03/11/2025

Olhe! Lá no céu!


Hoje, 3 de novembro de 2025, o Catapop completa 20 anos. Quem chega por aqui agora ou frequenta há pouco tempo e só vê post do ano passado pra cá, pode nem acreditar que ele existe desde quando a internet era só mato que abrigava bichos extintos, como Orkut, Limewire, mIRC e Discador UOL.

Escolhi a ilustração acima porque cogitei fazer a alusão de que "20 anos passaram feito uma nuvem", mas, olha, seria mentira. Eu gastei muito tempo com este blog, fosse mantendo-o vivo e produtivo ou apenas respirando por aparelhos. Houve momentos em que eu me sentia meio obrigado a estar sempre dando opinião sobre tudo e, quando não dava, me sentia meio mal (uma espécie de ensaio pra insanidade das redes sociais).

No começo, escrevia várias vezes por semana. De vez em quando, não tinha saco pra ele por meses e sumia. Além do mais, a vida te impõe outras prioridades e escrever sobre gibi ou filme é o de menos. Minha frequência foi caindo até restarem os atuais dois ou três posts por mês, em média, quando muito - e tudo bem: saber que minha opinião pode encontrar eco no peito do leitor é legal, mas entendo que ela não é realmente importante. Deixar de me sentir "necessário" foi uma grande lição que a velhice (real e virtual) me ensinou.

De 2018 a 2024, o Catapop foi a mesma coisa com outro nome, A Era do Ócio - e, entre 2021 e 2024, funcionava apenas no Instagram. Até que, no começo do ano passado, me cansei de cortar meus textos ou fragmentá-los em comentários. Decidi não apenas retomar a escrita livre no site, mas voltar com o nome original, muito associado à minha pessoa, entre amigos e leitores fiéis. Dois anos depois, sigo acreditando que fiz a coisa certa.

Eu sempre brinco que tenho "dois leitores e meio", e entendo que a galera de hoje prefere assistir vídeos sobre essas coisas que comento, mas o que eu gosto de fazer é escrever. Além do mais, vejo amigos e estranhos com queixas de conteúdo derrubado, por uso de imagens e sons, não importa se pouco ou muito. É um estresse que não desejo pra mim - sem falar da obrigação de postar com data marcada. Nada me impede de mudar de ideia no futuro, mas não será hoje.

O material arquivado do Catapop começará a rever a luz do dia, aos poucos, num esquema tipo "vale a pena ver ler de novo". O primeiro texto escolhido, bastante comentado à época (2008), é um apanhado de músicas e artistas que fizeram a glória da dance music, ali, no começo da década de 90. O texto original será acrescido de notas atuais, refletindo o que mudou desde a publicação original.

Outras tradições também estão sendo retomadas, como você pode ver rolando a tela. Já tem mais um sorteio no ar e também voltam as coletâneas de música, antes oferecidas em mp3. Hoje, basta montar uma playlist, e ninguém precisa se perguntar "será que tem vírus?" (nunca tinha). Eu uso Tidal, mas você pode pegar os nomes das músicas e remontar no seu app, seja qual for. Pode até usar a capinha bonitinha que eu fiz. =)

Em prol de minha saúde mental, eu me convenci de que escrevo este blog para mim, e que é apenas um bônus interessante que haja quem goste de lê-lo. Mesmo aceitando que eu possa nunca virar influencer de qualquer coisa, porém, gosto e sinto falta de interação com leitores - acredite, eu entendo quem resiste a "perder tempo" deixando comentário, mas, sua opinião é um feedback importante. Concorde, discorde, mas DIGA ALGO (e não só quando tem sorteio, interesseiro/a/e). Senta aí, que eu gosto de conversar e acabei de passar um café.

Bem-vindos aos próximos 20 anos do Catapop! Obrigado pela companhia até aqui.

Escuta Aqui, Vol. 1


A última coletânea criada pro Catapop, há 10 anos, tinha este mesmo nome, após oito outras que se chamavam Música Para Seus Ouvidos (pomposo, admito). Como tudo aqui ganhou clima de recomeço desde o ano passado, uso do meu direito de fazer um reboot na coleção, relançando o número 1 com uma nova coleção de 10 canções (tamanho de um LP decente) capazes de colocar um sorriso em seu rosto durante uma faxina ou como "ruído de fundo" de seu estudo ou trabalho. Espero que goste - e volte pro Volume 2, todo de música brasileira, que já está no forno.

* * * * *

Pearl Charles, "What I Need" - Filha do diretor de Borat, Larry Charles, Pearl já tem três discos lançados, e eles são bem legais. Esta faixa vem do segundo, Magic Mirror. Ela faz uma mescla do pop açucarado dos anos 60 com country-folk dos 70 (a slide guitar dá todo um charme). Moça pra se prestar atenção.

Khruangbin & Leon Bridges, "Texas Sun" - Não há como ficar indiferente ao clima de road trip que esta parceria evoca, como um dia tranquilo - porém, escaldante - dirigindo por estradas do interior. Gruda nos ouvidos e na memória que é uma beleza, e eu sou capaz de apostar que tem poderes terapêuticos.

Brittany Howard, "Stay High" - O singelo clipe estrelado por Terry Crews, com Brittany em vários outros papéis, torna tudo melhor, mas esta faixa de Jaime (2019), primeiro solo da vocalista do Alabama Shakes, se sustenta sozinha. Passaria perfeitamente como faixa de Sound & Color (2015), do AS.

HAIM, "The Steps" - As irmãs Haim (Alana, Este e Danielle) não precisam me provar mais nada, desde que lançaram esta pepita de pop rock, em 2023, segunda faixa do seu terceiro álbum, Women in Music Part III. Recado reto pra vacilão que tem medinho de mulher com iniciativa e sucesso.

Wilco, "Meant to Be" - O orgulho de Chicago pinçou este single do álbum Cousin (2023). Por baixo das ocasionais experimentações, respira uma banda que entende que dizer ou escutar que "nosso amor deve existir" pode ser tudo que a gente precisa. 30 anos e o Wilco não perde a mão - nem as manhas.

