19/11/2024

Pinguim


Mesmo com o selo HBO de qualidade (quase sempre, uma garantia de produtos minimamente bem-cuidados), nem o mais otimista espectador poderia prever que uma série do Pinguim, adaptada do filme Batman (2022), de Matt Reeves, estaria entre as melhores coisas vistas na televisão nesta década. Ninguém estava preparado para tamanha profundidade psicológica ou tão adequada atmosfera noir. Inclusive, muita gente deve ter imaginado que havia grande chance de esta série estragar o legado de Batman, mas ela não apenas subverte essa expectativa como, na verdade, deixa o universo do filme mais rico e interessante.

Vamos logo falar do elefante no meio da sala: eu não vejo problema na ausência completa do Batman, mesmo em diálogos. Entendo o personagem do filme como sendo um vigilante em início de carreira, o que pode perfeitamente explicar por que ele deixaria de saber ou não consiga atuar sobre os esquemas vistos na série. Ele ainda está aprendendo a ser o Batman – talvez subestimando a escala e o alcance do crime na cidade, por assim dizer.

De maneira semelhante, tampouco o Pinguim já é aquele bandidão estabelecido dos quadrinhos: neste universo e neste momento, está mais para empregadinho do que para chefão. No calor dos eventos depois da morte de Carmine Falcone, em Batman, Oswald “Oz” Cobb tenta se apoderar de um trunfo que pode permitir-lhe alguma ascensão no mundo do crime em Gotham. Ao invadir o escritório de seu finado patrão, porém, ele age no calor da emoção e do orgulho, cometendo o ato que põe em marcha seu plano - que ele nem sabe muito bem ainda qual é.


Daí por diante, o instinto de sobrevivência e a habilidade de Oz para contar mentiras (ou meias-verdades convenientes) serão testados a cada episódio, porque a única coisa que supera sua capacidade de escapar de situações mortais é sua tendência de cair em outra mais à frente (ou criá-las ele próprio). Todo o submundo de Gotham sabe que a palavra de Oz Cobb vale muito pouco, mas, de alguma forma, ele consegue transitar entre lados rivais, jurando lealdade a quem lhe pode ser mais imediatamente útil, apenas para trair seus “aliados” logo em seguida.

Lembra do selo HBO de qualidade a que me referi lá no começo? Pois bem, ele é perceptível em cada fotograma de cada um dos oito episódios de Pinguim. Desde os cenários daquela que talvez seja a melhor Gotham City das telas, passando pelo roteiro que privilegia o clima noir da história, até desembocar nas atuações simplesmente acachapantes do elenco principal, tudo é de altíssima qualidade. Em sua maquiagem espantosa, Colin Farrell já havia “sumido” em seu personagem no filme de 2022, mas o que ele alcança aqui, com maior tempo de tela e desenvolvimento, certamente o conduzirá a uma gorda temporada de prêmios. Oz é o mafioso mais carismático da TV desde Walter White, de Breaking Bad.

Seu mais constante parceiro de cena, a revelação Rhenzy Feliz, intérprete do inesperado sidekick Victor Aguilar, tem a inocência hesitante de quem se vê arrastado pra dentro de um mundo que não é o seu e se deslumbra com o que pode conseguir dele, mas que abomina a ideia de recorrer à violência, ainda que isso nem sempre o detenha.


A grande e magnética surpresa da série, porém, é Cristin Milioti, intérprete de Sofia Falcone. Desde sua primeira cena, é impossível desviar nossos olhos dos seus, dois globos repletos de trauma, inteligência e rancor – inclusive, contra o Pinguim. Fosse outra série, eu talvez estivesse tentado a dizer que ela rouba a série para si, mas a concorrência de Milioti é duríssima: além de Farrell e Feliz, quem também dá um show é Deirdre O’Connell, no papel de Francis Cobb, a sequelada mãe de Oswald, que mantém com ele uma complexa relação de dependência e domínio.

Todos estes personagens estão tão carregados de dualidade moral, que fica difícil eleger um favorito. A estes, junta-se um elenco notável de coadjuvantes, incluindo Michael Kelly, Clancy Brown, Shohreh Aghdashloo e Mark Strong, entre outros. Com seu andar trôpego e conversinha de “homem do povo”, Oz vai colocando todos no bolso, um por vez, e pondo ideias na nossa cabeça: “pelo menos, ele é bom filho”, “gosta do Victor”, “cuida do povo do bairro”, mas, não se engane: o Pinguim é um vilão, não é um anti-herói. Ponto pra todo mundo que se lembrou disso, ao escrever.


Assistindo a esta série, a gente, também, se sente meio enganado pelo “bom” Cobb, porque todas as nossas certezas e expectativas – cultivadas por meio de nossas experiências com clichês de quadrinhos, filmes e séries de super-heróis – são formidavelmente traídas por ela, com suas sutilezas dramáticas e sua descida em espiral sem freios a lugares muito escuros da alma humana. O ruim de que ela seja tão boa é que seu merecido sucesso jogará nossas expectativas muito para cima – não só em relação a uma possível segunda temporada, como em relação a qualquer outro possível/provável derivado deste universo, incluindo aí o segundo filme do Batman, prometido para 2026.

Não é o DCU que temos, mas certamente é aquele que queremos e merecemos. A vida em Gotham não é tão madrasta assim, afinal.

04/11/2024

A Substância

 

A crítica à obsessão por beleza e juventude na sociedade em geral e na indústria de entretenimento em particular já não é novidade. O próprio cinema, onde essa obsessão ainda vigora, já fez sua cota de autocrítica. A Substância é seu mais recente esforço, que se destaca por contar com uma protagonista (Demi Moore) que viveu a pressão para manter-se com o rosto e o corpo jovens que o público supostamente queria ver – normalmente, uma opinião de homens que não viam qualquer problema neles próprios envelhecendo ou embarangando.

A carreira de Elisabeth Sparkle (belo nome para uma drag queen) da fama mundial ao semi-ostracismo é resumida, de forma bastante sucinta e esperta, na sequência de abertura, quando ganha sua estrela na Calçada da Fama de Hollywood – em meio a comentários elogiosos sobre sua beleza e talento – e, conforme avançam os anos passam de maneira acelerada, o tom dos comentários ao redor da placa muda para coisas como “lembra dela?”. De desejado ponto de visitação, vira um lugar por onde as pessoas passam sem qualquer atenção ou cuidado.

Ao completar 50 anos, Elisabeth é “convidada a sair” da emissora onde comanda um programa de fitness da chamada “melhor idade”, em favor do que a direção de seu canal (na pessoa do asqueroso personagem de Dennis Quaid) deseja em seu lugar: alguém mais jovem, mais bonita e capaz de renovar a audiência em baixa. Aos 50, Elisabeth está linda, lúcida e produtiva, mas percebe que se tornou um estorvo, num meio onde a velhice é um pecado imperdoável.

Enquanto lamenta sua nova condição de “idosa” desempregada, ela vê um anúncio de algo chamado simplesmente de A Substância, que promete (mediante instruções de uso bastante específicas) entregar uma nova versão do usuário: mais jovem, mais bonita – melhor, enfim. Levada a um endereço tenebroso, Elisabeth pega seu kit, vai pra casa e, claro submete-se ao misterioso tratamento.

