Por um breve e marcante momento, na já bem distante década de 90, a DC Comics deu sucessivos “choques de realidade” no seu panteão: entre os eventos de maior impacto, Superman foi morto, Batman foi aleijado, Mulher-Maravilha foi destituída de seu título, Arqueiro Verde morreu em uma explosão, e o Lanterna Verde Hal Jordan perdeu a cidade e o juízo, tornando-se um vilão.
Parecia um tempo muito sombrio, mas era justamente o contrário: dando a impressão de que o tempo finalmente alcançou seus maiores nomes, a DC investiu num pesado movimento de legado, apresentando aos leitores uma forte onda de jovens substitutos, por parentesco ou afinidade: o Superboy havaiano, Jean-Paul Valley como Batman, Ártemis como a Mulher-Maravilha titular, o surgimento de Connor Hawke e Kyle Rayner, e muitos outros. Nem tudo era tão legal assim e, como esperado, tudo depois voltou a ser mais ou menos como sempre foi, – mas, sejamos honestos, foi bonito de acompanhar.
Um dos quadrinhos a melhor retratar uma “passagem de manto” foi Starman, escrito por James Robinson e desenhado por Tony Harris, primeiro publicado no Brasil entre 1997 e 1998, pela Magnum. Teve quatro números, depois reunidos num “encalhernado” de 1999, com as edições 0 a 3. Depois, em 1999, a Tudo em Quadrinhos publicou outros quatro números, com duas histórias por edição, cobrindo as edições 4 a 11. Enquanto isso, os leitores da Editora Abril queimavam a mufa, tentando entender por que um quadrinho tão elogiado não saía pela casa “mais oficial” da DC no Brasil, à época.
Seria quase uma década de “escuridão” até que a Panini (licenciada da DC desde o fim de 2002) decidisse republicar Starman, em 2008, numa edição em capa dura que, infelizmente, seria filha única: junto com a solitária primeira edição da republicação da Liga da Justiça por Grant Morrison, a desistência de Starman virou um desses enigmas que a Panini nunca fez questão de esclarecer. Felizmente, em 2022, lançou uma nova coleção, em seis edição de luxo que, ao longo dos dois anos seguintes, completaram a saga de Starman no Brasil.
Ao fim de Zero Hora (1994), privados da energia que os mantinha artificialmente jovens, a Sociedade da Justiça (com exceção de Alan Scott) torna-se o bando de vovôs que deveriam ser. Sentindo as limitações naturais da idade de uma forma nada gradual, Ted Knight, o Starman, decide afastar-se do cajado cósmico que lhe dá poder, colocando seu filho mais velho, David, em seu lugar como protetor de Opal City. Digamos que, logo de saída, as coisas não dão tão certo assim, e seu filho mais novo, Jack, se vê forçado pelos acontecimentos a assumir o heroico legado, do qual preferia manter distância.
Muito diferente de David – o filho “preferido”, atlético e ansioso por suceder o pai – Jack é um sujeito mais arredio, dado a disfarçar suas carências com um humor, por vezes, questionável. A vida com Ted e, especialmente, com David, é entre algumas patadas e muita gozação passivo-agressiva com o que ele considera vergonha alheia: a afinidade (que muito inveja) entre Ted e David, o espalhafatoso uniforme vermelho e verde com barbatana no elmo, e o trabalho de super-herói em si. Jack prefere gastar seu tempo procurando relíquias raras pro seu antiquário.

Quando o legado de seu pai cai em seu colo, porém, seu tão querido negócio é uma das primeiras baixas, mas ele não tem tempo de lamentar: está em marcha um plano de vingança de um antigo inimigo de Ted Knight, o Névoa. Como o próprio Starman sênior, o vilão está idoso e, aparentemente, padecendo de Alzheimer. Com o pouco de vida e sanidade que lhe restam, está colocando seus filhos nos negócios da família. Como Jack, sua filha Nash é relutante em assumir a luta do pai, mas, também de forma semelhante, os acontecimentos a levam a não apenas aceitar, como abraçar e descobrir-se dentro desse legado.