Kings of Convenience, "Rocky Trail" - Foram 12 longos anos entre Declaration of Dependence (2009) e Peace or Love (2021), mas Erlend Øye e Eirik Bøe voltaram aos violões para evocar a magia harmônica de Simon & Garfunkel modernos, com as mais lindas desculpas que se pode pedir.

Richard Hawley, "The Ocean" - Egresso dos obscuros Longpips e tendo colaborado com gente como Pulp e Paul Weller, Hawley construiu uma carreira solo que tangenciou o genial em Coles Corner (2005). Como uma maré que sobe aos poucos, este hino termina por afogar o ouvinte... em pura beleza.

CousteauX, "Your Day Will Come" - Além de citar o oceanógrafo francês Jacques Cousteau (cuja família deve ter recebido mal a honraria, o que obrigou a adição da letra X, em 2016), a banda inglesa estreou em 1999 com um álbum cheio daquela fleuma barítona ouvida em David Bowie e Scott Walker.

Pretenders, "The Buzz" - Delícia extraída de Hate for Sale (2020), mostrando que a veteraníssima Chrissie Hynde e seus comparsas ainda eram capazes de reproduzir a alquimia pop de hits do quilate de "Brass in Pocket" ou "Never Do That". O refrão lânguido é muito gostosinho de cantar junto.

The Glorious Sons, "A War on Everything" - É tão anacrônica em sua rebeldia adolescente e vontade de fugir (qual é o gen-Z que quer sair de casa?), que só mesmo o brilho soft rock da faixa-título do terceiro disco da banda canadense faz a gente acreditar que alguém vai sentir saudade dos pombinhos.

SORTEIO - Sandman: Prelúdio, um sonho de HQ


Quase duas décadas após concluir Sandman, o autor Neil Gaiman decidiu reabrir as portas do Sonhar, para contar uma história anterior ao clássico épico publicado na Vertigo. Atendendo a uma antiga demanda dos leitores - que, por vezes, sentiam que a arte nem sempre acompanhava a qualidade do texto - ele chamou para a empreitada um superstar capaz de traduzir em imagens o clima onírico das aventuras de Morfeus, em formas, cores e diagramação incomparáveis: J. H. Williams III.

O resultado se chamou, no Brasil, Sandman: Prelúdio. Saiu primeiro em minissérie de 3 edições e, depois ganhou este encadernado de luxo que estamos sorteando. Para adentrar mais uma vez (ou pela primeira vez) o mundo dos sonhos com Gaiman e Williams III, é bastante fácil:

1) Repostar conteúdo do Instagram em seu story vale um número pro sorteio;

2) Motivar um amigo a seguir nosso Instagram (peça a ele pra dizer seu nome como indicador via DM) vale dois números pro sorteio;

3) Um comentário aqui no blog, em qualquer post, vale três números. Então, se você comentar em dois, terá seis números, e assim por diante. Claro que falar apenas "disse tudo", "parabéns", "adorei" e coisas do tipo NÃO contam como um comentário. Melhore, amiguinho, e argumente! Se você ainda não leu, assistiu ou escutou o objeto do texto, fale de seu interesse ou expectativa - ou da falta destes. Pelo amor de Morfeus, não esqueça de se identificar! Anônimos não participarão do sorteio;

4) Somente residentes no Brasil podem participar e o livro será enviado pelos Correios;

5) O sorteio fica marcado para o dia 19 de dezembro de 2025, através do site Sorteador.

No mais, não tem mais. Boa sorte a todos que participarem!

Baú do Catapop #1

Esta seção vai fuçar na memória arquivada do blog, em busca de postagens que foram especialmente populares ou que merecem uma nova avaliação, à luz das mudanças por que passaram o mundo e este que vos escreve. Os comentários atuais serão feitos em azul itálico.

O primeiro texto resgatado para as comemorações dos 20 anos é um apanhado que publiquei em 14/10/2008, reunindo nomes e canções da Dance Music dos anos 90 - a geração que, entre o fim de minha adolescência e o começo de minha vida adulta, embalou noites suarentas na Usina de Som, saudosa boate de Ibotirama, no oeste baiano, onde vivi entre 1984 e 1999.

* * * * *

PUMP IT UP!
A Dance Music dos Anos 90
Originalmente publicado em 18/10/2008

Os anos 80 já estão gravados no inconsciente coletivo como uma década de grande criatividade na cultura pop. Passadas várias ondas revivalistas de bom e de mau gosto, o saldo geral é bastante positivo. Não há mais necessidade de explicar ou de defender aquele período.

A esta altura, também os anos 90 já foram louvados e atacados na grande mídia e nas análises pessoais de quem os viveu. Os ciclos de reavaliação de uma década costumam começar após 20 anos, com ondas menores de redescoberta a cada 10 outros.

Lá por 2010, estaremos novamente ocupados, fazendo uma triagem semelhante nos anos 90, “a década em que a melodia morreu”, segundo meu amigo Marcelo Borges, de Itumbiara/GO. A facilidade pop dos anos 80 deu lugar a experimentações que testavam a receptividade e, não raramente, a paciência dos ouvintes. Aqui no Brasil, a coisa ficou especialmente indigesta: fazer música simples, de um gênero só, ficou praticamente proibido. Todo mundo tinha que fazer MPopB, skate-metal, manguebit, forrócore e outros bichos esquisitos. Deu alguns bons frutos e gerou uma montanha de coisas horrorosas, algumas das quais se arrastam por aí até hoje.

Admito dificuldade semelhante à de Marcelo, embora menos intensa: muita coisa surgida nos anos 90, mesmo quando fruto de mistura de estilos, como Chico Science & Nação Zumbi, bateu em mim de primeira.

