30/09/2025

A Saga da Mulher-Maravilha #1 (Segunda Temporada)

Enquanto A Saga do Batman e A Saga dos X-Men já ultrapassaram todas as expectativas de sucesso (com algumas edições simplesmente sumindo do mercado ou sendo vendidas a peso de ouro), com a primeira confirmada para relançamento de sua primeira temporada (em sistema de assinatura e box de coleção), as Sagas de heróis menos populares prosperam mais devagar, com suas edições bimestrais. É o caso da Mulher-Maravilha, cuja primeira temporada trouxe, em sete edições, a fase de John Byrne - de que já não gostei em seu lançamento original, pela Editora Abril, e, portanto, evitei.

Na oitava edição, começa a segunda temporada de A Saga da Mulher-Maravilha, com a primeira fase escrita por Greg Rucka - o que significa que a Panini saltou, sem qualquer cerimônia, a fase com Phil Jimenez na escrita e na arte (na qual ele colaborou brevemente com sua principal influência, o saudoso mestre George Pérez). É mais uma decisão questionável da editora, embora não tão grave quanto foi, para mim, o hediondo duplo twist carpado que deram sobre a extensa e gostosa fase de Joe Kelly, quando esta seria a coisa mais lógica para inaugurar a segunda temporada d'A Saga da Liga da Justiça; ou a amada fase de Tom Grummett, na agora finada A Saga dos Novos Titãs, ignorada em favor da fase de Geoff Johns, medíocre e já publicada dentro da própria Panini.

Nas mãos de Greg Rucka, Diana atua como embaixadora de Themiscyra nos Estados Unidos (com direito a escritório, assessores e toda a burocracia que vem junto). Ao mesmo tempo, Diana publica um livro com uma versão resumida de sua visão de mundo, gerando muita controvérsia. Era 2003, quando a internet ainda era "mato", as redes sociais ainda eram relativamente "inocentes", mas já se discutiam o ódio gratuito e a defesa apaixonada de opiniões preconceituosas e sem embasamento. Se os americanos tivessem a mínima ideia de como as coisas degringolariam em 20 anos...

Bom, talvez eles tivessem, e o plano fosse esse, mesmo.

Enfim, Diana está ocupada como jamais pensou que estaria, equilibrando-se entre os papéis de heroína, diplomata, celebridade literária e mulher com vontades bem humanas, como comer doce e ter um boy pra chamar de seu. Mais ou menos alheias ao seu controle, pequenas e grandes conspirações se revelam, vindas de muito longe (com as dinâmicas de poder entre um Zeus cada vez menos influente e uma Hera cada vez mais ciumenta representando perigo para todas as amazonas) e de muito perto (com a cientista e empresária Veronica Cale desvirtuando as palavras e ações de Diana, provocando reações cada vez mais negativas da população).

Não é uma unanimidade, mas me agrada a caracterização de Diana como uma pessoa extremamente paciente diante da raiva e da burrice de seus detratores, ao mesmo tempo em que precisa ser implacável com antigos e novos inimigos (entre estes, a versão deturpada e letal de uma amiga querida). O grande diferencial da escrita de Greg Rucka está nas interações sociais de Diana com as pessoas em seu entorno, sejam os funcionários da embaixada, os colegas da Liga, repórteres ou cientistas. É um gibi no qual não falta ação (este não é, afinal, um conceito limitado a tiro, porrada e bomba), mas Rucka não tem pressa em posicionar as peças no tabuleiro. Mistério e intriga são especialidades suas desde sempre.

Chama atenção, também, a reestilização dos deuses olimpianos: exceto por Zeus e Hera (mais velhos e apegados aos costumes do passado), todo o panteão se veste e se comporta como humanos modernos, ostentando cabelos estilosos, óculos escuros e roupas da moda. Atena é vista com um iPad. Hermes fuma maconha o dia todo. Pouco lembrados pela atual sociedade ocidental, o que resta a fazer para deuses sem seguidores? O mais antigo dos bons conselhos: aproveitar a vida - o que fica ainda melhor quando dinheiro e tempo não são problemas.

