29/04/2025

O Estúdio


Existe certa pressa em atribuir a decadência da comédia, como chamariz de bilheteria, à cultura do politicamente correto. O mundo, dizem, ficou “chato”, porque não se pode mais ridicularizar as pessoas por sua raça, sexualidade ou condição física. Acontece que “politicamente correto” significa apenas tratar as pessoas com respeito pelo que elas são. Se você sente falta de um tempo em que “tudo bem” (aspas enormes aqui) contar piada de preto, de bicha, de gordo, precisa de ajuda profissional... ou de um soco bem dado. Eu torço pra que a primeira opção lhe baste. 

Se você for neonazista, porém, é mais digno de soco do que de ajuda. #pas

Neste exato momento, porém, a maior bilheteria ocidental de 2025 pertence a uma comédia, Um Filme Minecraft. A graça de um filme com Jack Black fazendo papel de Jack Black pode ser abertamente questionada, mas, pelo jeito, o público gostou e é isso que importa, especialmente para as pessoas que investem dinheiro na arte de fazer filmes e esperam o devido retorno para manter essa roda girando, mesmo quando esses produtos têm muito pouco ou quase nada de arte, como parece ser o caso. O sucesso de Um Filme Minecraft mostra que há caminhos para a comédia que dispensam o artifício da ofensa pura e simples.

Curiosamente, no outro extremo de popularidade, o semidesconhecido Apple TV+ também vem lançando boas comédias: após a agridoce e elogiada Falando a Real, o streaming da maçã mordida colocou no ar O Estúdio, que, como o nome já entrega, apresenta situações vividas no ambiente da produção de filmes. Seth Rogen vive Matt Remick, executivo que se diz comprometido em devolver a dignidade à Arte do Cinema (em maiúsculas, como nos mais bonitos sonhos de Matt), mas que, uma vez promovido a diretor da Continental Studios, logo descobre que suas convicções pessoais e visão artística quase sempre esbarram na obrigação de fazer muita grana muito rápido.


Daí que Matt se vê metido em vexames imensos – seja porque precisa esconder do diretor dos seus sonhos, uma lenda do cinema, que ele deve dirigir o live action do jarrão de Ki-Suco; ou porque não consegue dizer a outro que o final do ótimo filme de ação dele é sonolento e pretensioso; ou porque os amigos médicos da namorada (e ela própria) são uns chatos de galocha, que ele faz questão de sacanear num leilão, só para se arrepender logo em seguida.

De certo modo, Matt Remick está ali, passando perrengue e fazendo a gente rir de nervoso, em nome de todos os artistas, roteiristas, diretores que tentam emplacar uma ideia original em Hollywood, um lugar que virou sinônimo de mesmice em nome da grana fácil. Quando ele tenta defender uma franquia de ação que já conta com sete partes – das quais só mesmo uma ou duas valeram a pena – a gente entende a mentalidade que reina no cinemão de férias. Quando ele é forçado a engavetar um bom roteiro que comprou de um mito em carne e osso, a gente entende o quão baixo se joga nesse jogo.

Além de ser Hollywood fazendo terapia, O Estúdio é uma deliciosa odisseia de vergonha alheia, em episódios com duração média de 30 minutos, nos quais Rogen (em grande forma) conta com ótimo elenco de apoio. A gente fica torcendo pra Matt Remick escolher “o bem”, ter coragem de dizer o que está entalado na nossa garganta, ou colher o menor sucesso que seja, mas ele quase sempre mete os pés pelas mãos e se estrepa gloriosamente. A gente ri, mas também dá pena.

O grande charme da série, porém, está nas inúmeras participações especiais de figurões de Hollywood em papéis de si mesmos – e dar de cara com essas pessoas é um dos grandes prazeres de assisti-la, então, me calo sobre quem são e o que fazem ali. Outra coisa muito legal é que, como os episódios são basicamente isolados, na linha “o desastre da semana”, O Estúdio pode ter uma vida longa, com várias temporadas – tipo uma franquia de ação medíocre, sacou? Acredito que não, mas espero que sim. Escondida num streaming que pouco se esforça para ser mais conhecido, sei que fica difícil, mas, citando palavras célebres nos meios em que circulo, sou eu que financio essa merda. Sou fan, quero service.

10/04/2025

A Bela Casa do Lago

James Tynion IV ganhou moral dentro da DC Comics ao co-escrever a maxissérie  Batman Eterno (2014) com Scott Snyder e outros. Em seguida, assumiu a Detective Comics, casa original do personagem, no começo da fase Renascimento, em 2016. Começou bem, mas não demorou a degringolar para a mesmice apelativa de destruir Gotham e/ou tirar a fortuna de Bruce Wayne e/ou desentocar segredos sujos dos seus pais e/ou fazer de um vilão mequetrefe qualquer um inimigo subitamente capaz de colocar o Batman e seus aliados de joelhos. Em suma, ficou um porre e me afastou do personagem.

