30/07/2025

Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80, de Ricardo Alexandre

Eu entrei na década de 1980 com sete anos de idade. Os males da época, como ditadura, inflação, reserva de mercado e outros, não me preocupavam. Eu só queria saber de ler os gibis da Disney e da Turma da Mônica. Com o tempo, descobri Marvel e DC. Lia os meus, de amigos, de parentes. A bem da verdade, eu lia qualquer coisa que caísse nas mãos. Era meio como um tique nervoso.

Porém, quase um ano antes de começar a comprar gibis com meu próprio dinheiro (hábito que jamais abandonei totalmente, ao longo dos últimos 40 anos), me vi acometido por outras duas paixões: uma de ouvir e uma de ler.

A primeira delas já se insinuava para mim havia algum tempo: o rock and roll. Uma das memórias mais antigas que tenho é a de estar na casa de meus padrinhos, em Feira de Santana, por volta de 1979 e, insistentemente, repetir “(I Can’t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones, em seu toca-discos. Eu não fazia ideias das palavras que Mick Jagger estava proferindo – eu não sabia sequer quem era Mick Jagger! – mas isso não importava: aquela batida, aquela melodia e aquele refrão me pegaram de tal maneira naquele momento que, quase 50 anos depois, aqui estou eu falando deles. Em minha própria casa, eu me lembro que meu pai tinha, entre outros, a coletânea Shaved Fish e o álbum Double Fantasy, de John Lennon. “Mind Games”, “Instant Karma”, “Woman” e “(Just Like) Starting Over” tocavam até dizer chega – principalmente porque, pouco depois de lançar Double Fantasy, Lennon seria morto a tiros, e a comoção foi geral.

Em janeiro de 1985, meu amor pelo rock foi confirmado, carimbado e assinado em três vias timbradas com o acontecimento do primeiro Rock in Rio. Aquelas pessoas estranhas e legais, que eu já acompanhava por programas de clipes e FMs, estavam ali, “pertinho” (elas, no Rio; eu, em Ibotirama, no remoto oeste baiano), e eu sempre queria assistir aos compactos que a Globo exibia nas tardes de sábado. Ao lado de grandes nomes estrangeiros, estavam muitas das bandas que, nos últimos cinco anos, estavam dando forma a um rock brasileiro totalmente diferente do modelo que existiu por aqui em décadas anteriores. Entrando na adolescência, eu me via muito ligado naquilo tudo. O rock era o momento.

Em agosto do mesmo ano, surgia minha segunda grande paixão: a revista Bizz, dedicada à música em geral, mas com foco majoritário no rock. Era anunciada na Globo em comerciais engraçadinhos, protagonizados por Marcelo Tas. As três primeiras traziam Bruce Springsteen, Madonna e Nina Hagen nas capas. A primeira que comprei foi a quarta edição, com Gilberto Gil. Longe demais de qualquer grande centro, onde eu pudesse sintonizar uma FM rockeira qualquer, era impossível reconhecer 95% dos nomes que eu lia nela. Mesmo assim, a Bizz foi, pouco a pouco, tornando-se uma espécie de oráculo musical para mim, moldando meus gostos e minhas opiniões – e isso, em alguns casos, revelava-se um problema que eu demorava a reconhecer. Ao longo dos anos, tive que derrubar muitos preconceitos musicais que eu ergui com ajuda da revista.

Apesar disso, a Bizz mais me ajudou do que prejudicou. Foi por meio dela que conheci vários de meus artistas favoritos até hoje em dia. Seus articulistas eram gente que acabava virando “amigos” distantes para o adolescente solitário e em conflito que eu era. Escrever para ela era um sonho que movia certa ambição minha de ser jornalista (carreira que nunca persegui). Minhas edições eram cuidadosamente dispostas em minha estante e relê-las era um perpétuo prazer. Ela acabou duas vezes: a primeira, em 2001. Depois, voltou para mais uma temporada em 2005, acabando de vez em 2007. Não houve e não haverá revista como a Bizz – até porque, hoje em dia, quem ainda compra revista?

O editor que reabriu e fechou as portas foi Ricardo Alexandre, cuja obra autoral inclui um dos livros que me ajudaram a eleger biografias como meu gênero literário favorito: o ótimo Nem Vem que Não Tem: a Vida e o Veneno de Wilson Simonal. É ele o autor de Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80, um belíssimo relato da dor e da delícia daqueles tempos em que citar Caetano Veloso, como fiz agora, era um tremendo vacilo. Sua primeira publicação data de 2002, mas a edição que li foi a comemorativa de 10 anos, com novas anotações.