Paramos por aqui, porque dar qualquer detalhe a partir deste ponto estragaria muitas surpresas do filme da diretora francesa Coralie Fargeat (que, antes, havia dirigido apenas um outro filme, o thriller Vingança, de 2017). No Festival de Cannes deste ano, A Substância estava indicado à Palma de Ouro, e saiu com o prêmio de Melhor Roteiro. Se sentir que já viu algum filme com trama bem parecida, você deve estar certo. Mesmo sem ideias tão novas assim, porém, A Substância desvia de soluções óbvias e sua principal virtude é não pisar no freio: quando você achar que já chegou ao limite da maluquice e da nojeira, ele vai lá e empurra o limite um pouco pra mais longe. De certa forma, testa nosso voyeurismo sádico, ao sugerir que chega ao fim algumas vezes – e aí, pof!, tome mais uma sequência ultrajante na cara!

Apesar do gore deslavado, a maravilhosa cinematografia, com seus cenários e planos de câmera, rende homenagem a clássicos do terror. É impossível, por exemplo, ver as cenas nos corredores da emissora e não pensar no hotel de O Iluminado (1980). Como Pearl (2023), outro filme de terror recente carregado de esmero visual, A Substância é bem bonito de assistir – isto é, até que comecem os previsíveis problemas de Elisabeth, que já qualificam o filme como um neoclássico do horror corporal como veículo de crítica social, à moda David Cronenberg.

É gratificante ver Demi Moore, uma atriz que já experimentou todo tipo de altos e baixos na profissão, retornar à relevância com tal categoria, a serviço de uma personagem com a qual certamente se identifica (tendo ela mesma se submetido a transformações artificiais que nem sempre deram certo). Além disso, com o que muita gente já chama de melhor atuação de sua carreira, Demi prova o argumento central do filme, o de que é apenas natural que a juventude se acabe, sem que isso implique em juízo do seu valor ou talento. Rejeitar a passagem do tempo, em nome da vaidade ou de uma utopia de juventude eterna, é terreno fértil para o ridículo e o grotesco. Com A Substância, Demi e Coralie deixaram pouca margem para mal-entendidos. É um filme que não faz prisioneiros, exige coragem pra ser feito e visto. Arme-se de muita!

28/10/2024

Música & Mágica #3


TRAVIS
The Man Who
1999
 
Não é um fenômeno novo, mas é interessante notar como a tristeza foi praticamente criminalizada. Parece que ninguém tem mais o direito a um dia ruim. A galera da positividade tóxica e seus mantras (“reclamar menos, agradecer mais”) estão fazendo das pessoas uma horda de zumbis com sorrisos lindos, cheios de “namastê” nos lábios... e mortos por dentro.
 
Sim, porque sentir tristeza é normal – inevitável, até – e represá-la é criar trauma para si. O modo mais rápido de acabar com ela é usá-la. Logicamente, chega um momento em que sua vontade de ficar em casa sem ver ninguém pode preocupar as pessoas ao seu redor, então, talvez esteja na hora de lembrar que o sol ainda brilha lá fora e gente que te ama sente sua falta, mas, principalmente, que a vida – e, mais ainda, a sua vida – não acabou.
 
Muito dessa recusa em viver a tristeza vem do medo de sofrer, seja por amor, luto ou frustração. É o mesmo medo que leva muita gente a, por exemplo, jamais querer assumir um compromisso amoroso, porque, enfim, pode dar merda e você acabar sozinho, chorando num canto. Acontece que o sofrimento pelas coisas que se acabam ou dão errado é uma das principais ferramentas que talham nosso espírito. É ele que, de verdade, ensina resiliência, não aquele coach que diz que você não está se esforçando o bastante em se alegrar.
 
Claro que, se a sua tristeza não passa e te faz pensar em desistir da vida, seu problema tem outro nome. Procure ajuda.
 
Para mim, no que diz respeito à arte, a tristeza é a mãe da beleza. Ao contrário de muita gente, eu prefiro escutar música triste quando estou triste – justamente para, como dito acima, viver e gastar a tristeza, até que ela passe. Só que eu também gosto de música triste quando estou feliz, simplesmente porque toda aquela emoção (com perdão pelo desfecho pobre) me emociona.
 
Daí que, desde sempre, artistas considerados melancólicos estão entre os meus favoritos: Morrissey, The Cure, Jeff Buckley, Renato Russo, Maria Bethânia... É uma lista longa e triste (e sei que haverá quem diga que é triste por outros motivos). A música dessa gente já embalou muito chororô, saudade, e aquela tristeza que dava do nada, apenas porque eu não conseguia controlar uma espiral de pensamentos intrusivos – que acabava, felizmente. Por outro lado, também, já “animou” muita faxina e dias ensolarados.
 
Não se preocupe, porém: eu também gosto muito de música alegre, claro.
 
Em 1999, a atenção do mundo se voltou a uma nova “grife” de tristeza, vinda da Escócia: a banda Travis, formada por Fran Healy (voz e guitarra), Andy Dunlop (guitarra), Dougie Payne (baixo), e Neil Primrose (bateria). Após um primeiro álbum, Good Feeling (1997), em que a melancolia se escondia entre as altas guitarras que quase o transformavam em um disco de, sei lá, hard rock – ou, pior ainda, um disco ALEGRE, imagina que absurdo – o Travis vestiu o sobretudo preto e voltou triste, feito um desses dias no Reino Unido em que escurece logo cedo e chove sem parar.

Travis: Dunlop, Healy, Primrose e Payne
 
The Man Who é uma coleção de bonitos temas de “miserê” e dor-de-cotovelo, e a gente só consegue imaginar a bagunça em que a cabeça e o coração de Fran Healy pareciam estar. O circo do pop/rock adora epítetos e rótulos e, na época, chamaram Healy de “o último heterossexual sensível do pop”. Um exagero bobo, mas, seja lá quem teve culpa pelo que em sua vida, o fato é que o homem se rasga todo nas 10 canções do disco, com sonoridade mais acústica que no anterior.
 
O primeiro single de The Man Who foi “Why Does It Always Rain on Me?”, em que Healy se vê infeliz, apesar do sucesso que lhe dizem estar desfrutando. “Eu não consigo dormir, todo mundo fica dizendo que está tudo bem”. Temática e musicalmente, o Travis agora parecia menos Oasis e mais The Smiths – e, de verdade, o disco abre com uma música, “Writing to Reach You”, que indica um certo “bode” dos Gallagher: “o rádio está tocando o de sempre / e o que é uma “wonderwall”, afinal?” O riff introdutório lembra o hit do Oasis e não é por acaso.
 
Não pense, entretanto, que porque é essencialmente triste que seja um disco monótono. O Travis estava inspiradíssimo em suas melodias, e várias delas eram ótimas para cantar junto – um fenômeno que veríamos repetido, por exemplo, cinco anos depois, com a estreia do Keane. Você sabe que está fazendo algo de bom quando Sir Paul McCartney diz que gostaria de ter escrito uma de suas músicas, “Turn” – é fácil imaginar um estádio lotado cantando, em uníssono, as agruras de um desajustado pensando em suicídio.
 
