26/05/2025

Seu Pereira e Coletivo 401 - Obsoleto (2025)

Talvez você não saiba, mas, a despeito do nome sofrível, a banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401 é uma das melhores do país. É dela um dos melhores discos brasileiros dos anos 2010, Eu Não Sou Boa Influência Pra Você (2017) – qualquer dúvida, recomendo audição da faixa-título, “Otário”, “Love in Gotham City”, ou da estupenda “Geladeira Azul”, balada que crava as unhas no coração de qualquer um, a quem o surrado órgão ainda pudesse ter alguma serventia.

Jonathas Pereira Falcão, vulgo Seu Pereira, letrista e cantor, é uma espécie de “menestrel da bagaceira”, escrevendo com muita autoironia e perspicácia sobre coisas nas quais os jovens de hoje parecem cada vez menos interessados: sair pela noite pra beber e conhecer pessoas e lugares ordinários, quando não abertamente questionáveis, pouco ou nada “instagramáveis”, para filosofar sobre a vida e/ou apenas jogar conversa fora.

A prosa de Seu Pereira é direta, sem curvas, o que não a impede de soar lírica. Carrega uma aspereza que é típica dos compositores nordestinos desde sempre, entoada em um timbre barítono cheio de personalidade, que não hesita em fazer uso de sotaque e gírias regionais. Além do vocalista, que também toca guitarra, a banda conta com Thiago Sombra (baixo), Chico Correa (guitarras) e Victor Rama (bateria). O quarteto pratica um combo de rock and roll e MPB eletrificada, muito bem temperado com cerveja, sarcasmo e corações partidos.

Eis que, após oito anos de espera (período no qual a banda lançou singles e o vocalista lançou um álbum solo, Módulo Lunar, de 2022), Seu Pereira e Coletivo 401 estão de volta, e os paraibanos não decepcionam: as 10 faixas de Obsoleto recolocam a banda como uma das mais interessantes em atividade no país, consagrando Jonathas como um dos melhores letristas da atualidade – e todas as disposições em contrário ficam revogadas desde a primeira audição. Quer discordar, vá discordar na sua casa (apud Hilton).

A funkeada “Desde o Dia em que Meu Bem Partiu” abre os trabalhos, dando a medida do estrago emocional de uma separação: “meus amigos não suportam mais a minha cara fudida”. Como uma viajante do tempo a surgir de um portal em 2025, “Sem Futuro” é uma balada egressa de algum ponto dos anos 1970, com um órgão Hammond (e uma classe) que quase não se ouve mais por aqui. O arranjo, a letra, a interpretação... Tudo nela evoca Belchior e/ou Raul Seixas – tente imaginar que os dois se apaixonaram e tiveram um filhotinho eloquente e boêmio.


Em “Obsoleto”, Seu Pereira se assume como uma criatura que não acha lugar confortável no mundo atual (e é possível encontrar várias referências da letra na capa do álbum, concebida pela artista visual pernambucana Lua Rabelo). São três as participações especiais: a primeira é de Chico César, na rockeira e bem-humorada “Autopistas”; Totonho e Os Cabra ajudam na dor-de-corno esperançosa de “Um Dia”; por fim, Glaucia Lima declama poema contra o “cidadão de bem” na feminista “Erva Daninha”, faixa que fecha o disco.

Fosse por mim, inverteria a ordem desta última com “Boy da Amarok”, título que pode evocar sertanejo universitário, mas que está mais para uma parente distante e socialmente promovida da clássica “Fuscão Preto”, de Almir Rogério, em que certa mulher dispensa a “cross” do vocalista, preferindo o conforto da cabine da picape. Parece um encerramento mais adequado pra esse cordel de obsolescência – programada, talvez; e enfrentada, certamente.