O autor Ricardo Alexandre

Em mais de 400 páginas, Dias de Luta detalha o clima que reinava no país, naquela virada de década dos 70 pros 80, quando o Brasil aos poucos se abria para o mundo, com uma juventude sedenta por uma renovação cultural que escapasse, com igual desenvoltura, da sanha moralista do governo e do pedantismo que havia tomado conta da MPB “oficial”: como na profética canção de Belchior, os ídolos ainda eram os mesmos, e os mais jovens não se viam refletidos neles.

Acertadamente, o autor estabelece o disco homônimo de Rita Lee de 1979 (aquele com “Mania de Você” e “Doce Vampiro”) como a pedra fundamental da linguagem musical da década à frente e, se você estava vivo então, certamente se lembra do furacão que ele representou. Já a partir de 1980, as coisas começariam a tomar formas loucas e seguir caminhos inesperados, com uma naturalidade contagiante. Em pouco tempo, quando ficou impossível negar a juventude como uma força de consumo, os olhos da indústria se voltariam para o novo rock brasileiro e, para o bem e para o mal, as coisas nunca mais seriam as mesmas.

De Gang 90 & As Absurdettes em 1980 aos Inimigos do Rei em 1989, a linha evolutiva do rock nacional é destrinchada com precisão por Ricardo Alexandre, que destaca, em relatos mais extensos, as bandas e artistas que formaram a linha de frente do rock nacional, como Blitz, Barão Vermelho, Os Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, RPM, Titãs, Ira! e Legião Urbana. Ainda que as frentes carioca (do “rock de bermudas”) e paulista (dos punks e alternativos) tenham predominância, existe espaço para comentar cenas menores, como as de Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte.

As histórias de bastidores e entrevistas ajudam a elucidar episódios que, para mim, ainda eram nebulosos – menos por falta de fontes e mais por mero esquecimento de buscar a verdade – como as razões para o fim da Blitz e para o sumiço da obra de João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, e por que tantos artistas de sucesso jamais eram vistos no programa do Chacrinha, entre outros.

As histórias de formação das bandas e os bastidores das gravadoras e shows renderiam (algumas até já renderam) livros à parte, tantos que são os lances de sorte e azar, esperteza e burrice, amor e ódio, ruína e superação. Dias de Luta funciona como um muito eficiente resumo da trajetória de uma geração que, na raça, peitou e subverteu as regras do jogo, criando todo um contexto cultural que se estendeu para muito além da música. De tudo, porém, foi principalmente ela que ficou, e o grande barato da leitura é revirar nossa própria memória e perceber que foi sensacional estar vivo para testemunhar, de perto ou de longe, em tempo mais ou menos real, os impactantes eventos reunidos nestas páginas. Belíssimo livro.

21/07/2025

Música & Mágica #6


CAPITAL INICIAL
Acústico MTV
2000

Música & Mágica é uma seção deste blog dedicada a discos clássicos. Eu tento sempre mantê-la restrita a álbuns originais, mas algumas coletâneas e discos ao vivo acabam tornando-se tão representativos dentro da obra de certos artistas, que fica difícil negar seu status. Foi por esta “brecha na lei” que o Acústico MTV do Capital Inicial ganhou sua vez: ele funcionava muito bem como retrospectiva dos primeiros 15 anos de carreira do Capital e sedimentava a volta à boa forma, alcançada com o álbum Atrás dos Olhos, de 1998. Trouxe algumas das versões definitivas para os clássicos da banda e ótimas novas canções e participações especiais, fazendo sucesso avassalador.

Um pouco de contexto: exceto pelo primeiro álbum, quando “Música Urbana” era escutada em toda parte, o Capital Inicial (Dinho Ouro Preto, Lôro Jones, e os irmãos Felipe e Flávio Lemos) não conseguiu mais furar a bolha da “série B” do rock brasileiro. Nenhum hit posterior, como “Independência”, “Fogo” ou “Mickey Mouse em Moscou”, repetia aquele êxito ou, muito menos, colocava o Capital em pé de igualdade com outras bandas nacionais em grande momento criativo naquela virada dos anos 80 para os 90, como Titãs e Paralamas do Sucesso.