A música “alegre” do disco é “Driftwood”, sobre não fazer escolhas no momento certo e deixar as oportunidades passarem. “Luv”, a oitava faixa, é de uma tristeza abissal, amplificada pela gaita que serpenteia entre os versos de um rompimento amoroso unilateral.
 
Para este que vos escreve, porém, o grande momento do disco é a última faixa. “Slide Show” abre com ruídos de portas batendo e sendo trancadas, seguidos pelos de um carro sendo ligado e se afastando. Ela foi embora. (Esta é a história a mim sugerida, pelo menos). Em casa, ele liga o projetor e fica vendo momentos felizes. Fran Healy começa a cantar: “hoje era um dia de dança e cantoria / os pássaros nas árvores e os sinos estão soando /.../ oh, Deus, espero que eu fique bem / porque eu vou chorar”. Da segunda vez em que se canta o que há de mais próximo de um refrão, um breve e lindo verso de cordas se junta ao violão, e vem o nó na garganta. Portas são trancadas novamente. Pra sempre. Acabou.
 
(Na verdade, “Slide Show” termina aos 3:34, seguida por outros três minutos de silêncio, até que comece a não-creditada “Blue Flashing Light”).
 
Já é folclórica, no meio pop, a história de como o Travis tinha tanta moral, naquele fim de século XX, que apadrinhou a chegada do Coldplay. Hoje, os “afilhados” são incomparavelmente mais ricos e famosos, mas olha a música que o Coldplay nos oferece hoje em dia... Há males que vêm pro bem, enfim. The Man Who é um desses discos capazes de fazer a mim, ateu convicto, pedir que Deus abençoe as almas torturadas deste mundo que são capazes de transformar sua dor em arte e beleza, porque, em minha admiração confessamente mesquinha, eu sou incapaz de desejar que elas se curem.

* * * * *

Travis
The Man Who
Produzido por Nigel Godrich, Ian Grimble e Mike Hedges
Lançado em 24 de maio de 1999

01. Writing to Reach You
02. The Fear
03. As You Are
04. Driftwood
05. The Last Laugh of the Laughter
06. Turn
07. Why Does It Always Rain on Me?
08 - Luv
09 - She's So Strange
10 - Slide Show
Faixa oculta: Blue Flashing Light

23/10/2024

Lanterna Verde (2023), por Geoffrey Thorne


É bastante difícil ser original quando um personagem já tem mais de 80 anos de história, estando presente mês a mês nas bancas, em revistas de linha, versões alternativas, participando de equipes e aparecendo em títulos de outros heróis.

Veja o caso do Lanterna Verde, por exemplo: existem elementos e eventos que são basilares em sua mitologia, aos quais seus autores quase sempre recorrem: a Tropa dos Lanternas Verdes (sempre dispersa e reunida), os Guardiões do Universo (sempre mortos e revividos), a Bateria Central (sempre explodida e reconstruída), Sinestro (sempre oscilando entre inimigo e aliado), e por aí vai.

Se, por um lado, mexer demais na essência dos personagens vai descaracterizá-los e desagradar a leitores, por outro, mantê-los presos sempre numa mesma cadeia de eventos pode levar à mesmice e à saturação (como muitas vezes já levou, diga-se, e não só com este personagem em particular).

O leitor de quadrinhos de super-heróis é um masoquista por opção, sendo capaz de bravamente resistir a uma fase medonha qualquer de seu herói favorito, apenas para buscar a geralmente fugaz satisfação de um lampejo de criatividade por parte dos autores. Veja bem, eu disse “criatividade”, não “originalidade”. A originalidade é bem-vinda, mas não é essencial à arte. Muita coisa muito divertida já foi feita reciclando velhos conceitos ou fazendo homenagens ao trabalho alheio. Não existe nenhum mal nisso. O autor de quadrinhos só não pode se esquecer de contar uma boa história.


O Lanterna Verde até que tem sorte, falando francamente. Após a longa e nem sempre tão inspirada fase de Geoff Johns (muito apoiada em ideias prévias de Alan Moore, provando o que eu disse no parágrafo anterior), seus títulos foram entregues a honestos operários da Nona Arte, como Peter J. Tomasi, Robert Venditti e, agora, Geoffrey Thorne, o homem por trás da fase reunida nestes três encadernados da Panini, que vai de Green Lantern (2021) 1 a 12, além de Green Lantern Annual e o especial DC: Love Is a Battlefield.

A Tropa está reunida em Oa para receber novas instruções, agora que deve funcionar como uma força policial de apoio à recém-criada Federação dos Planetas Unidos, e para o funeral de um Guardião. Durante o evento, ocorre um ataque terrorista: habitantes de um planeta exilado e regido pela magia acusam os Guardiões de roubar o Coração Estelar e impor ordem e ciência contra a vontade dos povos mágicos. O ataque deixa mortos e feridos e, quando o pior já parece ter passado, a Bateria Central explode, deixando vários Lanternas mortos e os sobreviventes sem carga energética. Apenas duas delas não são afetadas: a menina Keli Quintela, vulgo Lanterna Nerd, cuja manopla não se alimenta da Bateria Central; e Sojourner “Jo” Mullein, a Lanterna detetive da ótima minissérie Setor Final (2019), cujo anel tem origem e funcionamento excêntricos, que chega para ajudar a resolver o mistério por trás dos ataques.


Em paralelo, John Stewart e um grupo de Lanternas saem em missão a um setor muito distante de Oa, onde são emboscados. Resgatado pelos habitantes de uma colônia de mineração, John tem que protegê-los de escravagistas e ainda lidar com decisões difíceis sobre abraçar ou rechaçar um novo poder e toda uma nova existência à sua disposição. Todo o equilíbrio do universo depende de seus próximos passos.

Como se nota, Thorne apela sem pudor a alguns velhos truques do “lanternaverso”, mas toma decisões espertas. A mais notável talvez tenha sido integrar a lanterna Jo Mullein – nascida no selo experimental DC Young Animal, de vida curtíssima - ao universo tradicional, de forma natural e pertinente. Suas habilidades como detetive e relações-públicas trazem um frescor à Tropa, em que todo mundo é meio que somente herói de ação ou soldado. Outro ponto a favor é o descanso dado aos muito manjados Hal Jordan e Sinestro, que até aparecem, mas não tomam o centro dos eventos.

Ilustrado pelos artistas Tom Raney, Dexter Soy e Marco Santucci, que, se não brilham, tampouco comprometem, o roteiro de Geoffrey Throne ganha vida em momentos dignos da longa tradição cósmica da DC. Faz falta, porém, um desenhista superstar, como Ivan Reis, (que acompanhou Geoff Johns) ou alguém bem pirado mesmo, feito o J.H. Williams III. A escala de tudo é gigantesca, e só mesmo a falta de uma arte superior impedirá esta saga – com seus desdobramentos ousados, interessantes e cheios de propósito, mas tristemente abandonados pela DC na fase seguinte – de, futuramente, ser mencionada em pé de igualdade com as mais icônicas fases dos gladiadores esmeraldas.