Os primeiros anos da década de 90 foram marcados pela ascensão da dance music, do underground a gênero “respeitável” e, principalmente, rentável. Desde o fim da era disco, nos primeiros anos da década de 80, a música criada exclusivamente para dançar, sem letras “conscientes” ou cabecismos fora de hora, não tinha tanta força. A febre das batidas aceleradas conquistou dois terços do planeta e fez espumar de raiva o terço restante (leiam-se os carrancudos roqueiros da época, metidos a salvar o mundo e remoer existencialismos).

Você, entre 20 e 25 anos, talvez seja novo demais para lembrar, mas houve um tempo em que ir a uma boite para dançar não era, como hoje, sinônimo de logo ver-se cercado de bichas musculosas, suadas e seminuas. Herdando o espólio das famosas danceterias da década passada, sacudir o esqueleto nos clubs noventistas era, até certo ponto, um programa razoavelmente hétero.

Como se pode notar, o fato de ser gay e já me sentir razoavelmente resolvido com isso desde 2000 não me impedia de reproduzir homofobia sistêmica e internalizada, como se um programa "razoavelmente hetero" fosse garantia de qualquer coisa mais tranquila ou divertida (spoiler: não é).

Como toda febre musical que se preze, a dance music dos 90 tinha representantes realmente criativos, one-hit wonders azarados e picaretas de primeira grandeza. Mesmo que a house music já começasse a fazer barulho, a ponto de a revista Bizz dar destaque e até capa para nulidades como Yazz e Bomb The Bass, o primeiro arrasa-quarteirão mundial da dance music era um forte riff de guitarra sampleado e acompanhado de um brado feminino: “I’ve got the power!”. Era "The Power", do projeto alemão Snap, comandado pelo rapper Turbo B. As batidas funky vitaminadas pela eletrônica, os clipes aeróbicos e singles certeiros como “Mary Had a Little Boy” e “Oops Up” transformaram o Snap em um sucesso avassalador. Em 1992, passado o bode da fórmula, eles voltaram mais suaves e legaram ao mundo a então onipresente “Rhythm Is A Dancer” (Clube das Mulheres, alguém?).

Turbo B, o MC do Snap

Não muito tempo depois de “The Power”, outro riff sampleado e mais um grito de guerra contaminaram o planeta: “everybody dance now!”, que tornava “Gonna Make You Sweat”, do C+C Music Factory, imediatamente reconhecível. A dupla formada por Robert Clivillés e pelo já falecido David Cole foi um dos primeiros a receber o rótulo de “respeitável” pela imprensa, que se esforçava para não se afogar na maré de nomes e singles que desafiavam critérios e faziam sucesso astronômico da noite para o dia e desapareciam com a mesma velocidade, sem deixar rastro. A “cara” do C+C Music Factory era o bombado e marrento rapper Freedom Williams, que depois achou que era “artista” e meteu-se em carreira solo, logo voltando ao anonimato.

"The Power" e "Gonna Make You Sweat" seguem sendo, para mim, as melhores músicas desse período no gênero.

C+C Music Factory (nas extremidades, Robert Clivillés e David Cole, falecido em 1995)

Clivillés e Cole ainda provocaram os roxos fãs do U2, fazendo não apenas uma, mas duas versões do hino “Pride (In The Name Of Love)”. Eu ouvi ambas e aprovei. Outro astronômico sucesso da dupla foi a maconheira “Take a Toke”, que aqui na Burrolândia tem fama de “romântica”. Ah, se os pombinhos que se enroscam ao som dela soubessem...

Perdão pelo elitismo linguístico de outrora. Ninguém tem obrigação de saber inglês só pra curtir um som - e ela passa, sim, por romântica (só que com maconha).

Dois verdadeiros furacões da dance music foram, também, protagonistas de grandes escândalos, à época. Depois que a dupla Milli Vanilli foi desmascarada como meros dubladores, após terem recebido vários Grammy, o vexame voltou a ocupar os noticiários, desta vez com Black Box e Technotronic.

O Black Box era um fabuloso projeto de italo house (a mais puxada para a disco music, cheia de cordas e pianinhos) cuja imagem pública era a da linda modelo Katrin Quinol. Não demorou até que alguém descobrisse que aquele vocal esplêndido, improvável para alguém tão magra, pertencia à rotunda Martha Wash. Ela buscou na justiça sua fatia da fortuna gerada com singles impecáveis como “I Don’t Know Anybody Else”, “Ride On Time”, “Everybody Everybody” e a cover de “Fantasy”, do Earth, Wind & Fire. Dreamland era, reconhecidamente, um dos poucos LPs de dance music que valiam a pena inteiros.

Katrin Quinol e Martha Wash, dubladora e verdadeira voz do Black Box

O caso do Technotronic foi mais simples. Os vocais e raps que pareciam pertencer à curvilínea Felly nada tinham de espetaculares. Mesmo assim, tratava-se de mais um caso de gato por lebre: quem cantava era a baixinha e andrógina Ya Kid K, que assumiu sem pudor a frente do grupo já no segundo single, “Get Up (Before The Night Is Over)”. Além deste, “This Beat Is Technotronic” e “Move This” fizeram tanto ou mais sucesso que a estréia do grupo, “Pump Up The Jam”, de onde saiu o bordão “pump it up”, que, no Brasil, ganhou a corruptela “poperô” e passou a designar a dance music que freqüentava as Jovem Pan da vida e os cd players de agroboys e outros tipinhos infelizes.

Queria dizer que sinto muito pelo ataque gratuito aos agroboys, mas estaria mentindo. Não atacar agroboys o suficiente transformou o mainstream brasileiro na mesmice cafona que é hoje.

Capa de Pump Up The Jam, a hoje clássica estréia do Technotronic

Estes são apenas alguns dos nomes mais famosos da época. Seria impossível falar de todo mundo em poucos parágrafos e não cometer injustiças. Por exemplo, como eu poderia deixar de mencionar o trio de produtores ingleses Stock, Aitken & Waterman, que revelaram Rick Astley, Kylie Minogue e ressuscitaram a então defunta carreira de Donna Summer? É gente demais e, infelizmente, não dá mesmo para citar todo mundo – até porque não há muito que falar sobre a maioria deles, exceto que deixaram canções que ainda ecoam pelas boites, rádios e academias mais nostálgicas.