Em seu favor, só mesmo o fato de que muitos outros depois dele, também, cometeram a mesmíssima besteira – de modo que, diante de seu nome numa capa de gibi, meu pulso não via motivos para acelerar. Como não li Something is Killing the Children, elogiado gibi autoral que Tynion lançou pela Boom! Studios (com o qual ganhou alguns Harvey e Eisner), não tinha qualquer base pra opinar sobre sua escrita fora do universo super-heroico.

Eis que A Bela Casa do Lago é lançada lá fora, pela DC Black Label – ou seja, a DC viu nela algo que 1) lembrava a produção da saudosa Vertigo, e 2) eles preferiam lançar a deixar que outra editora lançasse. Havia o título atraente, as capas bonitas e misteriosas e, por fim, o entusiasmo de um amigo (obrigado, Luwig!) que leu antes de mim e atestou a qualidade da coisa – e isso, antes de eu sequer notar aquele selo de “indicada ao Prêmio Eisner” na capa do segundo volume da edição nacional. Em suas doze partes, esta série chegou para surpreender aos descrentes no talento de James Tynion IV como escritor – eu entre eles.

Dez amigos são convidados para passar uma semana numa luxuosa e enorme mansão à beira de um lago, em Wisconsin. Quase todos eles já se conhecem há muitos anos. Funcionando como um fio costurando as relações entre o grupo, a devota amizade de Walter, autor do convite, um sujeito que todo mundo parece conhecer tão bem e tão pouco. Ao longo dos anos, Walter fez de tudo para que a amizade entre eles não se perdesse e, agora, parece haver um forte propósito nesta reunião – na qual todos têm um talento, pelo qual são identificados nos convites e nas instruções deixadas na casa: um músico, uma médica, uma escritora, e outros mais.

Nas primeiras horas do reencontro, aquela esperada alegria de rever amigos de longa data só é estremecida pela presença de Ryan, uma artista visual que é a amizade mais recente e inesperada pelo grupo, que apostava em outro amigo da mesma área. Apesar da promessa de que teriam internet de qualidade para trabalhar durante o período, o sinal é escasso e, quando finalmente permite alguma atualização, os amigos ficam sabendo que algo horrível aconteceu ao mundo fora dali. Quando finalmente surge na casa, Walter garante aos amigos que eles estão totalmente a salvo de qualquer perigo – isto é, desde que não deixem a bela casa do lago. A partir daí (e de algumas descobertas em suas explorações do terreno), os amigos começam a questionar tudo que sabem sobre Walter e a influência dele em suas vidas.

A arte do espanhol Álvaro Martinez Bueno (que lembra bastante a de Mitch Gerads, por exemplo) acompanha o tom sombrio da história, entregando certa escuridão que acompanha os habitantes da casa, mesmo durante o dia. Se a casa é descrita como bela e opulenta e o cenário em volta parece muito convidativo do alto, dos interiores e do chão da floresta tudo parece meio desgastado e perigoso (seguindo a percepção dos envolvidos, talvez).


O jeito mais certo de ler A Bela Casa do Lago é não sabendo coisa alguma sobre a história, então, peço desculpas por ter abordado certos aspectos da trama, mesmo que com todo o cuidado possível, tentando não estragar surpresas – e, acredite, elas acontecem aos montes. Cada virada altera nossa percepção sobre a história e os rumos que tomará em seguida – e eu até pensei em citar algumas das possibilidades aqui, mas a mera menção a gêneros pode dar pistas do que acontece. Saiba apenas que Tynion conduz tudo com habilidade, realizando um estudo de relações humanas nada pedante e demolindo as noções de sucesso e felicidade que nos são vendidas no processo

O sucesso de crítica e pública garantiu uma sequência, The Nice House by the Sea (em tradução livre, A Bela Casa da Praia), que esperamos chegar em breve pela Panini. Lá fora, foi a série que reabriu as portas da Vertigo, aquecendo o coração do leitor saudoso e insatisfeito com o Black Label, que, apesar do sucesso de vendas, era um forte desvio do conceito original. O que queremos são mais originais autorais e menos versões alternativas do Batman e correlatos. Se A Bela Casa do Lago servir de indício, podemos dizer que Tynion reabriu os trabalhos da nova velha Vertigo de maneira espetacular.

03/04/2025

Música & Mágica #5

 

NAÇÃO ZUMBI
Fome de Tudo
2007

Considerando que Radiola Vol. 1 (2017) era um disco de covers, já faz espantosos 11 anos desde que a Nação Zumbi lançou um disco – e o curioso disso é que a banda não acabou, nem se afastou dos palcos. Na época do lançamento de Nação Zumbi, o disco de 2014, fiz uma crítica positiva do álbum, hoje arquivada. Nos comentários, troquei argumentos com um fã mais hardcore da banda sobre a qualidade do trabalho, que ele considerou altamente questionável.