21/08/2024

Mozipédia: A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths

A banda inglesa The Smiths durou pouco: foram meros cinco anos, entre 1982 e 1987 – e menos ainda para mim, que só vim a conhecê-los no início de 1986. Apesar disso, sua influência em minha vida – que vai do meu gosto musical a certos aspectos de minha personalidade – seguiu pelas décadas à frente. Quase 40 anos depois, eles ainda são meus artistas favoritos.

Daqui, do Brasil, onde tudo naquele tempo quase sempre demorava muito a nos alcançar, a gente não fazia ideia do fenômeno que eles eram na Inglaterra. Há uma passagem bastante ilustrativa disso em Mozipédia: A Enciclopédia de Morrissey e dos Smiths: convidados a abrir um show do The Police (uma banda muito popular no Brasil, que havia feito shows históricos por aqui), os Smiths recusaram a suposta honraria, com o guitarrista Johnny Marr esclarecendo: “Nós já somos mais importantes do que o Police jamais foi”.

Verdade ou exagero, o fato é que os Smiths extrapolaram seus muitos méritos musicais, tornando-se um fenômeno cultural muito atípico, especialmente por conta das letras e das fortes opiniões de seu vocalista, Morrissey. Sua mera figura e estilo de vida (entre outras idiossincrasias, ele é um vegetariano radical) eram objeto de escrutínio da imprensa e devoção dos fãs, numa escala que só teve paralelos na beatlemania, 20 anos antes deles. Morrissey e Marr simplesmente não deviam nada a Lennon e McCartney, ou Jagger e Richards: eram um perfeito exemplo de quando o resultado supera em muito a soma das partes.

(The Smiths: Andy Rourke, Morrissey, Johnny Marr e Mike Joyce)

Menos biografia e mais enciclopédia pra valer, com temas organizados em ordem alfabética, o livro de Simon Goddard ajuda a entender as razões para o mitológico sucesso da banda e de seu vocalista, listando e avaliando absolutamente TODAS as músicas lançadas (e até algumas não lançadas) durante a existência da banda e na carreira solo de Morrissey, até o ano de publicação do livro, 2009 – quando ele havia lançado o ótimo Years of Refusal. Além de álbuns e singles, traz referências a shows e coletâneas em vídeo; os filmes, livros, músicas, cantores, atores e autores citados como favoritos de Morrissey; os diferentes parceiros musicais ao longo das décadas; os amigos e desafetos; as razões e as consequências da separação; e até mais, acredite.

São mais de 700 páginas que, por sua abrangência, trazem um punhado de informações que, em certos momentos, desafiam o interesse do leitor – sem falar que Goddard tem algumas opiniões controversas sobre alguns discos e canções. Por exemplo, ao falar do primeiro álbum ao vivo de Morrissey, o eletrizante Beethoven Was Deaf, ele o acusa de “pouca intensidade”. Também atribui à monumental “Life is a Pigsty” uma certa “fraqueza de pulso”, classificando-a como nada mais que “uma porcaria divertida”. Como se pode notar, existe um preço a pagar por saber ler.

Por outro lado, acerta ao atribuir o justo valor a certas canções, como nas emocionadas palavras que dedica a “Last Night I Dreamt that Somebody Loved Me”, chamando-a de “a última obra-prima da banda”, uma canção que até Andre 3000, do duo de hip-hop Outkast, chamou de genial e disse desejar ter sido ele a compor.

A edição nacional, da editora Leya, tem alguns problemas de tradução e revisão, com informações equivocadas (como chamar ao baixista Andy Rourke de “baterista”, posto que era de Mike Joyce), traduções muito literais onde caberia uma adaptação ao “paladar” brasileiro, e algumas frases que simplesmente não têm sentido completo. Apesar dos percalços, recomenda-se o livro a iniciados e curiosos, pois é agradável leitura e funciona muito bem como documento sobre o legado de uma banda que foi muito maior do que imaginamos, mas ainda muito menor do que estava destinada a ser.

Deadpool & Wolverine


Menos de um mês após sua estreia, Deadpool & Wolverine ostenta uma bilheteria bilionária. Já é o segundo maior filme do ano, atrás apenas de Divertida Mente 2. Por mais impressionantes que sejam as cifras, o maior feito do filme é outro: o de desmentir essa história de que existe um cansaço com o gênero de super-heróis. Existe um cansaço compreensível, sim - mas dirigido a filmes ruins, que se tornaram mais a regra que a exceção.

Além de realizar a profecia do próprio personagem de que ele seria “o Jesus da Marvel”, Deadpool & Wolverine mostra que o público ainda tem, sim, bastante interesse pelo MCU e, ainda que alguém queira atribuir seu sucesso apenas ao inigualável carisma da dupla de protagonistas (Ryan Reynolds e Hugh Jackman), D&W tem boas ideias de sobra e honra o legado de seus personagens, seja em papel ou em película.

Aliás, o filme funciona como uma carinhosa elegia à “era Fox” de filmes do gênero, que, entre erros e acertos, divertiu muita gente desde tempos pré-Marvel Studios. Embora o extenso círculo de amizades e o imenso poder de convencimento de Ryan Reynolds tenha garantido algumas presenças ilustres e nostálgicas, em número suficiente para dar um lustro especial a este filme cheio de adrenalina, riso e emoção, muita gente boa ainda ficou de fora – e tudo bem, não se pode ter tudo, mesmo.

Além de ter os amigos certos nos lugares certos, Reynolds tem amor de sobra: pelos quadrinhos em geral, pelo Deadpool em particular e, principalmente, por interpretá-lo. Sim, é verdade que ele e Jackman estão ganhando rios de dinheiro - o que sempre deixa tudo muito mais legal - mas é possível ver que ambos estão, acima de tudo, se divertindo de verdade em fazer este filme juntos. Pode procurar uma featurette qualquer no YouTube e você verá que os dois são amigos de longa data e há tempos buscavam uma oportunidade de trabalhar juntos.

Outro amigo no projeto é o diretor Shawn Levy, canadense como Ryan Reynolds, e que já havia trabalhado tanto com ele (em Free Guy e O Projeto Adam) quanto com Hugh Jackman (em Gigantes de Aço). Levy cria sequências muito divertidas e empolgantes de ação, que nos dão a sensação de estar lendo um belo gibi no sofá de casa, com um sorriso no rosto. Até as sequências emocionais funcionam bem – mas, como se trata de um filme de Deadpool, a esculhambação volta a tomar conta em cinco segundos.

Vale um sincero elogio à Marvel/Disney por não ter “domesticado” os personagens ao inseri-los no MCU. D&W está repleto de morte, mutilação, humor de 5ª série e insinuações sexuais. A Disney pode ser careta, mas não é burra: ela sabe que o público não se interessaria por um Deadpool limpinho, censura livre. Chega ao ponto de aceitar ser seguidamente sacaneada sobre seus fracassos e decisões estúpidas. Ponto pra Reynolds, de novo: ele não apenas sabe rir de si mesmo, como sabe ensinar a fazê-lo.