Muito disso vinha do fato de que personalidade não era o forte do som do Capital Inicial. Até que Dinho Ouro Preto começasse a cantar, uma música deles podia estar tocando e dificilmente alguém diria “isso parece Capital Inicial”. A cada disco, a banda era espinafrada pela crítica musical – e eu, que nunca fui muito fã, cedia ao alerta de prevenção e mantinha distância segura. Em 1992, o tecladista Bozo Barretti (agregado em 1987) deixou a banda. Pouco depois, foi a vez de Dinho abandonar o barco e tentar carreira solo. O Capital chegou a gravar um álbum, Rua 47, com um novo vocalista, Murilo Lima. O impacto foi zero.

A maré virou quando a formação original se reuniu e gravou Atrás dos Olhos – de fato, um belo disco, maduro e bem-produzido. “O Mundo” e “Eu Vou Estar” foram hits, e o Capital foi convidado a gravar seu Acústico MTV, um formato que, celebrando 10 anos na MTV Brasil, já dava sinais de desgaste, mas ainda funcionava – e, caramba, como funcionou para o Capital! Os números definitivos nunca foram divulgados, mas o CD recebeu disco de platina triplo. Por conta da pirataria, as vacas eram tão magras naquela virada de século que bastava vender 100.000 cópias para receber um disco de platina, mas não seria surpresa se os números estivessem muito acima dos 300.000, porque onde quer que se fosse, ali estava tocando uma música do álbum. Uma altamente improvável “capitalmania” assolou o país.

O sucesso veio por indiscutível mérito: o formato acústico deu novo frescor ao repertório da banda e as músicas inéditas escolhidas tinham potência e gancho pop. Como bons punks, o Capital abriu mão da pompa de violinos ou metais. Ao de Lôro Jones, foram acrescidos os violões de Kiko Zambianchi e Marcelo Sussekind (que também toca slide guitar e produz o disco). Aislan Gomes ficou com o órgão Hammond e Denny Conceição  com a percussão. A única convidada especial do disco, Zélia Duncan, toca bandolim na bonita "Eu Vou Estar". Os arranjos enxutos e precisos foram coroados com a ótima performance vocal de Dinho (que não perdeu, mas aprendeu a dosar melhor os cacoetes que irritavam seus detratores).

O disco abre com uma bela versão desacelerada de “O Passageiro”, cover de “The Passenger”, de Iggy Pop. Em seguida, “O Mundo” (um clássico instantâneo composto por Pit Passarell) explode com pegada forte e arrepiantes riffs de Hammond. A primeira inédita, “Tudo que Vai”, é uma pepita pop de alto quilate, parceria de Alvin L. com Dado Villa-Lobos e Toni Platão, com caprichadíssima entrega de Dinho.

A leveza acústica trouxe à tona belezas antes escondidas em arranjos confusos ou equivocados, caso de “Independência” e “Fogo”. A segunda inédita, “Natasha” é uma bobagem sobre uma garota “rebelde” que parece ter saído de algum túnel do tempo, vinda dos anos 80, mas é tocada com tanto tesão que a gente até esquece o quanto aquele “feminismo” é anacrônico.

O maior sucesso do disco, porém, não foi uma música do próprio Capital: “Primeiros Erros (Chove)”, clássico de Kiko Zambianchi, viu-se apropriada pelos brasilienses diante de seus olhos e com sua luxuosa ajuda, sendo ouvida em toda parte e a todo instante.

A trinca que encerra o disco são canções da Aborto Elétrico, banda punk da qual se originaram o Capital e a Legião Urbana. As antes polêmicas e censuradas “Fátima” e “Veraneio Vascaína” puderam ser melhor apreciadas em tempos mais tolerantes, apesar de as provocações soarem bem mais ingênuas para o homem à beira dos 30 que eu era naquele ano 2000 – imagine hoje. O disco chega ao fim, claro, com “Música Urbana”, seu primeiro sucesso, fechando um ciclo de 15 anos com rápida ascensão, prolongada queda e inesperada ressurgência.

O apogeu viria numa consagradora apresentação no Rock in Rio de 2001, diante de 250 mil pessoas. Hoje em dia, o Capital segue colhendo os louros (e os lucros) do Acústico, com uma turnê que celebra os 25 anos do disco. Para mim, depois dele, rapidamente voltaram a ser aquela banda que lança um monte de discos que não colam nos meus ouvidos – mas, tudo bem. Por terem protagonizado uma das voltas por cima mais sensacionais que já testemunhei, o Capital tem meu respeito, ainda que respeito seja a última coisa que um punk de verdade espere ou ofereça.