Pouco tempo depois deste texto sair, Rick Astley conheceria novo sucesso na era dos memes, com "you've been rickrolled". Donna Summer, por sua vez, faleceria em 2012. Kylie Minogue segue viva e diva.

Eis aqui uma seleção de 10 12 músicas para encher um CD curtinho uma playlist curtinha e bem farofa, mas perfeitamente decente.

Shake that body!


01 – “Gonna Make You Sweat”, C+C Music Factory
02 – “The Power”, Snap
03 – “3 a.m. Eternal”, The KLF
04 – “Get Ready For This”, 2 Unlimited
05 – “I Don’t Know Anybody Else”, Black Box
06 – “Cinema”, Ice MC
07 – “Pump Up The Jam”, Technotronic
08 – “The Hitman”, AB Logic
09 – “Be My Lover”, LaBouche
10 – “It's My Life”, Dr. Alban
11 - "Respect", Adeva (cover de Aretha Franklin, já cover de Otis Redding, que foge da obviedade)
12 - "Finally", CeCe Peniston (das melhores letras românticas em melodia dançante que se pode ter)


21/10/2025

Música & Mágica #8


TRACY CHAPMAN
Tracy Chapman
1988

Há pouquíssimo tempo, chegou ao fim o remake de Vale Tudo, novela da Rede Globo que, em 1988, mobilizou a audiência em torno do mistério sobre quem matou Odete Roitman. Naquele tempo, quase quatro décadas atrás, as trilhas das novelas da Globo eram um importante componente na formação (inicial, pelo menos) do gosto musical dos brasileiros. Para os artistas daqui - especialmente, aqueles em início de carreira - era a chance de ser elevado sem escalas ao mainstream nacional, principalmente se sua música virasse tema de um personagem querido.

A novela de Gilberto Braga teve uma trilha internacional de imenso sucesso. Dela constavam nomes como George Michael, Natalie Cole, Rod Stewart, Whitney Houston e Sade, só pra ficar em alguns. Entre tantos grandes astros, chamava atenção o nome de uma estreante, que lançou uma balada acústica extremamente açucarada, que virou um dos maiores hits daquele ano. A música era "Baby Can I Hold You" e a cantora se chamava Tracy Chapman.

Chapman desafiava classificações. Era meio andrógina, com seu cabelo black curtinho, se vestia com simplicidade, tinha voz de contralto e tocava violão folk, diferindo drasticamente das demais cantoras negras na trilha, com seus looks de grife e produção de ponta, em hits feitos para dançar ou namorar. Verdade que "Baby..." era uma música romântica, e não era a única do tipo no epônimo disco de estreia de Tracy, mas quem fosse a uma loja comprá-lo, na esperança de ouvi-la falar de amor da primeira à última faixa, tinha boas chances de se decepcionar - com mente aberta e ouvidos dispostos, porém, ficava claro que ela tinha muito a dizer.

A primeira faixa, "Talkin' 'Bout a Revolution", já era uma carta de intenções: Tracy alertando aos donos do poder que o povo estava esperto e prestando atenção à péssima qualidade de vida que sobrava aos que sonhavam "errado" o sonho americano (os 99% que não ficavam milionários antes dos 30 anos, para quem a vida era uma luta diária). "Finalmente, as mesas estão começando a virar", ela dizia, quase ingenuamente - mas, pensando bem, não dá para ser idealista ou sonhador sem ser um pouco ingênuo, também.

Sem perda de tempo, já caímos na obra-prima do disco: "Fast Car", em que Tracy se imagina na pele de uma moça que se junta ao namorado na busca de um futuro melhor. Enquanto ela persiste e se vira pra pagar as contas, alimentar os filhos e não repetir os erros da mãe, ele vai cedendo aos pouco à acomodação e ao álcool. O sonho de dirigir pela cidade sem preocupações ("era gostoso o seu braço passado em volta do meu ombro") acaba atropelado pela dificuldade em encontrar emprego digno e prosperar juntos. Sobre o riff simplicíssimo e circular de seu violão, a letra de Tracy pintava um retrato sombrio das perspectivas da juventude nos guetos americanos.

A barra pesa ainda mais em "Behind the Wall", cantada a cappella, em que a violência doméstica e a inépcia policial são amigas íntimas. "Why?" era didática em perguntar "por que bebês passam fome, se há comida que dá pra alimentar o mundo?" Apesar da indigência lírica e de certa condescendência, se existe algo que hoje sabemos com certeza, é que o óbvio também precisa ser dito. Tem recado que não pode ser cifrado: tem que ser uma voadora com os dois pés no peito do ouvinte.

Felizmente, nem tudo é revolta e miséria: o reggae "She's Got Her Ticket" oferece às meninas o direito de sonhar com uma vida melhor, mesmo vindo de famílias horríveis ou desfeitas. "Mountains o' Things" soa como um delírio febril de alguém cansado de trabalhar para apenas sobreviver, que se permite sonhar em acumular coisas e, bem, ser um pouco cuzão apenas por ser rico. Curioso é que, embora saibamos de qual parcela da população Tracy está falando nesses momentos de crítica social, ela só usa as palavras "black" e "white" em uma música, "Across the Lines".

Na metade romântica do seu disco, Tracy equilibra a sacarina de "Baby Can I Hold You" com a delicadeza de coisas para se cantar ao pé do ouvido, como "For You" e "If Not Now". Os perrengues de namorar um cara, digamos, problemático, estão descritos em "For My Lover": "as coisas que não fazemos por amor...", diz a coitada que, aos poucos, vai perdendo dinheiro e juízo.