Que não seja preciso esperar outros quase dez anos pelo sucessor de Obsoleto. Pessoas com tanto a dizer (e que embalam seu discurso em um som de tamanha qualidade) não podem ficar longe dos holofotes por tanto tempo. Fazer música no Brasil nem sempre é a melhor das aventuras, e a arte (e, por consequência, a vida) sempre fica um pouco pior quando grandes talentos se cansam de dar murro em ponta de faca. Desejo a Jonathas Pereira e banda paciência e punhos fortes.

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Seu Pereira e Coletivo 401
Obsoleto
Produzido por Chico Correa e Marcelo Macedo
Lançado em 16 de maio de 2025

1. Desde o Dia em que Meu Bem Partiu
2. Sem Futuro
3. Obsoleto
4. Só por Um Instante
5. Autopistas
6. Maré Cheia
7. No Dia em que Vendi Minha Alma
8. Um Dia
9. Boy da Amarok
10. Erva Daninha

21/05/2025

O Dia do Chacal

Sem ter lido o livro homônimo de Frederick Forsyth, escrito em 1971, e sem ter visto o filme que o adaptou em 1973, eu decidi ver O Dia do Chacal porque ela esteve presente em diversas listas das melhores coisas de 2024. Também me chamaram atenção os protagonistas: Eddie Redmayne, como o Chacal, matador de aluguel mais letal do mundo; e Lashana Lynch, como Bianca Pullman, agente do MI6 em seu encalço. Ambos ingleses, como o autor do livro, hoje com 86 anos.

Como está adaptando uma história de cinco décadas atrás, a série (um produto original do streaming Peacock, disponível para nós pelo Disney+) teve que fazer mudanças na trama e nos personagens, para encaixá-los no século XXI, a maior delas sendo substituir o detetive Claude Lebel pela agente Bianca Pullman, com seu senso de dever inabalável de veterana de guerra e forte faro investigativo, mas que, com frequência, mete os pés pelas mãos em seu esforço para capturar o Chacal. Enquanto tenta ser boa agente, boa mãe e boa esposa, Bianca vai acumulando bolas fora aqui e ali, mas sem jamais perder o rastro do assassino. O roteiro também tenta surfar a onda de assuntos da hora, como as críticas aos bilionários e a responsabilidade social (ou falta dela) das big techs.

O bom elenco é um dos grandes acertos aqui. OK, Redmayne tem um Oscar pra chamar de seu, mas ele caminha sobre uma linha muito fina, que separa estilo de interpretação da falta de versatilidade. Apesar disso, seu jeitão gélido e impassível caiu bem para o assassino Chacal, um atirador capaz de acertar alguém a quase 4 km de distância e que, determinado a levar uma vida normal ao lado da esposa espanhola (Úrsula Corberó, de La Casa de Papel) e do filho pequeno, vê-se tentado pelo altíssimo cachê e altíssima complexidade de um último serviço. Acontece que o penúltimo (no qual, ainda por cima, levou calote) chamou a atenção de Bianca Pullman, e ela não é do tipo de que ignora sua intuição ou desiste fácil. Na pele da obstinada Bianca, Lynch traz de volta a fisicalidade que a tornou destaque em cenas de ação de A Mulher Rei e 007: Sem Tempo Para Morrer, apesar do corpo sempre coberto por pesados uniformes ou roupas “de mãe”.

O jogo de gato-e-rato prende a atenção e deixa a gente nos cascos, apesar de alguns lances de pura “sorte de protagonista” em favor do Chacal – aliás, li em algum lugar na internet que o espectador ficava torcendo por ele e contra Bianca, mas não me peguei nessa contradição moral, basicamente, porque o Chacal de Redmayne não é um assassino charmoso: ele é uma mera máquina de matar. Há pouco espaço para identificação, e mesmo o esforço dele em ficar disponível para a esposa e o filho pequeno parece pouco sincero. Do lado de Bianca, a crise no casamento, embora mais passível de empatia, carece de peso dramático, previsivelmente voltando à estaca zero, bem no momento em que mais deveria importar.