* * * * *

Capital Inicial
Acústico MTV
Produzido por Marcelo Sussekind
Lançado em 26 de maio de 2000

1. O Passageiro
2. O Mundo
3. Todas as Noites
4. Tudo que Vai
5. Independência
6. Leve Desespero
7. Eu Vou Estar
8. Primeiros Erros (Chove)
9. Cai a Noite
10. Natasha
11. Fogo
12. Fátima
13. Veraneio Vascaína
14. Música Urbana

20/07/2025

Batman: Acossado


Qualquer um que tenha lido os quadrinhos de linha do Batman, nos últimos 15 ou 20 anos, certamente se deparou com uma manobra constante: a de inserir novos fatos “chocantes” no passado do personagem. As vítimas preferenciais da apelação são os pobres Thomas e Martha Wayne, difamados e maltratados até não poder mais – porque, afinal, um cara que se mete em uma fantasia de morcego para socar bandidos à noite só pode ser muito dodói das ideias, né, e seu trauma seguramente vem mais do fato de que seus pais eram uns merdas do que exatamente de sua morte, segundo um psicologismo raso e bobo, que já se prolongou por muito mais tempo do que deveria.

A DC até se esmera na escolha dos roteiristas para o personagem, mas mesmo gente testada e aprovada parece empenhada em dar sua questionável cota de contribuição, adicionando um fato “bobástico" sobre os Wayne. ou sobre algo muito burro que o Batman fez no passado e deu muito ruim no presente. Essas tolices acabam, claro e felizmente, esquecidas em dois tempos, porque, na verdade, a essência original do Batman é forte o suficiente para garantir um chão seguro para qualquer bom argumento: filho de pais amorosos fica órfão de maneira violenta e passa a lutar para garantir que ninguém mais sofra o que ele sofreu. É muito simples e é muito sólido. 

Houve um tempo em que inserções no passado do Batman eram feitas de um jeito bem mais elegante, que não mudava o que era intrínseco ao personagem. O título Legends of the Dark Knight – que a Editora Abril trouxe para nós como Um Conto de Batman, a partir de 1991, em forma de minisséries especiais – trazia aventuras dos primeiros anos de atuação do herói, enriquecendo o conhecimento sobre suas motivações e seu treinamento, sem transformá-lo num hipócrita e sem jogar a reputação de seus pais na lama.

Além de serem belas histórias (quase sempre, pelo menos), as capas tinham uma unidade visual que lhe dava muita personalidade. Com o passar dos anos e os sucessivos relançamentos em encadernados, esse charme acabou perdido. Foi numa dessas versões reestilizadas que Acossado voltou pela Panini – e eu, que, volta e meia, me via obrigado a me desfazer de partes de minha coleção a cada mudança (já viram quanto pesa uma caixa de gibis?), aproveitei a chance de ter um de meus Contos de Batman favoritos de volta na estante.

Na história, Batman está em seus primórdios de luta contra o crime: a polícia está em seu encalço e somente o ainda capitão James Gordon apoia sua atuação. Por mais que ajude em capturas e salvamentos, ele ainda é visto como mais um problema pra polícia resolver. A opinião pública e midiática está igualmente dividida, e vários especialistas se dedicam a tentar desvendar sua identidade e suas motivações – entre eles, Hugo Strange, famoso e polêmico psiquiatra. Com a ajuda de uma força-tarefa da polícia de Gotham, liderada pelo disciplinado e obcecado sargento Maxwell Cort, Strange vai chegando cada vez mais perto da verdade sobre o Batman.

Aqui, Doug Moench está em grande fase. Passaram-se mais de 30 anos desde que foi escrita, mas Acossado ainda é lida com grande prazer e, mesmo que os quadrinhos não sejam o meio ideal para grandes aprofundamentos, os insights psicológicos de Hugo Strange nunca descambam para o óbvio ou absurdo. Os momentos em que “personifica” o Batman (com direito a uniforme), emulando a provável linha de raciocínio do herói, chegam a exalar certo erotismo, tamanho o frenesi de Strange a cada conclusão. Não é diferente com Batman/Bruce. Os diálogos são precisos e temos aqui “o Batman que vale”, em qualquer época: um investigador implacável no topo do vigor físico (mas sofrendo as agruras de seu um vigilante pedestre, já que o Batmóvel ainda não está pronto).