Ao fim do filme, a gente se sente feliz e gostosamente anestesiado com o banquete de piadas, aparições especiais, menções a fases clássicas e mais easter-eggs do que somos capazes de processar – mas, ei, existe uma boa história aqui! Com seu universo em risco de ser apagado por um agente independente da AVT (aquela da série do Loki), Deadpool vai atrás de um Wolverine pra chamar de seu e salvar todo mundo, mas tem que se contentar com uma versão do herói que deixou seus X-Men e seu mundo morrerem, “o pior Wolverine que existe”. Juntos (e com ajuda de alguns amigos), eles vão enfrentar a AVT, a vilã Cassandra Nova, um exército de Deadpools e, diversas e divertidas vezes, um ao outro.

Não chega a ser um primor de roteiro nem ambiciona ser a pedra angular de qualquer coisa, mas não querer reinventar a roda é justamente uma das maiores qualidades deste filme muito merecedor de seu sucesso, que devolve alguma vida à agonizante Marvel do cinema. Resta saber se ela vai aprender suas lições ou ficar eternamente confiando nos milagres de seu Jesus.

15/07/2024

Oi, sumido!

Desculpem pela prolongada estiagem, meus dois leitores e meio. Foi um misto de preguiça com falta de inspiração, férias de São João e pequenos prazeres que um aniversariante (do dia 27/06) se permite, em lugar de escrever. Se tudo correr como planejado, já retomo uma boa frequência por aqui. To the Batmobile, let's go!

Sugar

John Sugar (Colin Farrell) é um detetive particular, especializado em encontrar pessoas desaparecidas. Quando o conhecemos, ele está em Tóquio, em busca do filho sequestrado de um chefe da Yakuza. Após voltar a Los Angeles, onde mora, Sugar é contratado pelo magnata do cinema Jonathan Siegel (James Cromwell) para achar sua neta, a problemática Olivia, que já possui histórico de sumiços regados a drogas, mas sempre mantinha contato e sempre acabava voltando. Desta vez, porém, a demora e a falta de notícias deixam o avô preocupado. Investigando o paradeiro da moça (inclusive, a contragosto da agência que o emprega), Sugar vai puxando os fios de um mistério cheio de verdades incômodas.

Se é verdade que a trama de Sugar, nos oito episódios desta sua primeira temporada, não é bem das mais originais, não significa que falte charme ou interesse à série da Apple TV+.

Pra começo de conversa, existe este fascinante protagonista: um detetive cujo trabalho tem sempre muita chance de descambar para a violência, mas que tenta ser razoável e dialogar a cada vez que encara um meliante. Por outro lado, ele também reconhece de longe um mentiroso e mostra-se incansável ao encontrar seus alvos, exibindo um vigor físico e um destemor que contrastam com sua persona calma e amante do cinema e de coisas vintage em geral (como o Corvette Sting Ray 66 que dirige).


Colin Farrell parece divertir-se muito com seu personagem, um tipo que lembra um monge em ternos impecáveis, além de ser portador de uma boa índole inabalável e de uma memória cinematográfica prodigiosa: cada ação sua é pontuada pelo flash de algum clássico de Hollywood, especialmente dos anos 40 e 50, evocado pelas pessoas e acontecimentos ao seu redor.

Embora ambientada no presente, a série tem trama, clima e design de produção imediatamente reconhecíveis como de film noir – exceto, claro, pelo fato de Sugar ser quase uma antítese total dos tipos durões e moralmente dúbios presentes em filmes assim. Ele é bom até a medula, não bebe, fala vários idiomas, e é genuinamente legal com pessoas vulneráveis, seja uma mulher bêbada que flerta com ele ou um mendigo e seu cão na porta do bar onde busca informação. Um tipo que, em mãos menos hábeis, cairia fácil na caricatura ou ganharia nossa antipatia por ser “legal demais”, mas que funciona extremamente bem.


O elenco de apoio não deixa a peteca cair jamais: além do sempre ótimo James Cromwell, outro destaque é Amy Ryan, uma atriz muito talentosa e agradável, que, aos poucos, vai se transformando no que eu entendo como “ex-namoradinha da América”, por jamais tê-lo sido quando mais jovem. Ela lembra uma Meg Ryan mais séria, mais madura, e está por aí há bastante tempo (pode-se vê-la, por exemplo, em The Wire), mas só agora ela está realmente “acontecendo”. Kirby (que abdicou do sobrenome Howell-Baptiste), a Morte de Sandman, faz a melhor amiga e contato da agência por quem o coração de Sugar parece balançar. O ótimo Nate Corddry está em mais um de seus papéis moralmente minúsculos, o neto do personagem de Cromwell.

Créditos sejam dados à charmosa co-direção, dividida entre o nosso Fernando Meirelles (Cidade de Deus) e Adam Arkin (ator e diretor, filho do saudoso Alan Arkin). O roteiro de Mark Protosevich vai muito bem quase o tempo todo, mas, lá pelo sexto episódio, um novo fato sobre John Sugar e a agência coloca a série em um rumo que ainda me pergunto se gosto ou não. Achei o plot twist entre descabido e desnecessário. Minha esperança é que esse novo fato não se torne o foco central de uma possível segunda temporada.

A gente entende melhor o “deslize” quando percebe que Mark Protosevich está apenas sendo ele mesmo, o cara que escreveu filmes divisivos, pra dizer o mínimo, como Eu Sou a Lenda e o primeiro Thor. Apesar de não terminar tão bem quanto começa, Sugar está entre as melhores coisas que o streaming ofereceu no primeiro semestre.

14/05/2024

Música & Mágica #2


LOBÃO
A Vida é Doce
1999

Certa noite, vagando pelo Twitter, acho que lá pelo ano de 2010, tive uma breve e divertida interação com Lobão. Aproveitando o gancho de uma declaração sua, segundo a qual ele não se reconhecia no som do disco Sob o Sol de Parador (1989) – destacando, entre outros motivos, a produção clean de Liminha – Lobão me disse que, na verdade, sentia o mesmo em relação a qualquer disco anterior àquele.

Aproveitei para dizer que sua bateria firme em “Obrigado (Por Ter Se Mandado)”, faixa do Ideologia (1988), de Cazuza, era o que eu mais gostava na música, depois da letra acachapante. A reação de Lobão: “Era eu na bateria? Manda aí, eu quero ouvir, não me lembro disso!” – e lá fui eu fuçar meus mp3 de origem questionável. Ao ouvir as próprias baquetadas, confirmou: “Ficou bom mesmo, hein?”

Não me lembro se já naquele tempo Lobão estava acometido pelo antipetismo – uma doença mental coletiva, que fez muita gente acreditar que a corrupção no Brasil nasceu durante os primeiros mandatos de Lula, inventada e espalhada por políticos com muito mais culpa no cartório. Era triste ver gente aparentemente saudável que, de uma hora para outra, começava a espumar pela boca e vociferar “E O LULA? E O PT?”

Fato é que Lobão – ao lado de vários contemporâneos da cena BRock - cedeu à moléstia e, por muito tempo, esteve alinhado com os inimigos da democracia que chegaram ao poder em 2018. Algum tempo depois, felizmente, pareceu arrepender-se – e digo “pareceu” porque eu próprio deixei o Twitter, e o soube por meio de notícias. Pesquisando como não-usuário por seu perfil, hoje, alguém pode pensar que ele parou de postar em 2019, quando exaltava fascistas em caixa alta o dia inteiro.