Apesar da dureza de alguns temas, Tracy Chapman, o disco, é de muito fácil audição, com uma produção cristalina, beirando o pasteurizado, a cargo de David Kershenbaum (que já produziu Duran Duran, Supertramp e Bryan Adams). A cena musical da época estava dividida entre o pop ultraproduzido de artistas como A-Ha e Depeche Mode e o bom momento do hard rock (o Guns N' Roses, por exemplo, tinha lançado seu primeiro álbum no ano anterior). Tracy chegou de mansinho, com seu disco de trovadora, quase anacrônico, e firmou os dois pés nas paradas e listas de premiações. Tracy Chapman, o álbum, vendeu 20 milhões de cópias mundialmente, 250 mil delas no Brasil (disco de platina), e ganhou três Grammy.

Seus discos subsequentes não repetiram o sucesso mundial de sua estreia, mas ela continuou gravando até 2008, quando lançou seu último álbum, Our Bright Future. Embora seja frequentemente reconhecida e homenageada por seu trabalho musical, Tracy não está simplesmente descansando sobre os louros da antiga fama: ela é uma ocupada ativista dos direitos humanos, atuando em diversas partes do mundo no combate à fome e outras tragédias. Em vez de virar mesas, Chapman parece agora mais empenhada em arrumá-las para quem tem urgência em sentar-se a uma. Diferente, mas coerente.

* * * * *

Tracy Chapman
Tracy Chapman
Produzido por David Kershenbaum
Lançado em 5 de abril de 1988

1. Talkin' 'Bout a Revolution
2. Fast Car
3. Across the Lines
4. Behind the Wall
5. Baby Can I Hold You
6. Mountains o' Things
7. She's Got Her Ticket
8. Why?
9. If Not Now...
10. For You

30/09/2025

A Saga da Mulher-Maravilha #1 (Segunda Temporada)

Enquanto A Saga do Batman e A Saga dos X-Men já ultrapassaram todas as expectativas de sucesso (com algumas edições simplesmente sumindo do mercado ou sendo vendidas a peso de ouro), com a primeira confirmada para relançamento de sua primeira temporada (em sistema de assinatura e box de coleção), as Sagas de heróis menos populares prosperam mais devagar, com suas edições bimestrais. É o caso da Mulher-Maravilha, cuja primeira temporada trouxe, em sete edições, a fase de John Byrne - de que já não gostei em seu lançamento original, pela Editora Abril, e, portanto, evitei.

Na oitava edição, começa a segunda temporada de A Saga da Mulher-Maravilha, com a primeira fase escrita por Greg Rucka - o que significa que a Panini saltou, sem qualquer cerimônia, a fase com Phil Jimenez na escrita e na arte (na qual ele colaborou brevemente com sua principal influência, o saudoso mestre George Pérez). É mais uma decisão questionável da editora, embora não tão grave quanto foi, para mim, o hediondo duplo twist carpado que deram sobre a extensa e gostosa fase de Joe Kelly, quando esta seria a coisa mais lógica para inaugurar a segunda temporada d'A Saga da Liga da Justiça; ou a amada fase de Tom Grummett, na agora finada A Saga dos Novos Titãs, ignorada em favor da fase de Geoff Johns, medíocre e já publicada dentro da própria Panini.

Nas mãos de Greg Rucka, Diana atua como embaixadora de Themiscyra nos Estados Unidos (com direito a escritório, assessores e toda a burocracia que vem junto). Ao mesmo tempo, Diana publica um livro com uma versão resumida de sua visão de mundo, gerando muita controvérsia. Era 2003, quando a internet ainda era "mato", as redes sociais ainda eram relativamente "inocentes", mas já se discutiam o ódio gratuito e a defesa apaixonada de opiniões preconceituosas e sem embasamento. Se os americanos tivessem a mínima ideia de como as coisas degringolariam em 20 anos...

Bom, talvez eles tivessem, e o plano fosse esse, mesmo.

Enfim, Diana está ocupada como jamais pensou que estaria, equilibrando-se entre os papéis de heroína, diplomata, celebridade literária e mulher com vontades bem humanas, como comer doce e ter um boy pra chamar de seu. Mais ou menos alheias ao seu controle, pequenas e grandes conspirações se revelam, vindas de muito longe (com as dinâmicas de poder entre um Zeus cada vez menos influente e uma Hera cada vez mais ciumenta representando perigo para todas as amazonas) e de muito perto (com a cientista e empresária Veronica Cale desvirtuando as palavras e ações de Diana, provocando reações cada vez mais negativas da população).

Não é uma unanimidade, mas me agrada a caracterização de Diana como uma pessoa extremamente paciente diante da raiva e da burrice de seus detratores, ao mesmo tempo em que precisa ser implacável com antigos e novos inimigos (entre estes, a versão deturpada e letal de uma amiga querida). O grande diferencial da escrita de Greg Rucka está nas interações sociais de Diana com as pessoas em seu entorno, sejam os funcionários da embaixada, os colegas da Liga, repórteres ou cientistas. É um gibi no qual não falta ação (este não é, afinal, um conceito limitado a tiro, porrada e bomba), mas Rucka não tem pressa em posicionar as peças no tabuleiro. Mistério e intriga são especialidades suas desde sempre.

Chama atenção, também, a reestilização dos deuses olimpianos: exceto por Zeus e Hera (mais velhos e apegados aos costumes do passado), todo o panteão se veste e se comporta como humanos modernos, ostentando cabelos estilosos, óculos escuros e roupas da moda. Atena é vista com um iPad. Hermes fuma maconha o dia todo. Pouco lembrados pela atual sociedade ocidental, o que resta a fazer para deuses sem seguidores? O mais antigo dos bons conselhos: aproveitar a vida - o que fica ainda melhor quando dinheiro e tempo não são problemas.

A arte de Drew Johnson também traz novidades para o visual de Diana: com uma pele mais morena, cabelos muito lisos e nariz alongado, a heroína agora lembra menos uma caucasiana e mais uma persa (exceto, talvez, pelos olhos muito azuis). Tal mudança, porém, não é refletida nas ótimas capas da fase, com belas ilustrações de Adam Hughes e J. G. Jones (há duas de Phil Noto neste volume, mas parecem estranhas e indignas junto às demais), em que Diana é a mesma top model entalhada em mármore que conhecemos desde sempre.