Paul Gulacy – um desenhista cujo estilo não me agradou de primeira, quando, na Batman de 1987 da Abril, uma história sua sucedeu o impoluto Ano Um, de David Mazzucchelli – está desenhando o fino, também (impressão apoiada pela ótima arte-final de Terry Austin). Algumas expressões faciais podem lembrar os rostos “de psicopatas” de Gary Frank, mas, vindo do título do Mestre do Kung-Fu, na Marvel, Gulacy impõe ao Batman algumas poses e movimentos bem elegantes. Há ainda uma vibe geral meio Jim Steranko, o que é sempre bom sinal.

De resto, reforço o quanto é bom ler uma história dos tais “bons tempos” que ainda funciona perfeitamente, sem que pareça, por um momento que seja, datada ao ponto de essas inevitáveis diferenças temporais tirarem a atenção do leitor. Acossado é leitura altamente recompensadora.

A segunda metade do encadernado é composta de Terror, história em cinco partes, continuação “direta” de Acossado, lançada onze anos depois, com os mesmos Moench e Gulacy. Nela, Hugo Strange volta ainda mais obcecado e se alia ao Espantalho para atormentar o Batman. Porém, tudo aqui fica muito abaixo da régua estabelecida em 1990. É tudo muito raso e cartunesco, do tom geral da trama aos desenhos bem menos inspirados. Só mesmo o fato de que as histórias falam uma com a outra justificam sua inclusão num livro que poderia ter metade do volume (e do preço), além de ser um perfeito exemplo do que acontece quando artistas não sabem a hora de deixar o próprio legado em paz. Nada que prejudique a reputação da história original, mas, definitivamente, uma lição a ser aprendida.

13/07/2025

Superman


Eu cheguei a escrever dois parágrafos de introdução, contando como a DC chegou atrasada e comeu poeira na corrida das adaptações de quadrinhos das duas últimas décadas, falando de tudo que deu errado e de como a culpa era toda do Zack Snyder, mas, pensei melhor e vi que chutar cachorro morto não resolve coisa alguma. O certo a fazer é deixar o passado morrer.

Superman chega para enterrar de vez a estapafúrdia noção de que o Universo DC seja “sombrio e realista”, um pueril combo de adjetivos que, se o bom Rao permitir, jamais voltaremos a usar, principalmente para falar de um filme do mais solar dos super-heróis. É um filme que abraça, sem vergonha alguma, tudo que faz o Superman único entre seus pares: o poder, o otimismo, a fé no potencial da humanidade, e a absoluta necessidade de salvar todas as vidas que puder. Além disso, o faz com cores vibrantes, emoção e bom humor.

A exemplo do que fez Grant Morrison em Grandes Astros: Superman, contando a origem do herói em apenas quatro quadros com legendas curtinhas, James Gunn também abdica da necessidade de contá-la mais uma vez. No mundo do filme, Superman e outros super-heróis já estão estabelecidos e absorvidos pela opinião pública. São um fato da vida. Na verdade, o filme começa no meio de uma briga, a primeira perdida pelo herói. A partir daí, somos sugados para dentro do plano de Lex Luthor para tirar a credibilidade e a vida do herói – e, olha, está funcionando. A primeira cena é aquela que ficou famosa nos trailers, com o herói caindo no Ártico, todo arrebentado, e sendo resgatado por Krypto.

Superman também está sendo questionado por sua intervenção em um conflito internacional, entre as nações fictícias de Borávia e Jarhanpur – e semelhanças entre ficção e realidade devem ser vistas pelo que são: provocação deliberada a tiranos do mundo real, e eles que vistam a carapuça, se quiserem. Ao herói, interessava impedir a perda de vidas, dada a desproporção do aparato militar da Borávia ao invadir a paupérrima Jarhanpur. Ao fazê-lo, porém, Superman (um alien americano, enfim) erra a mão e desencadeia tensão diplomática e um pesado revide, com um suposto defensor boraviano, o Martelo de Borávia, se juntando aos já muito poderosos agentes de Luthor, Ultraman e Engenheira.