Do meu lado, defendi que a banda estivesse tentando fazer um pouco mais de sucesso, e que o disco fosse mais curto e mais relaxado que a maioria de seus trabalhos. Já ele entendia o álbum apenas como relaxado, mesmo – só que no sentido de frouxo. Disse, ainda, como resposta à minha sugestão de que a banda estaria, com a guinada a um tipo de pop, mostrando-se mais convidativa ao público, que fazer uma música mais elaborada ou experimental não significava deixar o público de fora, mas que achar a entrada fazia parte da brincadeira.

Sendo a apreciação da Arte um troço completamente subjetivo, é claro que ninguém estava totalmente certo ou errado: se acertei que músicas como “Um Sonho” e “A Melhor Hora da Praia” se tornariam itens queridos do setlist dos shows, muitos devem concordar com seu argumento de que esse disco era pálido perto de outros, já que qualquer audição menos atenta de álbuns como o homônimo Nação Zumbi (2002), Futura (2005), ou do estupendo objeto deste texto, Fome de Tudo (2007), revela-se bem mais impactante.

Um pequeno aparte, a título de “a última palavra é minha”: continuo achando que “Cicatriz” é do caralho, com sua introdução caceteira e sua produção cristalina, séria candidata a integrar aquela playlist do Spotify chamada “Songs to Test Headphones With”.

Em 2007, o Brasil surfava uma onda de otimismo, impulsionada pelos bons resultados econômicos e sociais do primeiro governo de Lula, já em seu segundo mandato. Na ocasião, embora suas políticas públicas já começassem a melhorar bastante a condição de vida geral do povo (em especial, de sua parcela mais carente), o Brasil ainda figurava no mapa da fome das Nações Unidas e só o deixaria alguns anos à frente, em 2014. No título de seu disco, porém, a Nação Zumbi enfatizava que não era só comida que faltava – de certa forma, uma retomada do conceito de “Comida”, dos Titãs, de 20 anos antes.


A Nação Zumbi em 2007: em pé, Lúcio Maia, Gilmar Bola 8 e Toca Ogan;
sentados, Pupillo, Jorge dü Peixe e Dengue

Mas é a fome literal o centro temático da poderosa faixa-título, que traz um dos versos mais contundentes já escritos sobre o assunto: “a fome tem uma saúde de ferro / forte como quem come”. É prova inequívoca do alto poder de fogo instrumental da Nação, em especial a bateria precisa de Pupillo e as inspiradas guitarras sobrepostas de Lúcio Maia – o homem estava imparável, ouça e comprove.

Desde a primeira faixa, a forte “Bossa Nostra” (um tratado da fome de autoconhecimento), a Nação pesa bonito a mão, um baque groovado após o outro. “Infeste” é praticamente Linkin Park via sertão agreste, as alfaias pesando uma tonelada e a proteção dos orixás nas imagens evocadas na letra. Em “Carnaval”, chama atenção o inspirado órgão Hammond de Marcelo Jeneci. Céu contribui com delicados backing vocals em “Inferno”.

A Nação joga até um sambinha de salão, com ajuda dos sopros marotos da Orquestra Popular do Recife, em “Nascedouro”. A musculosa “Onde Tenho que Ir”, ligada a “Assustado” por uma vinheta eletrônica sobre a fome como negócio, é uma pedrada cheia de balanço, com forte protagonismo das alfaias e das guitarras, com uma cítara adicionando bem-vinda psicodelia.

Em suas 12 faixas, Fome de Tudo traz a Nação Zumbi ostentando um sotaque pop nada óbvio (cortesia da finíssima produção de Mário Caldato), com resultados bem superiores aos de 2014 – basicamente, porque este disco não dilui sua potência política nem aposta na segurança de uma balada. Os vocais de Jorge dü Peixe soam mais versáteis e as boas letras garantiram refrãos empolgantes. Não é nada habitual uma banda atingir tamanho pico de criatividade uma década depois de perder seu membro mais famoso e principal cabeça pensante (Chico Science, falecido em 1997).

Em qualquer país sério, um onde as rádios não estivessem sendo sistematicamente compradas para abrigar apenas um gênero ou dois e nivelar tudo por muito, muito baixo, este disco teria potencial para frequentar as FMs e transformar a Nação Zumbi em mania nacional. Não era garantido que mais sucesso e grana fossem diminuir os hiatos criativos ou evitar a saída de vários membros importantes (entre eles, Pupillo e Lúcio Maia, perdas incalculáveis), mas ninguém jamais vai poder dizer que eles não tentaram do jeito certo.

* * * * *

NAÇÃO ZUMBI
Fome de Tudo
Produzido por Mário Caldato e Nação Zumbi
Lançado em 27 de Outubro de 2007

01. Bossa Nostra
02. Infeste
03. Carnaval
04. Inferno
05. Nascedouro
06. Onde Tenho que Ir
07. Assustado
08. Fome de Tudo
09. Toda Surdez Será Castigada
10. A Culpa
11. Originais do Sonho
12. No Olimpo