasina (Emma Appleton) e Martha (Stefanie Martini) - ou Thom e Mars, como se chamam entre si – desenvolvem uma máquina capaz de captar ondas de rádio e televisão, que, com ajustes muito específicos, encontra uma frequência de ondas vindas do futuro. O dispositivo é batizado como LOLA, em homenagem à sua falecida mãe. A princípio, as irmãs usam seu invento para conhecer música do futuro (David Bowie se torna um ídolo para elas quase 30 anos antes de lançar seu primeiro disco), a moda e as revoluções de costumes. Porém, elas descobrem, também, que, muito em breve, a Segunda Guerra Mundial começaria, e que seu país seria arrasado pelas forças alemãs.
Isoladas em sua casa de campo, Thom e Mars decidem intervir, da maneira mais discreta que conseguem, para evitar que o curso da história seja muito drasticamente alterado. Limitando-se a emitir alertas antecipados e anônimos sobre os ataques para que as pessoas se protejam, as irmãs esperam apenas reduzir a perda de vidas. Sua atuação acaba chamando a atenção dos militares ingleses, que desejam saber dos ataques antes que aconteçam, e o fazem com grande sucesso. Acontece que a História é uma via de mão dupla e, quando a tática inglesa se torna evidente para os alemães, o mundo corre risco de conhecer tempos ainda mais sombrios.
Rodado durante a pandemia e originalmente lançado em 2022, em estilo found footage (filmagens “reais” achadas “ao acaso”), Máquina do Tempo é uma prova irrefutável do poder de uma boa história. Curtíssimo (79 minutos) e baratíssimo, o filme de estreia do irlandês Andrew Legge dá uma surra de narrativa e impacto em produções com orçamento muito superior. As irmãs protagonistas são ótimas personagens, cheias de coragem e dualidades, entregues a ótimas atrizes. Elas conhecem a violência dos homens de diversas maneiras, mas não abrem mãos de suas individualidades, mesmo quando isso as coloca em lados opostos.
Há muito cuidado na mescla de imagens
reais com encenações, e a edição de sons e a trilha sonora têm uma qualidade acima da média, seja
nos temais incidentais que exalam tensão ou nos hinos do rock que funcionam
como comentários para os eventos do filme. Máquina do Tempo teve discreta
passagem por nossos cinemas em março e, hoje, pode ser alugado ou comprado em
alguns serviços de streaming - e se você for um corsário de mão fechada e
preferir navegar em busca do tesouro, eu te entendo e não te julgo: LOLA justifica
totalmente a aventura e a transgressão.
29/04/2025
O Estúdio
Se você for neonazista, porém, é mais digno de
soco do que de ajuda. #pas
Neste exato momento, porém, a maior bilheteria ocidental de 2025 pertence a uma comédia, Um Filme Minecraft. A graça de um filme com Jack Black fazendo papel de Jack Black pode ser abertamente questionada, mas, pelo jeito, o público gostou e é isso que importa, especialmente para as pessoas que investem dinheiro na arte de fazer filmes e esperam o devido retorno para manter essa roda girando, mesmo quando esses produtos têm muito pouco ou quase nada de arte, como parece ser o caso. O sucesso de Um Filme Minecraft mostra que há caminhos para a comédia que dispensam o artifício da ofensa pura e simples.
Curiosamente, no outro extremo de popularidade, o semidesconhecido Apple TV+ também vem lançando boas comédias: após a agridoce e elogiada Falando a Real, o streaming da maçã mordida colocou no ar O Estúdio, que, como o nome já entrega, apresenta situações vividas no ambiente da produção de filmes. Seth Rogen vive Matt Remick, executivo que se diz comprometido em devolver a dignidade à Arte do Cinema (em maiúsculas, como nos mais bonitos sonhos de Matt), mas que, uma vez promovido a diretor da Continental Studios, logo descobre que suas convicções pessoais e visão artística quase sempre esbarram na obrigação de fazer muita grana muito rápido.
De certo modo, Matt Remick está ali, passando perrengue e fazendo a gente rir de nervoso, em nome de todos os artistas, roteiristas, diretores que tentam emplacar uma ideia original em Hollywood, um lugar que virou sinônimo de mesmice em nome da grana fácil. Quando ele tenta defender uma franquia de ação que já conta com sete partes – das quais só mesmo uma ou duas valeram a pena – a gente entende a mentalidade que reina no cinemão de férias. Quando ele é forçado a engavetar um bom roteiro que comprou de um mito em carne e osso, a gente entende o quão baixo se joga nesse jogo.
Além de ser Hollywood fazendo terapia, O Estúdio é uma deliciosa odisseia de vergonha alheia, em episódios com duração média de 30 minutos, nos quais Rogen (em grande forma) conta com ótimo elenco de apoio. A gente fica torcendo pra Matt Remick escolher “o bem”, ter coragem de dizer o que está entalado na nossa garganta, ou colher o menor sucesso que seja, mas ele quase sempre mete os pés pelas mãos e se estrepa gloriosamente. A gente ri, mas também dá pena.
O grande charme da série, porém, está nas inúmeras participações especiais de figurões de Hollywood em papéis de si mesmos – e dar de cara com essas pessoas é um dos grandes prazeres de assisti-la, então, me calo sobre quem são e o que fazem ali. Outra coisa muito legal é que, como os episódios são basicamente isolados, na linha “o desastre da semana”, O Estúdio pode ter uma vida longa, com várias temporadas – tipo uma franquia de ação medíocre, sacou? Acredito que não, mas espero que sim. Escondida num streaming que pouco se esforça para ser mais conhecido, sei que fica difícil, mas, citando palavras célebres nos meios em que circulo, sou eu que financio essa merda. Sou fan, quero service.