Apesar disso, não peguei por ele o ranço devastador que peguei, por exemplo, pelo Ultraje a Rigor. Dediquei um bom tempo à leitura de sua ótima autobiografia, 50 Anos a Mil, e não sentia náusea ao escutar qualquer canção sua - principalmente, quando vinha deste estupendo A Vida é Doce.


Era 1999. Lobão chacoalhou o mercado com um lançamento que era independente de verdade (quando muita gente se considerava indie, enquanto era bancado pelo Grupo Abril). Gravou seu disco e mandou para as bancas de jornais, com cópias numeradas e acompanhado de uma revista chamada Manifesto – e vendeu bem, umas 100 mil cópias, numa época em que a pirataria de CDs físicos era forte e a pirataria online começava a incomodar às gravadoras.

Na capa de A Vida é Doce, um Lobão de costas para o ouvinte contempla o mar escuro em um dia nublado. É uma atmosfera que casa com as habituais temáticas do cantor, mas que se contrapõe ao clima de praia e bermuda da sua geração de rock nos anos 80 – e mais ainda à alegria inconsequente do funk carioca, que, naquele fim dos anos 90, começava a ganhar força no mainstream nacional.

No rescaldo de uma rápida e severa febre techno que assolou a música mundial, Lobão parecia ser um dos poucos artistas locais ainda prestando atenção ao trip hop nascido quase uma década antes, por obra do Massive Attack e Portishead, principalmente. Pode ter sido tardio surfar essa onda, mas Lobão não entregou música anacrônica: pelo contrário, havia um sentido de urgência e caos que era o rosto daquele último ano do século XX.

Já na abertura, “El Desdichado II” era Lobão – finalmente, dono de seu próprio som – reapresentando-se a quem ainda o desconhecia (e até para quem ele já era familiar): “Eu sou a execução, a perfuração / O terror da próxima edição dos jornais / Que me gritam, me devassam e me silenciam”. A saraivada verbal é acompanhada de violão, baixo, percussão, guitarra distorcida e arrepiante grito primal.

Como sempre, Lobão faz aqui ótima crônica de submundo, cheia de tipos marginais e poéticos, mulheres interessantes e decididas, em situações que podem ser vistas ou vividas nas madrugadas de qualquer grande centro. “Universo Paralelo” (talvez a melhor música do Portishead que o Portishead nunca gravou) e “Tão Menina” (a faixa mais acelerada do álbum) são dois exemplos da vocação de Lobão para ser o nosso Charles Bukowski.

Quando fala de amor (ou desamor), Lobão atinge picos de beleza e emoção, alternando realismo e lirismo, alegria contagiante e tristeza resignada. “Para Onde Você Vai”, “Vou Te Levar” e “Uma Delicada Forma de Calor” (com Zeca Baleiro) devem figurar em qualquer lista decente de melhores baladas do velho João Luiz. Na faixa-título, o caos urbano é pano-de-fundo para um caos pessoal ainda maior. Só mesmo no auge do desespero é que um homem recorre a um “me perdoa” como aquele.

Imediatamente antes do bonito final instrumental (“Amanhecendo na Lagoa”), Lobão prova que escutou Massive Attack com ouvidos muito atentos: “Mais Uma Vez” tem os climas, os efeitos e a solenidade que fizeram a fama dos ingleses de Bristol. Os mestres certamente aprovariam a homenagem. Ao ouvinte, resta a “lombra” gostosa que música de tamanha qualidade provoca. Se é verdade que Lobão já nos deu motivos para abandoná-lo, também é certo que A Vida é Doce torna esta uma tarefa bastante inglória.

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Lobão
A Vida é Doce
Produzido por Lobão, Jongui, Humberto Barros e Regina Lopes
Lançado em 10 de abril de 1999

01 – El Desdichado II
02 – Universo Paralelo
03 – Pra Onde Você Vai
04 – Tão Menina
05 – A Vida é Doce
06 – Uma Delicada Forma de Calor
07 – Tão Perto, Tão Longe
08 – Ipanema no Ar
09 – Vou Te Levar
10 – Mais Uma Vez
11 – Amanhecendo na Lagoa

06/05/2024

Céu - Novela (2024)


Certo dia, na “delicadeza” que lhe é peculiar, meu irmão do meio declarou que “Tiê, Céu, Sol, Mar... Cantora com nome de três letras é tudo igual, nenhuma presta”.

Tiê foi razoavelmente famosa por um tempo, com ajuda de uma cover acústica da Turma do Balão Mágico, coisa que não é lá muito impressionante, num currículo. Se realmente existem cantoras chamadas Sol e Mar, não sei – tampouco o sabe meu irmão, que só quis fazer graça e formar uma trinca delas com Céu.

Particularmente, acho injusto colocar Maria do Céu Whitaker Poças em qualquer balaio generalizante de maneira negativa. Perto de completar 20 anos de carreira, Céu não caiu de paraquedas na música: ela é filha de Edgard Poças, maestro, arranjador e letrista que, nos anos 80, foi um dos arquitetos do já citado Balão Mágico. Céu poderia, inclusive, ter pensado que tinha a “envergadura moral” para gravar Balão Mágico antes de (ou melhor que) Tiê, mas, desde 2005, ela faz seu próprio (e interessante) caminho na música.

Apesar de ter sido apresentado a algumas ótimas faixas por um amigo que é muito fã de Céu, nunca fiz dela presença constante em meus ouvidos – o que é, certamente, uma senhora pisada na bola, de minha parte. Pensando aqui, com sua música na orelha, me peguei percebendo muito de Gal Costa nela – com a vantagem de que, enquanto a saudosa Gal era essencialmente uma intérprete, Céu é ótima letrista e compõe quase todo o próprio repertório.

Pegue um disco seu para tocar e ele dificilmente deixará de agradar – seja pelo som com groovado em baixos teores, as letras cheias de esperteza ou a voz absurdamente suave e afinada que Céu ostenta. Ela se cerca das melhores companhias, e sua música, mesmo não sendo o suprassumo do pop, tem sempre excelente produção.


Novela me foi sugerido por alguém que, numa espécie de desafio, me mandou pediu: “quero ver resenha no Catapop, viu?” Ora essa, amigo, dificuldade zero! É muito fácil e gostoso falar de bons discos. Novela é um compêndio das muitas boas influências de Céu: MPB, reggae, soul music, trip hop, samba, rock... É impressionante como um disco que bebe de tantas fontes soa tão coeso. Céu é muito craque em suas misturas.

“Raiou” abre os trabalhos, com sua levada Jorge Benjor, piano climático e letra com toques de sagaz autoajuda: “te sai dos dribles que a vida te deu /.../ te apruma, que o dia raiou / em sua cor de sorte /.../ entoa teu mantra e vai cantando / viver é para os fortes”.

A safada “Cremosa” e a ingênua “Crushinho” fariam bonito em qualquer trilha de novela. No meio delas, um hino de amizade, “Gerando na Alta”, o single do álbum. “Into My Novela” retoma a vibe romântica, com cordas emocionantes e pequenas intervenções em inglês (uma manobra que se repete em outras faixas). Embora heterossexual (namora e tem filho com o baterista da Nação Zumbi, Pupillo), Céu canta para objetos femininos de desejo com sutileza e elegância.