Foram 30 edições escritas por Rucka, então, talvez esta segunda temporada seja ainda mais curta que a primeira. Caso prossiga, trará a fase de Allen Heinberg, que foi comprometida por atrasos e enxertada com uma série catastrófica, "O Ataque das Amazonas". Outro salto deixaria tudo muito perto da cronologia atual (outro erro cometido com a A Saga da Liga da Justiça), então, talvez seja o momento de a) mandar a cronologia às cucuias e publicar as 25 edições de Phil Jimenez, ou b) sacrificar mais uma Saga mal-planejada, em nome de uma "segurança" editorial discutível.

24/09/2025

Alien: Earth

Não muito tempo atrás, Alien era uma das franquias mais maltratadas por Hollywood. Agora, por mais improvável que pudesse parecer há coisa de uns 10 anos (quando Alien: Covenant, de 2017, fazia crer que ninguém - nem mesmo seu criador, Ridley Scott – seria capaz de torná-la relevante outra vez), estamos vivos em 2025 e testemunhando o retorno do monstrengo à boa forma. Ano passado, tivemos o enxuto e eficiente Alien: Romulus, de Fede Alvarez. Este ano, surpresa ainda maior nos foi reservada com a série Alien: Earth

Se já estava difícil engolir duas horas de xenomorfo a cada três ou cinco anos, imagina como seria aguentar cerca de oito horas disso em umas poucas semanas. Então, é preciso ser compreensivo com quem, como eu, achou que tirar mais leite dessa pedra parecia uma ideia prematura e ruim. Sem entusiasmo para buscar detalhes sobre a produção, não vi o nome de Noah Hawley entre os envolvidos. Hawley é roteirista de dois grandes e respeitados hits: as séries Fargo e Legion

Os primeiros dois episódios são formulaicos, até previsíveis: uma nave desgovernada cai sobre a sede da Prodigy, uma das cinco corporações que substituíram os governos e “pacificaram” a Terra. Em seu interior, uma tripulação literalmente despedaçada e uns poucos espécimes alienígenas - entre os quais, um xenomorfo adulto e alguns ovos de facehuggers (aquela “aranha” que gruda na cara e deposita o feto do bicho no tórax da vítima). Jump scares, paramilitares... Tudo faz parecer que estamos diante de um filme mediano, esticado muito além de qualquer bom-senso – ainda mais considerando a presença de não uma, não duas, mas seis crianças, com suas mentes em corpos adultos artificiais. 

Felizmente, também existe do que gostar logo de cara: o ciborgue Morrow (Baboo Ceesay) e o sintético Kirsch (Timothy Olyphant, em grande momento) são dois tipos memoráveis, rivais tecnológicos em lados opostos no esforço de contenção da fauna alienígena: enquanto o implacável Morrow foi o único sobrevivente da queda da nave Maginot (que pertence a uma corporação concorrente, a Weyland-Yutani), o impassível Kirsch tenta assegurar a posse dos estranhos bichos para o super-rico, superdotado e supermimado dono da Prodigy, o excêntrico e amoral Boy Kavalier (Samuel Blenkin, igualmente hipnótico e repulsivo no papel). 

Com a apreensão e remoção dos espécimes para a ilha de pesquisas da Prodigy, a série finalmente engata uma segunda marcha e não para de ficar mais interessante a cada capítulo. Além do constante perigo representado pelos animais (com apetite voraz e diferentes graus de inteligência), também as crianças-prodígios acabam sendo o centro de diversas discussões éticas sobre a transferência de corpos que sofreram. Elas ainda são quem eram antes? Ainda são pessoas ou são meros produtos? Ao tirar suas mentes de seus corpos doentes e garantir-lhes virtual imortalidade, a Prodigy foi benevolente ou cruel? 

Wendy: crescer é uma merda, mas tem vantagens.

As questões filosóficas, porém, estão em equilíbrio com a ação, e a série não nos poupa do gore que tornou a franquia famosa: prepare-se para muito sangue e algumas cenas dignas de pesadelos (você nunca mais vai olhar para uma ovelha como antes). Novos monstros e suas criativas formas de matar tiram Alien: Earth do marasmo que seria depender exclusivamente do xenomorfo desenhado por H. R. Giger (agora, visto em plena luz do dia, sob o sol tropical da ilha da Prodigy). Algumas dinâmicas entre os espécimes e diversos personagens são inesperadas (não dava para todo mundo ser só comida, afinal) e logo a gente percebe que Wendy (Sydney Chandler), a primeira das crianças artificiais, tem muito mais a oferecer do que vigor físico inesgotável. 

O abundante uso de efeitos práticos ajuda a afastar o ranço a que estaríamos suscetíveis com excesso de CGI (o uso do recurso é discreto). O suspense e a tensão crescem durante a primeira metade e explodem no quinto episódio, quando descobrimos o que aconteceu na Maginot antes de sua queda. O prazer de assistir a um bom produto da franquia Alien é completado por uma trilha sonora que, ao fim de cada episódio, traz um rockão que serve de comentário ao que foi visto desde a abertura: prepare-se para bater cabeça ao som de Black Sabbath, Metallica, Tool, Queens of the Stone Age e Pearl Jam, entre outros. 

Alien: Earth é mais uma injeção de sangue novo (com ou sem trocadilho, você decide) em uma franquia que passou décadas respirando por aparelhos, mas que parece ter encontrado um bom rumo e, mais importante ainda, gente capaz de guiá-la até lá. Tudo no último episódio grita que haverá uma segunda temporada – e ainda bem que não estamos na Terra, porque “no espaço, ninguém pode ouvir você gritar”. Com o rigor e diversão vistos aqui, o quase cinquentão xenomorfo seguirá assombrando mais algumas gerações. 