Os acertos desta caracterização do herói vão além de sua inabalável bondade. Superman tranquiliza os que salva, sempre com uma piada pronta para minimizar o susto da vítima, e até para que ele próprio não se deixe abater pela gravidade das ameaças que enfrenta. A certa altura, ele não consegue impedir a morte de uma pessoa querida, e a gente se choca e sofre com ele. Aquela lágrima escorre ardida e, se tudo der certo, ela há de fazer todo mundo esquecer que, um dia, já fizeram do Superman um ser que pairava, inacessível, acima da humanidade, e que quebrou o pescoço do primeiro vilão que enfrentou.

Mas, perdão, divaguei.

Outro que está fielmente caracterizado é Lex Luthor, que, há três anos, usa sua fortuna para comprar alianças e tecnologia que o ajudem a livrar-se do kryptoniano, a quem enxerga como uma ameaça ao potencial da humanidade e um eterno lembrete de nossa inferioridade. Inteligente, arrogante e mesquinho, Luthor é um vilão “raiz”, arquetípico, ao ponto de dar um daqueles discursos em que detalha todo seu plano maquiavélico.

Obviamente, o filme poderia ter virado um cemitério de boas intenções, caso Gunn não tivesse se cercado de gente talentosa. O maior dos acertos é o próprio protagonista: David Corenswet acerta cada nota, seja como Superman ou Clark Kent, exalando charme, bravura e retidão moral – e a gente só não decreta que ele está melhor que Christopher Reeve pela heresia que dizer isso representa, mas, olha, ele chega bem perto. O mesmo pode ser dito sobre Nicholas Hoult como Lex Luthor – uma escolha que me deixou desconfiado no começo, mas que se justifica: Hoult está ótimo como gênio do mal, mentiroso cínico e namorado tóxico.

O elenco coadjuvante também não deixa a peteca cair: Rachel Brosnahan é uma Lois Lane sagaz e determinada, mostrando muita química com Corenswet; Skyler Gisondo faz rir como um Jimmy Olsen galã involuntário; o resto do staff do Planeta Diário carece de oportunidades para brilhar, principalmente o ótimo Wendell Pierce, que faz Perry White.

A “Gangue da Justiça”, protótipo da inevitável Liga que virá, cumpre bem seu papel, já ostentando fama própria e ajudando a tirar o Super de enrascadas. Isabela Merced faz uma boa Moça-Gavião, mas é meio samba de uma nota só. Nathan Fillion tem ótimos momentos como Guy Gardner, o metido Lanterna Verde com cabelinho de cuia; mas quem brilha muito é Edi Gathegi como Sr. Incrível, um herói que 90% do público “civil” deve desconhecer, mas que conquista espaço nobre, com uma das melhores sequências de ação do filme e uma petulância intelectual meio militar e meio autista – e é um barato ver a Sala de Justiça, linda por fora e em obras por dentro.

Outro imenso destaque é Krypto. O supercão é ainda apenas um filhote grande e, como tal, é estabanado e impulsivo, sem noção da própria força e tamanho, mordendo tudo que vê como brinquedo e buscando colo como se fosse um pinscher zero. Um belo argumento em favor da utilização de bichos digitais.

Há outros bons personagens, como Metamorfo (Anthony Carrigan), o robô número 4 (Alan Tudyk) e os adoráveis pais adotivos de Clark Kent (Pruitt Taylor Vince e Neva Howell), velhinhos caipiras do Kansas, no melhor dos sentidos. Frank Grillo finalmente aparece como Rick Flag Sr. em carne e osso, depois de dar voz ao personagem na animação Comando das Criaturas; Sean Gunn faz rapidíssima aparição, como Maxwell Lord, o financiador da Gangue da Justiça; e William Reeve, filho de Christopher, aparece como um repórter de TV.

Não é que Superman acerte em absolutamente tudo: existem algumas soluções apressadas e umas gags previsíveis, mas, no geral, Gunn fez um ótimo trabalho em reposicionar o Superman como o modelo de herói a seguir. Reconhecemos aqui e ali influências e homenagens, mas, do jeito que está, é uma ótima história original, já preparando o terreno para um novo filme deste universo. Com ação, humor, surpresas e substância, é uma reabertura que deixa ótima impressão para os novos rumos da DC no cinema. Que a mão de James Gunn seja tão generosa e firme na condução dos próximos trabalhos (seja como diretor, produtor ou supervisor) quanto a do maior dos heróis.