Tenho a impressão de que a música de Céu deve funcionar melhor com THC nas ideias (“High na Cachu” não deixa muita dúvida), mas ouvi-la de cara limpa não traz qualquer prejuízo. “Lustrando Estrela” tem a bateria lo-fi abrindo caminho para um arranjo que é pura Motown. “Reescreve” meio que complementa as ideias de “Raiou”, numa levada a la Gil Scott-Heron, exortando o ouvinte ao pensamento crítico.

Se você, ao fim de sua audição de Novela, sentir um súbito desejo de recuperar o tempo perdido e ouvir mais de Céu, saiba que não está sozinho: apesar da carreira longa, ainda lhe falta sucesso popular que se equipare ao prestígio com a crítica daqui e de fora – mas não convém duvidar que ela chegue lá. Nada mal para uma mera cantora com nome de três letras, hein?


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Céu
Novela 
Produzido por Céu, Pupillo e Adrian Younge
Lançado em 26 de abril de 2024

01 - Raiou
02 - Cremosa
03 - Gerando na Alta
04 - Crushinho
05 - Into My Novela
06 - Mucho Ôro
07 - High na Cachu
08 - Buá Buá
09 - Vinheta Dorival II
10 - Lustrando Estrela
11 - Corpo e Colo
12 - Reescreve

30/04/2024

Ripley


Lembro de ter assistido apenas uma vez ao filme O Talentoso Ripley (1999), de Anthony Minghella (redimindo-se da chatice monumental de O Paciente Inglês, de 1996, um desses filmes cuja vitória no Oscar a gente nunca digere bem), com os personagens do thriller de Patricia Highsmith (1921-1995), publicado em 1955, ganhando vida nas atuações estelares de Matt Damon, Jude Law e Gwyneth Paltrow. Tom Ripley (Damon) é um desses monstros carismáticos que nos fazem sentir um ponta de culpa por torcer para que eles se livrem do merecido castigo por todo o mal que causam. Ele mente, rouba, falsifica e mata - e nós, coitados, não entendemos por quê, mas é inegável que o amamos.


25 anos depois, a Netflix transforma o livro de Highsmith em série. Os oito episódios de Ripley têm produção, roteiro e direção de Steven Zaillian, cobra-criada e oscarizada de Hollywood, com extenso currículo de bons serviços prestados à arte, que vão dos roteiros de A Lista de Schindler (1993) a O Irlandês (2020) no cinema e The Night Of (2016), que também dirigiu, na TV.

Em glorioso preto-e-branco (o que amplifica o charme vintage decadente da Itália dos anos 50), a série lentamente desenvolve a história de Tom Ripley, um tipo medíocre que vive de pequenos golpes em Nova York, desfrutando como pode do pouco que lhe cabe do “sonho americano” (geralmente, o alheio). Procurado pelo milionário pai de um playboy esbanjador, que está gastando sua fortuna com a namorada na Itália, num “dolce far niente” (em tradução livre, “a arte de não fazer nada”, em italiano), Ripley é incumbido de convencer o já não tão jovem Richard Greenleaf a voltar para casa.

Quando chega ao vilarejo Atrani, Ripley se encontra com Tom, que não o reconhece. Sua namorada, a aspirante a escritora Marge, também desconfia da fala mansa e do deslumbre de Tom com a vida de “pobre menino rico” que Dickie leva. Com relutância, o casal aceita hospedá-lo. Tom se acostuma à vida mansa e passa a enrolar o pai de Dickie, enviando cartas evasivas sobre o retorno do filho – e, claro, sempre pedindo mais dinheiro. Quando a obsessão de Tom por Dickie começa a interferir na vida do casal e algumas suspeitas se confirmam, os dois começam a planejar como livrar-se dele – o que coloca em marcha o plano macabro do próprio Tom.


Como Tom Ripley, o sempre ótimo Andrew Scott (em ascensão desde a série Sherlock) tem aquele olhar vago, emocionalmente neutro, típico dos sociopatas. Acuado ou furioso, Ripley não explode – ao contrário: quanto mais a coisa aperta, maior parece seu controle e sua capacidade de escorregar entre os dedos dos que o caçam. Um ator menos sutil faria caras e bocas de “perigoso”, mas Scott dá nova dimensão ao epíteto de “talentoso” do personagem.

No papel da desconfiada e ressentida Marge, Dakota Fanning parece sempre saber (e querer) mais do que pensamos, enquanto Johnny Flynn (que deu vida a David Bowie e era a única coisa boa em Stardust, de 2020) está igualmente firme e vulnerável como Dickie, o filho mimado e artista frustrado no centro dos interesses e do plano de Tom Ripley. Há um extenso elenco de ótimos atores italianos (com destaque para Maurizio Lombardi, que faz o Inspetor Ravini) e uma pontinha de John Malkovich (que também já foi Ripley no cinema).

A opção pelo preto-e-branco nos priva do colorido intenso da costa italiana, mas privilegia os tons sombrios e rimas geométricas das cenas noturnas (isto aqui é um film noir, afinal), além de emprestar alguma beleza aos cenários deteriorados dos cortiços italianos. Como fez antes em The Night Of, Zaillian constrói suspense que raramente atinge um apogeu - com a apavorante exceção do primeiro assassinato, de gelar o sangue. O escape da tensão crescente é, quase sempre, por uma tangente desconcertante – como se estivéssemos, nós mesmos, sendo ludibriados por Ripley e pedindo por mais. A gente sofre, mas acha gostoso.

18/04/2024

Sr. e Sra. Smith


Após concluir Sr. e Sra. Smith, a série, eu quis rever o filme de 2005, no qual é inspirada, com Brad Pitt e Angelina Jolie, para efeito de comparação. O filme foi um desses que demorei bastante a assistir, e só o havia feito uma vez. Lembro de ter pensado que parecia ser apenas um enorme comercial de perfume, no qual o casal mais bonito de Hollywood apenas desfilaria sua “boniteza” pela tela. Estava errado, claro: era fruto da imaginação ainda afiada de Simon Kinberg e dirigido por Doug Liman, um sujeito que quase nunca erra quando o assunto é ação com humor.

Sim, Pitt e Jolie estão lindos na tela (especialmente, ela) e, mesmo que o filme não seja lá muito exigente em termos de drama, exibem talento (especialmente, ele, que tem cenas impagáveis de humor físico). O estopim da briga entre o casal é meio fuleiro: eles são designados para a mesma missão, acabam se atrapalhando mutuamente e já partem para matar um ao outro, com sangue no olho e sem diálogo, mesmo após cinco – seis? – anos de casados, nos quais um não sabia da vida dupla que o outro levava. Precipitação é eufemismo.

Com oito episódios de cerca de 60 minutos para desenvolver sua trama, a série do Prime Video faz tudo com muito mais paciência e lógica. Donald Glover e Maya Erskine (em papel que antes seria de Phoebe Waller-Bridge) são os novos John e Jane Smith, completos estranhos um ao outro. Eles são designados para viver juntos e cumprir missões dadas por alguém que apelidam de Oioi, porque é assim que o misterioso chefe os cumprimenta no “zap do trabalho”, antes de passar suas instruções.