12/09/2025

Música & Mágica #7

 

DEPECHE MODE
Violator
1990
Existe uma regra não escrita no rock/pop, segundo a qual o artista deve lançar sua obra-prima até os 30 anos de idade, sob risco de perder o momentum de seu pico criativo. Há uma variedade de discos corroborando a tese: Achtung Baby do U2, Disintegration do The Cure, o “Black Album” do Metallica, e tantos outros.
Para o Depeche Mode, celebrando uma década de atividade em 1990, os últimos anos haviam sido de esforço para desvencilhar-se da frivolidade do pop dançante adolescente dos primeiros anos. Não que a banda devesse desculpar-se por “Just Can’t Get Enough” e semelhantes, mas bons artistas são naturalmente inquietos, buscando fazer sua música transcender velhas limitações, normalmente, abandonando sonoridade, discurso ou atitude que não mais agregam valor.
Nascido com o selo do tecnopop new romantic, o DM foi, gradualmente, dando uma guinada sombria em seus temas e tons. Ainda era capaz de fazer dançar, como se pôde comprovar em “Strangelove”, maior sucesso do último de seus discos dos anos 80, Music for the Masses (1987), mas mesmo este vinha envolto em sugestões pouco sutis de sadomasoquismo. Então, com a chegada da nova década e a proximidade dos 30 anos para seus integrantes, ou as inquietações do DM os consumiriam, ou gerariam seu magnum opus.
Felizmente, desde que lançaram o single “Personal Jesus”, ainda em agosto de 1989, houve pouca dúvida de que o Depeche Mode voltava com um trabalho muito vigoroso. À poderosa batida marcial e inspirado riff de guitarra, juntou-se a mística da letra, cuja improvável inspiração é a relação de Elvis Presley e sua esposa, Priscilla: trata de como você, em um relacionamento, pode tornar-se, até certo ponto, salvador e guia espiritual de seu parceiro. “Alguém para ouvir suas orações, alguém que se importe”, diz a letra.
Anos depois, Johnny Cash a regravaria, acentuando o caráter bluesy do riff de guitarra.
Pouco mais de um mês antes da chegada do novo álbum, o segundo single, “Enjoy the Silence”, estabeleceu o DM como uma das grandes coisas do ano, que mal havia começado (era 5 de fevereiro). Tratava-se de uma balada arrepiante, com um loop introdutório que deve ter deixado o Kraftwerk orgulhoso, uma síntese equilibrada de clima romântico dark e leve potencial dançante. A letra, no bonito timbre barítono de Dave Gahan, fala daqueles momentos em que a pessoa amada só precisa estar junto pra fazer bem, já que juras de amor costumam ter prazo de validade: “Tudo que eu sempre quis (...) Está aqui em meus braços / Palavras são bastante desnecessárias / Elas só podem fazer mal”. A aula magna de programação e a classe pop de Andrew Fletcher e Alan Wilder jogaram às alturas a expectativa sobre o novo álbum.

Depeche Mode em 1990: Andrew Fletcher, Dave Gahan, Martin Gore e Alan Wilder
 
Violator compensou a espera, embora se possa argumentar que as sete outras canções do disco talvez não brilhem tão intensamente quanto os singles que o precederam. Porém, não se pode ficar indiferente ao romantismo e sensualidade desavergonhados de “World in My Eyes”, faixa de abertura e quarto single extraído, prova cabal de que o Depeche Mode ainda sabia o que funcionava nas pistas de dança. Aos poucos, porém, o synthpop da banda abria caminho para arranjos mais rock and roll, como em “Sweetest Perfection” e na já citada “Personal Jesus”, uma tendência que a banda ainda seguiria em futuros álbuns. Mesmo elas, porém, ainda que calcadas em frases de guitarra (e Martin Gore mostra muita segurança nas seis cordas), são entremeadas com precisos ruídos eletrônicos (o que é, também, efeito da ótima co-produção de Flood). As filosóficas e climáticas “Halo” e “Policy of Truth” estão entre as melhores coisas que a banda já produziu, mas somente a última tornou-se single (o terceiro). Martin Gore refere-se a “Halo” como uma “defesa da imoralidade, mas com certo senso de culpa”, ao som de uma batida forte e cordas sintetizadas grandiosas. Por sua vez, “Policy of Truth” fala das consequências de não guardar certos segredos, como um lapso de infidelidade. Abrir o jogo nem sempre vai ser visto com bons olhos: “Nunca mais outra vez, foi o que você jurou da vez anterior”. “Blue Dress” tem um romantismo quase pueril, advindo do poder sugestivo de um objeto tão simples – como um vestido azul: “Vista-o, eu nem preciso tocar (...) Diga que acredita no quanto é fácil me agradar / Porque, quando aprender, você vai descobrir o que faz o mundo girar”. Fechando os trabalhos, “Clean” põe sua clara inspiração em “One of These Days”, do Pink Floyd, a serviço de uma letra de Martin Gore que, embora deva estar tratando de seus próprios processos de terapia e autocontrole, cai como uma luva na voz de Dave Gahan, tendo sido ele o integrante que mais problemas teve com o abuso de drogas, chegando a sofrer overdose e quase morrer, em 1996. Já se vão 35 anos desde Violator e, ainda que o Depeche Mode não tenha mais estado tão proeminente no mundo pop, como esteve em 1990, e embora tenham perdido dois colegas (Alan Wilder saiu em 1995 e Andrew Fletcher morreu em 2022), Dave Gahan e Martin Gore seguem ativos e influentes (seu último álbum, Memento Mori, de 2023, começou a ser composto antes da morte de Fletcher e, sem querer, funcionou como elegia ao amigo). Não há como prever por quanto tempo mais o Depeche Mode ainda existirá, mas, no que tange à sua obra-prima dos 30 anos, eles podem relaxar: a regra não escrita foi respeitada com rigor. Violator é um clássico desde seu parto.