A arte de Drew Johnson também traz novidades para o visual de Diana: com uma pele mais morena, cabelos muito lisos e nariz alongado, a heroína agora lembra menos uma caucasiana e mais uma persa (exceto, talvez, pelos olhos muito azuis). Tal mudança, porém, não é refletida nas ótimas capas da fase, com belas ilustrações de Adam Hughes e J. G. Jones (há duas de Phil Noto neste volume, mas parecem estranhas e indignas junto às demais), em que Diana é a mesma top model entalhada em mármore que conhecemos desde sempre.

Foram 30 edições escritas por Rucka, então, talvez esta segunda temporada seja ainda mais curta que a primeira. Caso prossiga, trará a fase de Allen Heinberg, que foi comprometida por atrasos e enxertada com uma série catastrófica, "O Ataque das Amazonas". Outro salto deixaria tudo muito perto da cronologia atual (outro erro cometido com a A Saga da Liga da Justiça), então, talvez seja o momento de a) mandar a cronologia às cucuias e publicar as 25 edições de Phil Jimenez, ou b) sacrificar mais uma Saga mal-planejada, em nome de uma "segurança" editorial discutível.

24/09/2025

Alien: Earth

Não muito tempo atrás, Alien era uma das franquias mais maltratadas por Hollywood. Agora, por mais improvável que pudesse parecer há coisa de uns 10 anos (quando Alien: Covenant, de 2017, fazia crer que ninguém - nem mesmo seu criador, Ridley Scott – seria capaz de torná-la relevante outra vez), estamos vivos em 2025 e testemunhando o retorno do monstrengo à boa forma. Ano passado, tivemos o enxuto e eficiente Alien: Romulus, de Fede Alvarez. Este ano, surpresa ainda maior nos foi reservada com a série Alien: Earth

Se já estava difícil engolir duas horas de xenomorfo a cada três ou cinco anos, imagina como seria aguentar cerca de oito horas disso em umas poucas semanas. Então, é preciso ser compreensivo com quem, como eu, achou que tirar mais leite dessa pedra parecia uma ideia prematura e ruim. Sem entusiasmo para buscar detalhes sobre a produção, não vi o nome de Noah Hawley entre os envolvidos. Hawley é roteirista de dois grandes e respeitados hits: as séries Fargo e Legion

Os primeiros dois episódios são formulaicos, até previsíveis: uma nave desgovernada cai sobre a sede da Prodigy, uma das cinco corporações que substituíram os governos e “pacificaram” a Terra. Em seu interior, uma tripulação literalmente despedaçada e uns poucos espécimes alienígenas - entre os quais, um xenomorfo adulto e alguns ovos de facehuggers (aquela “aranha” que gruda na cara e deposita o feto do bicho no tórax da vítima). Jump scares, paramilitares... Tudo faz parecer que estamos diante de um filme mediano, esticado muito além de qualquer bom-senso – ainda mais considerando a presença de não uma, não duas, mas seis crianças, com suas mentes em corpos adultos artificiais. 

Felizmente, também existe do que gostar logo de cara: o ciborgue Morrow (Baboo Ceesay) e o sintético Kirsch (Timothy Olyphant, em grande momento) são dois tipos memoráveis, rivais tecnológicos em lados opostos no esforço de contenção da fauna alienígena: enquanto o implacável Morrow foi o único sobrevivente da queda da nave Maginot (que pertence a uma corporação concorrente, a Weyland-Yutani), o impassível Kirsch tenta assegurar a posse dos estranhos bichos para o super-rico, superdotado e supermimado dono da Prodigy, o excêntrico e amoral Boy Kavalier (Samuel Blenkin, igualmente hipnótico e repulsivo no papel). 

Com a apreensão e remoção dos espécimes para a ilha de pesquisas da Prodigy, a série finalmente engata uma segunda marcha e não para de ficar mais interessante a cada capítulo. Além do constante perigo representado pelos animais (com apetite voraz e diferentes graus de inteligência), também as crianças-prodígios acabam sendo o centro de diversas discussões éticas sobre a transferência de corpos que sofreram. Elas ainda são quem eram antes? Ainda são pessoas ou são meros produtos? Ao tirar suas mentes de seus corpos doentes e garantir-lhes virtual imortalidade, a Prodigy foi benevolente ou cruel? 