Donald Glover e Maya Erskine: chumbo trocado dói, sim!

As missões começam relativamente fáceis, mas, desde a primeira, John e Jane percebem que existe risco real envolvido. Conforme a dificuldade dos trabalhos aumenta, os dois vão se conhecendo melhor e acabam apaixonados – e é claro que misturar trabalho e sentimentos começa a comprometer a eficiência do casal de agentes, que só tem permissão para fracassar em suas missões três vezes.

O filme contava com muita gente boa, como Kerry Washington, Jennifer Morrison e Michelle Monaghan, mas em papéis modestos, meras escadas para o casal de astros. Adam Brody, sendo o pivô da missão que detonava a briga dos Smiths, teve sorte um pouco melhor. O filme ainda tinha Vince Vaughn, péssimo como sempre e irritante como nunca.

Na série, o elenco coadjuvante é estrelado e seus personagens têm função na história e tempo para brilhar. Gente como Paul Dano, John Turturro, Micaela Coel, Parker Posey e Wagner Moura – este último rouba para si cada cena em que aparece, exalando charme e desembaraço com o inglês. Há até piada com isso, quando John diz para Jane: “É aquele sotaque, né? A gente fica com vontade de ajudá-lo”.

Wagner Moura: dono ladrão da porra toda!

O luxuoso auxílio desses atores, porém, não significaria muito, caso o novo casal de protagonistas não desse conta do recado. Donald Glover e Maya Erskine são ótimos no humor, no romance e na ação, mas de um jeito bem mais “pé no chão” que o casal do filme. Primeiro, são donos de uma beleza bem diferente daquela. São bonitos, mas não parecem (perdão, se me repito) modelos em um comercial de perfume (e é de Glover a sensualidade mais explorada). Suas personalidades possuem tantas camadas interessantes, que é até covardia comparar os novos Smiths com os antigos. Os tiroteios não são posados e acrobáticos. Muita coisa dá errado para eles e tudo tem consequências.

Quando a coisa finalmente chega ao ponto em que um tenta matar o outro, já rolou muita água, amor e mágoa entre eles. A gente entende como eles chegaram ali (e aquela inesperada fatalidade do primeiro ataque certamente não ajudou). Acaba que a série, por melhor que seja como entretenimento de ação, revela-se um tratado sobre a incomunicabilidade – não apenas entre casais, mas entre pessoas – e como essa dificuldade em expressar sentimentos – um sério mal de nosso tempo – pode arruinar até as coisas mais belas.

Não quer dizer que Sr. e Sra. Smith seja uma série “cabeça”. Ela é inteligente, bem escrita e bem interpretada, não desaponta como espetáculo de ação e consegue fazer que nos importemos com o casal, temendo pelos desafios que enfrentam entre si e pelos perigos que correm em suas missões. Assim como foi com o filme, demorei a dar o play na série, mas, agora – especialmente, após o tenso gancho do último episódio – mal posso esperar por uma nova temporada!

15/04/2024

Kula Shaker - Natural Magick (2024)


Já beirando os 30 anos de carreira, o Kula Shaker não teve qualquer atenção de minha parte desde sua estreia. Foi apenas bem recentemente que dei um play em "Tattva", seu primeiro single. Achei legal e tal, mas não me animou a parar pra escutar sua discografia. O KS faz parte de uma leva de bandas britânicas de variadas ascendências asiáticas, surgidas na década de 90, que incluía, por exemplo, o Cornershop e o Asian Dub Foundation. Apesar de pinçar umas boas faixas aqui e ali, não foi uma geração que me cativou tanto assim.

No comecinho de fevereiro, eu abro meu Spotify pra escutar um sonzinho e me chega a recomendação do novo álbum do Kula Shaker. "Tá, bora ver qual é", pensei. 46 minutos e 13 belas canções depois, eu só conseguia pensar que há tempos não me divertia tanto com um disco de rock, desde já um dos melhores do ano.

A primeira faixa de Natural Magick é "Gaslighting", com guitarra, bateria e teclados Hammond absolutamente matadores, sobre os quais o vocalista Crispian Mills exalta a chegada de uma "era aquariana de comunicação e re-humanização". Se você se pegar batendo palmas, marcando o ritmo com o pé, fazendo air guitar, balançando a cabeça ou sacudindo o corpo, não se preocupe: essas são reações naturais ao bom rock psicodélico.

A influência hindu do KS aparece na letra em idioma vigilar da bonita "Chura Liya (You Stole My Heart)" (com um sabor estradeiro texano e metais mariachi) e na altamente assobiável "Indian Record Player". A cítara em "Something Dangerous" emoldura versos como "não tenho vergonha de chorar/pois estou chapado, chapado, chapado/como nunca achei que pudesse estar". Impossível não imaginar como um show com esse repertório deve ser dançante e poderoso.


Kula Shaker: Alonza Bevan, Crispian Mills, Paul Winterhart e Jay Darligton

E aí, no meio do disco, quando você acha que não vai nem conseguir parar pra respirar, a banda desacelera e entrega um baladão maravilhoso, "Stay With Me Tonight". "Happy Birthday" é um momento hare krishna e mesmo isso tem um sabor de rock and roll perene. Aliás, esta é uma grande virtude deste álbum: embora seja obra de uma banda com três décadas de atividade e esteja pautado sobre uma escola musical com seis décadas de existência, tudo soa muito moderno. É música para se ouvir em qualquer momento da História.

"Idontwannapaymytaxes" (eu não quero pagar meus impostos) é a classe operária dando o dedo médio pra classe política inglesa, que se mete (e gasta) cada vez mais com intervenções militares. "F-Bombs" vai na mesma toada, com citações hilariamente equivocadas: "acho que foi Mahatma Ghandi, ou talvez tenha sido Groucho Marx, quem disse, num de seus momentos mais lúcidos, 'foda-se a guerra!'" Já perto do fim, "Whistle and I Will Come" é uma power ballad que o Oasis teria se orgulhado de gravar.

Temos aqui um monte de riffs de guitarras inspiradíssimos, uma "cozinha" sólida e groovada, letras sagazes e um punhado de melodias absolutamente contagiantes. Se houvesse alguma justiça neste mundo, tão distraído com vinhetas e coreografias de TikTok, o Kula Shaker estaria lotando estádios e Natural Magick seria item da cesta básica. Para nossa sorte, o rock não apenas está vivo: ele também está com um tesão indecente!

* * * * *

Kula Shaker
Natural Magick
Produzido por Crispian Mills, Alonza Bevan e Kevin Nixon
Lançado em 2 de fevereiro de 2024

01 - Gaslighting
02 - Waves
03 - Natural Magick
04 - Indian Record Player
05 - Chura Liya (You Stole My Heart)
06 - Something Dangerous
07 - Stay With Me Tonight
08 - Happy Birthday
09 - Idontwannapaymytaxes
10 - F-Bombs
11 - Whistle and I Will Come
12 - Kalifornia Blues
13 - Give Me Tomorrow