Já houve outros heróis chamados Starman, fora da família Knight. Um deles é visto neste primeiro volume: o alienígena de pele azul Mikaal Thomas, que estrelou um título na segunda metade dos anos 70. O primeiro que conheci foi na revista DC 2000, da Editora Abril, em 1990: Will Payton, com poderes que nada tinham a ver com o cajado cósmico de Ted Knight. A bem da verdade, nenhum deles era um pilar de carisma super-heroico. Ted Knight ganhava mais por estar com a Sociedade da Justiça do que ela por tê-lo no elenco. Antes que James Robinson se interessasse por ele, era um bucha inimigo da moda. Jack Knight was right. Por isso é que ele prefere jaqueta preta, óculos antiofuscantes, estrelinha de xerife de cereal e um cajado reestilizado. Não chega a ser bem um uniforme, mas, haja estilo.
A linhagem Starman
Colocando muito de si em Jack Knight (o gosto por antiguidades, por exemplo), Robinson criou um personagem que, provavelmente, serviu de terapia de expiação – e histórias muito pessoais sobre essas coisas que unem basicamente todos os seres humanos (família, herança, dever) acabam facilitando a identificação com o leitor. Logo após um primeiro arco que é apenas simpático, acontece, na edição 5, o primeiro grande momento da série: uma conversa entre Jack e David num cemitério. É quando certas memórias falsas e/ou bloqueadas de Jack começam a ruir. Essa me pegou de jeito, sendo eu um sujeito que perdeu um irmão (então com 19 anos) e sonhou diversas vezes com ele “voltando” dos mortos. Não há como dizer com certeza, porém, se Jack está sonhando ou vivendo aquilo – e, honestamente, é uma certeza que não faz a menor falta. Brilhante, nada menos.
Igualmente brilhante é a construção do Sombra, um tipo oscilando entre vilão reformado e profeta do caos: ele passa a ajudar e proteger a família Knight, dizendo que eles devem preparar-se para uma grande provação. Nos diários de sua longa vida (Sombra é um imortal com, no mínimo, uns 200 anos de idade), ele espera que Jack encontre pistas que o preparem. O primeiro desses contos é um encontro com o escritor Oscar Wilde, em 1882. Com seus modos sofisticados e seu poder terrível, a dualidade do Sombra é um tremendo trunfo da série.
Se na capa deste volume é possível reconhecer o Tony Harris de, por exemplo, Ex Machina (2004), na arte de interna de Starman, a arte-final de Wade Von Grawbadger deixa seu traço parecido com o de Brian Stelfreeze, mas onde Harris brilha pra valer é na construção da identidade visual de Opal City, com seu ar de futurismo retrô. Entre os artistas convidados, estão Stuart Immonen, Chris Sprouse e Matt Smith.
Em textos introdutórios e posfácios, James Robinson rodopia entre temas diversos, aproveitando para contar sua jornada como escritor de quadrinhos até aquele momento e desculpar-se pelas muitas vezes em que foi um babaca acidental ou intencional com gente do ramo, como Dave McKean. Ele perde o fio da meada e emenda um assunto atrás do outro, para só lá na frente concluir um pensamento inicial. Parece confuso, mas é leitura bem prazerosa, pelo tom confessional de quem aprendeu a não se levar tão a sério.
São muitos (seis) e caros (preço cheio acima de 200 reais, busque ofertas!) volumes, mas, nas palavras de quem já leu todos e gravou belos e altamente recomendados episódios de podcast sobre a coleção – meu amigo Luwig, de Os Escapistas, e seus convidados – Starman Edição de Luxo é o quadrinho de heróis definitivo, aquele que atinge um patamar que talvez te faça querer largar de vez os homens e mulheres de colante colorido. Se isto será uma bênção ou maldição, cabe a você decidir. A resposta está em meio às estrelas. Do meu lado, mal posso esperar para começar a folhear o segundo livro.