19/01/2024

Anatomia de Uma Queda


O que parece um cenário pior: uma família lentamente destruída por uma quase-tragédia e pelo subsequente ressentimento; ou uma família rapidamente destruída por uma tragédia completa, talvez causada por alguém dentro dela?

A resposta encontrada em Anatomia de Uma Queda, da diretora francesa Justine Triet, é: "desgraça pouca é bobagem". Por que escolher?

Sandra (Sandra Hüller, excelente) é uma escritora alemã, que vive numa comunidade rural perto de Grenoble, nos Alpes Franceses, com o marido francês Samuel (Samuel Theis) e o filho Daniel (Milo Machado Graner, bela promessa), de 11 anos. Um atropelamento aos 4 anos deixou o garoto com o nervo óptico danificado e cegueira parcial. Certo dia, Sandra está tentando dar uma entrevista, mas o marido de Sandra faz muito ruído com seu trabalho de reforma do andar de cima, além de tocar música em volume irritantemente alto. Sandra desiste da entrevista e sobe para falar com Samuel. Daniel sai para passear com seu cão-guia e, ao retornar, encontra o pai morto na neve.


Sendo então a única outra pessoa na casa, Sandra logo vira suspeita. A partir da investigação, dos ensaios de defesa com o advogado/amigo Vincent (Swann Arlaud) e, em especial, durante o julgamento, a intimidade de Sandra com Samuel é destrinchada em detalhes embaraçosos e assustadores, revelando muita frustração e acusações mútuas, possíveis motivos para assassinato e abrindo outras possibilidades.

Além de ser um soberbo drama de tribunal - com presença de um jovem e muito irritante (embora bem-intencionado) promotor de justiça (Antoine Reinartz), um desses tipos que tomam o filme para si – Anatomia de Uma Queda é um filme complicado de assistir, e isso tem pouco a ver com seu ritmo paciente (nunca chato): são as interações do casal, cheias de conversas muito difíceis, carregadas de brutal sinceridade, que ficam ressoando na cabeça de qualquer um que tem ou já teve uma vida a dois. O amor pode tornar-se uma coisa bem feia, e nem todo mundo possui a paciência para esperar que ele troque de pele, ao fim do processo.


Nem tudo é lavagem de roupa suja, porém. Existe ainda - e ainda bem – muita delicadeza no filme, em especial quando está em cena o discreto e observador Daniel, talvez o personagem mais afetado por tudo que acontece (e aquele cão, por favor, tragam um Oscar pra ele!). A direção de Justine Triet sabiamente evita clichês de filmes americanos de tribunal, como música triunfante e closes de “epifania”. É tudo muito próximo do real – e muito bom.

O filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2023, além do Golden Globe de Melhor Filme em língua não-inglesa e de Melhor Roteiro e diversos prêmios importantes mundo afora. Quando sair o anúncio dos candidatos ao Oscar 2024, não se surpreenda ao vê-lo concorrendo nas categorias principais. Estreia nos cinemas brasileiros no dia 25 de janeiro.

2 comentários:

Luwig Sá disse...

Nem sou categórico, se tivesse assistido em 2023, Anatomia de uma Queda teria sido o meu filme favorito do ano passado. A subjetividade em tudo é de roer os ossos após comer as unhas; inclusive no próprio final. Porque, eu como jurado, poderia tê-la absolvido pq não havia certeza do crime diante das provas (contaminadas), mas daí dizer que ela não cometeu o assassinato...?! Aí são outros 500 milhões. O que quero dizer é achei de uma ambiguidade ímpar o desfecho. Rende muito papo num boteco.

Marlo de Sousa disse...

LUWIG, é verdade, o final deste filme (e daquele outro que te sugeri, A Pior Pessoa do Mundo) deixam a gente com dúvidas - e isto é ótimo! Quem sabe esteja renascendo o cinema que não esfrega tudo na cara do espectador e confia que ele fará seu próprio juízo.