Wendy: crescer é uma merda, mas tem vantagens.

As questões filosóficas, porém, estão em equilíbrio com a ação, e a série não nos poupa do gore que tornou a franquia famosa: prepare-se para muito sangue e algumas cenas dignas de pesadelos (você nunca mais vai olhar para uma ovelha como antes). Novos monstros e suas criativas formas de matar tiram Alien: Earth do marasmo que seria depender exclusivamente do xenomorfo desenhado por H. R. Giger (agora, visto em plena luz do dia, sob o sol tropical da ilha da Prodigy). Algumas dinâmicas entre os espécimes e diversos personagens são inesperadas (não dava para todo mundo ser só comida, afinal) e logo a gente percebe que Wendy (Sydney Chandler), a primeira das crianças artificiais, tem muito mais a oferecer do que vigor físico inesgotável. 

O abundante uso de efeitos práticos ajuda a afastar o ranço a que estaríamos suscetíveis com excesso de CGI (o uso do recurso é discreto). O suspense e a tensão crescem durante a primeira metade e explodem no quinto episódio, quando descobrimos o que aconteceu na Maginot antes de sua queda. O prazer de assistir a um bom produto da franquia Alien é completado por uma trilha sonora que, ao fim de cada episódio, traz um rockão que serve de comentário ao que foi visto desde a abertura: prepare-se para bater cabeça ao som de Black Sabbath, Metallica, Tool, Queens of the Stone Age e Pearl Jam, entre outros. 

Alien: Earth é mais uma injeção de sangue novo (com ou sem trocadilho, você decide) em uma franquia que passou décadas respirando por aparelhos, mas que parece ter encontrado um bom rumo e, mais importante ainda, gente capaz de guiá-la até lá. Tudo no último episódio grita que haverá uma segunda temporada – e ainda bem que não estamos na Terra, porque “no espaço, ninguém pode ouvir você gritar”. Com o rigor e diversão vistos aqui, o quase cinquentão xenomorfo seguirá assombrando mais algumas gerações. 

12/09/2025

Música & Mágica #7

 

DEPECHE MODE
Violator
1990
Existe uma regra não escrita no rock/pop, segundo a qual o artista deve lançar sua obra-prima até os 30 anos de idade, sob risco de perder o momentum de seu pico criativo. Há uma variedade de discos corroborando a tese: Achtung Baby do U2, Disintegration do The Cure, o “Black Album” do Metallica, e tantos outros.
Para o Depeche Mode, celebrando uma década de atividade em 1990, os últimos anos haviam sido de esforço para desvencilhar-se da frivolidade do pop dançante adolescente dos primeiros anos. Não que a banda devesse desculpar-se por “Just Can’t Get Enough” e semelhantes, mas bons artistas são naturalmente inquietos, buscando fazer sua música transcender velhas limitações, normalmente, abandonando sonoridade, discurso ou atitude que não mais agregam valor.
Nascido com o selo do tecnopop new romantic, o DM foi, gradualmente, dando uma guinada sombria em seus temas e tons. Ainda era capaz de fazer dançar, como se pôde comprovar em “Strangelove”, maior sucesso do último de seus discos dos anos 80, Music for the Masses (1987), mas mesmo este vinha envolto em sugestões pouco sutis de sadomasoquismo. Então, com a chegada da nova década e a proximidade dos 30 anos para seus integrantes, ou as inquietações do DM os consumiriam, ou gerariam seu magnum opus.
Felizmente, desde que lançaram o single “Personal Jesus”, ainda em agosto de 1989, houve pouca dúvida de que o Depeche Mode voltava com um trabalho muito vigoroso. À poderosa batida marcial e inspirado riff de guitarra, juntou-se a mística da letra, cuja improvável inspiração é a relação de Elvis Presley e sua esposa, Priscilla: trata de como você, em um relacionamento, pode tornar-se, até certo ponto, salvador e guia espiritual de seu parceiro. “Alguém para ouvir suas orações, alguém que se importe”, diz a letra.
Anos depois, Johnny Cash a regravaria, acentuando o caráter bluesy do riff de guitarra.
Pouco mais de um mês antes da chegada do novo álbum, o segundo single, “Enjoy the Silence”, estabeleceu o DM como uma das grandes coisas do ano, que mal havia começado (era 5 de fevereiro). Tratava-se de uma balada arrepiante, com um loop introdutório que deve ter deixado o Kraftwerk orgulhoso, uma síntese equilibrada de clima romântico dark e leve potencial dançante. A letra, no bonito timbre barítono de Dave Gahan, fala daqueles momentos em que a pessoa amada só precisa estar junto pra fazer bem, já que juras de amor costumam ter prazo de validade: “Tudo que eu sempre quis (...) Está aqui em meus braços / Palavras são bastante desnecessárias / Elas só podem fazer mal”. A aula magna de programação e a classe pop de Andrew Fletcher e Alan Wilder jogaram às alturas a expectativa sobre o novo álbum.