Com seus dez episódios carregados de tensão, a série garante uma diversão bastante eletrizante, em produção de alto nível. O último episódio tem um final que diverge daquele do livro, medida que pareceu ter sido só um jeito de garantir uma segunda temporada – já confirmada. Achei o destino de certo personagem um exagero desnecessário (na verdade, eu espumei de ódio), mas, apesar dos pesares, O Dia do Chacal realmente merece uma vaga em qualquer lista decente das boas coisas do streaming no ano que passou – mas, para mim, longe das cabeças. Um meio do caminho honesto entre a base e o topo já está de bom tamanho.

13/05/2025

Máquina do Tempo

A ideia de deslocar-se no tempo sempre foi um poderoso motor da imaginação: em algum momento, todo mundo já sonhou em poder voltar ao passado, para tentar consertar pequenos ou grandes erros; ou visitar o futuro, para saber se o mundo (ou, pelo menos, o seu mundo) será melhor ou pior. Muito já foi escrito e filmado sobre o assunto – e não somente a serviço da ficção científica: até o romance e a comédia já se utilizaram do artifício. Controlar o tempo é um sonho antigo da humanidade – hoje, mais pelo desejo de honrar as demandas diárias e conseguir descansar do que por uma vontade de corrigir o passado ou moldar o futuro.

Na segunda metade dos anos 1930, a vida era bem simples no interior da Inglaterra, em que duas irmãs órfãs, Thomasina (Emma Appleton) e Martha (Stefanie Martini) - ou Thom e Mars, como se chamam entre si – desenvolvem uma máquina capaz de captar ondas de rádio e televisão, que, com ajustes muito específicos, encontra uma frequência de ondas vindas do futuro. O dispositivo é batizado como LOLA, em homenagem à sua falecida mãe. A princípio, as irmãs usam seu invento para conhecer música do futuro (David Bowie se torna um ídolo para elas quase 30 anos antes de lançar seu primeiro disco), a moda e as revoluções de costumes. Porém, elas descobrem, também, que, muito em breve, a Segunda Guerra Mundial começaria, e que seu país seria arrasado pelas forças alemãs.

Isoladas em sua casa de campo, Thom e Mars decidem intervir, da maneira mais discreta que conseguem, para evitar que o curso da história seja muito drasticamente alterado. Limitando-se a emitir alertas antecipados e anônimos sobre os ataques para que as pessoas se protejam, as irmãs esperam apenas reduzir a perda de vidas. Sua atuação acaba chamando a atenção dos militares ingleses, que desejam saber dos ataques antes que aconteçam, e o fazem com grande sucesso. Acontece que a História é uma via de mão dupla e, quando a tática inglesa se torna evidente para os alemães, o mundo corre risco de conhecer tempos ainda mais sombrios.

Rodado durante a pandemia e originalmente lançado em 2022, em estilo found footage (filmagens “reais” achadas “ao acaso”), Máquina do Tempo é uma prova irrefutável do poder de uma boa história. Curtíssimo (79 minutos) e baratíssimo, o filme de estreia do irlandês Andrew Legge dá uma surra de narrativa e impacto em produções com orçamento muito superior. As irmãs protagonistas são ótimas personagens, cheias de coragem e dualidades, entregues a ótimas atrizes. Elas conhecem a violência dos homens de diversas maneiras, mas não abrem mãos de suas individualidades, mesmo quando isso as coloca em lados opostos.

Há muito cuidado na mescla de imagens reais com encenações, e a edição de sons e a trilha sonora têm uma qualidade acima da média, seja nos temais incidentais que exalam tensão ou nos hinos do rock que funcionam como comentários para os eventos do filme. Máquina do Tempo teve discreta passagem por nossos cinemas em março e, hoje, pode ser alugado ou comprado em alguns serviços de streaming - e se você for um corsário de mão fechada e preferir navegar em busca do tesouro, eu te entendo e não te julgo: LOLA justifica totalmente a aventura e a transgressão.