Depeche Mode em 1990: Andrew Fletcher, Dave Gahan, Martin Gore e Alan Wilder
 
Violator compensou a espera, embora se possa argumentar que as sete outras canções do disco talvez não brilhem tão intensamente quanto os singles que o precederam. Porém, não se pode ficar indiferente ao romantismo e sensualidade desavergonhados de “World in My Eyes”, faixa de abertura e quarto single extraído, prova cabal de que o Depeche Mode ainda sabia o que funcionava nas pistas de dança. Aos poucos, porém, o synthpop da banda abria caminho para arranjos mais rock and roll, como em “Sweetest Perfection” e na já citada “Personal Jesus”, uma tendência que a banda ainda seguiria em futuros álbuns. Mesmo elas, porém, ainda que calcadas em frases de guitarra (e Martin Gore mostra muita segurança nas seis cordas), são entremeadas com precisos ruídos eletrônicos (o que é, também, efeito da ótima co-produção de Flood). As filosóficas e climáticas “Halo” e “Policy of Truth” estão entre as melhores coisas que a banda já produziu, mas somente a última tornou-se single (o terceiro). Martin Gore refere-se a “Halo” como uma “defesa da imoralidade, mas com certo senso de culpa”, ao som de uma batida forte e cordas sintetizadas grandiosas. Por sua vez, “Policy of Truth” fala das consequências de não guardar certos segredos, como um lapso de infidelidade. Abrir o jogo nem sempre vai ser visto com bons olhos: “Nunca mais outra vez, foi o que você jurou da vez anterior”. “Blue Dress” tem um romantismo quase pueril, advindo do poder sugestivo de um objeto tão simples – como um vestido azul: “Vista-o, eu nem preciso tocar (...) Diga que acredita no quanto é fácil me agradar / Porque, quando aprender, você vai descobrir o que faz o mundo girar”. Fechando os trabalhos, “Clean” põe sua clara inspiração em “One of These Days”, do Pink Floyd, a serviço de uma letra de Martin Gore que, embora deva estar tratando de seus próprios processos de terapia e autocontrole, cai como uma luva na voz de Dave Gahan, tendo sido ele o integrante que mais problemas teve com o abuso de drogas, chegando a sofrer overdose e quase morrer, em 1996. Já se vão 35 anos desde Violator e, ainda que o Depeche Mode não tenha mais estado tão proeminente no mundo pop, como esteve em 1990, e embora tenham perdido dois colegas (Alan Wilder saiu em 1995 e Andrew Fletcher morreu em 2022), Dave Gahan e Martin Gore seguem ativos e influentes (seu último álbum, Memento Mori, de 2023, começou a ser composto antes da morte de Fletcher e, sem querer, funcionou como elegia ao amigo). Não há como prever por quanto tempo mais o Depeche Mode ainda existirá, mas, no que tange à sua obra-prima dos 30 anos, eles podem relaxar: a regra não escrita foi respeitada com rigor. Violator é um clássico desde seu parto.

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Depeche Mode
Violator 
Produzido por Depeche Mode e Flood 
Lançado em 19 de março de 1990 
 
1. World in My Eyes 
2. Sweetest Perfection 
3. Personal Jesus 
4. Halo 
5. Waiting for the Night 
6. Enjoy the Silence 
7. Policy of Truth 
8. Blue Dress 
9. Clean