* * * * * 
 
Depeche Mode
Violator 
Produzido por Depeche Mode e Flood 
Lançado em 19 de março de 1990 
 
1. World in My Eyes 
2. Sweetest Perfection 
3. Personal Jesus 
4. Halo 
5. Waiting for the Night 
6. Enjoy the Silence 
7. Policy of Truth 
8. Blue Dress 
9. Clean

30/07/2025

Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80, de Ricardo Alexandre

Eu entrei na década de 1980 com sete anos de idade. Os males da época, como ditadura, inflação, reserva de mercado e outros, não me preocupavam. Eu só queria saber de ler os gibis da Disney e da Turma da Mônica. Com o tempo, descobri Marvel e DC. Lia os meus, de amigos, de parentes. A bem da verdade, eu lia qualquer coisa que caísse nas mãos. Era meio como um tique nervoso.

Porém, quase um ano antes de começar a comprar gibis com meu próprio dinheiro (hábito que jamais abandonei totalmente, ao longo dos últimos 40 anos), me vi acometido por outras duas paixões: uma de ouvir e uma de ler.

A primeira delas já se insinuava para mim havia algum tempo: o rock and roll. Uma das memórias mais antigas que tenho é a de estar na casa de meus padrinhos, em Feira de Santana, por volta de 1979 e, insistentemente, repetir “(I Can’t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones, em seu toca-discos. Eu não fazia ideias das palavras que Mick Jagger estava proferindo – eu não sabia sequer quem era Mick Jagger! – mas isso não importava: aquela batida, aquela melodia e aquele refrão me pegaram de tal maneira naquele momento que, quase 50 anos depois, aqui estou eu falando deles. Em minha própria casa, eu me lembro que meu pai tinha, entre outros, a coletânea Shaved Fish e o álbum Double Fantasy, de John Lennon. “Mind Games”, “Instant Karma”, “Woman” e “(Just Like) Starting Over” tocavam até dizer chega – principalmente porque, pouco depois de lançar Double Fantasy, Lennon seria morto a tiros, e a comoção foi geral.

Em janeiro de 1985, meu amor pelo rock foi confirmado, carimbado e assinado em três vias timbradas com o acontecimento do primeiro Rock in Rio. Aquelas pessoas estranhas e legais, que eu já acompanhava por programas de clipes e FMs, estavam ali, “pertinho” (elas, no Rio; eu, em Ibotirama, no remoto oeste baiano), e eu sempre queria assistir aos compactos que a Globo exibia nas tardes de sábado. Ao lado de grandes nomes estrangeiros, estavam muitas das bandas que, nos últimos cinco anos, estavam dando forma a um rock brasileiro totalmente diferente do modelo que existiu por aqui em décadas anteriores. Entrando na adolescência, eu me via muito ligado naquilo tudo. O rock era o momento.

Em agosto do mesmo ano, surgia minha segunda grande paixão: a revista Bizz, dedicada à música em geral, mas com foco majoritário no rock. Era anunciada na Globo em comerciais engraçadinhos, protagonizados por Marcelo Tas. As três primeiras traziam Bruce Springsteen, Madonna e Nina Hagen nas capas. A primeira que comprei foi a quarta edição, com Gilberto Gil. Longe demais de qualquer grande centro, onde eu pudesse sintonizar uma FM rockeira qualquer, era impossível reconhecer 95% dos nomes que eu lia nela. Mesmo assim, a Bizz foi, pouco a pouco, tornando-se uma espécie de oráculo musical para mim, moldando meus gostos e minhas opiniões – e isso, em alguns casos, revelava-se um problema que eu demorava a reconhecer. Ao longo dos anos, tive que derrubar muitos preconceitos musicais que eu ergui com ajuda da revista.

Apesar disso, a Bizz mais me ajudou do que prejudicou. Foi por meio dela que conheci vários de meus artistas favoritos até hoje em dia. Seus articulistas eram gente que acabava virando “amigos” distantes para o adolescente solitário e em conflito que eu era. Escrever para ela era um sonho que movia certa ambição minha de ser jornalista (carreira que nunca persegui). Minhas edições eram cuidadosamente dispostas em minha estante e relê-las era um perpétuo prazer. Ela acabou duas vezes: a primeira, em 2001. Depois, voltou para mais uma temporada em 2005, acabando de vez em 2007. Não houve e não haverá revista como a Bizz – até porque, hoje em dia, quem ainda compra revista?

O editor que reabriu e fechou as portas foi Ricardo Alexandre, cuja obra autoral inclui um dos livros que me ajudaram a eleger biografias como meu gênero literário favorito: o ótimo Nem Vem que Não Tem: a Vida e o Veneno de Wilson Simonal. É ele o autor de Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80, um belíssimo relato da dor e da delícia daqueles tempos em que citar Caetano Veloso, como fiz agora, era um tremendo vacilo. Sua primeira publicação data de 2002, mas a edição que li foi a comemorativa de 10 anos, com novas anotações.

O autor Ricardo Alexandre

Em mais de 400 páginas, Dias de Luta detalha o clima que reinava no país, naquela virada de década dos 70 pros 80, quando o Brasil aos poucos se abria para o mundo, com uma juventude sedenta por uma renovação cultural que escapasse, com igual desenvoltura, da sanha moralista do governo e do pedantismo que havia tomado conta da MPB “oficial”: como na profética canção de Belchior, os ídolos ainda eram os mesmos, e os mais jovens não se viam refletidos neles.

Acertadamente, o autor estabelece o disco homônimo de Rita Lee de 1979 (aquele com “Mania de Você” e “Doce Vampiro”) como a pedra fundamental da linguagem musical da década à frente e, se você estava vivo então, certamente se lembra do furacão que ele representou. Já a partir de 1980, as coisas começariam a tomar formas loucas e seguir caminhos inesperados, com uma naturalidade contagiante. Em pouco tempo, quando ficou impossível negar a juventude como uma força de consumo, os olhos da indústria se voltariam para o novo rock brasileiro e, para o bem e para o mal, as coisas nunca mais seriam as mesmas.

De Gang 90 & As Absurdettes em 1980 aos Inimigos do Rei em 1989, a linha evolutiva do rock nacional é destrinchada com precisão por Ricardo Alexandre, que destaca, em relatos mais extensos, as bandas e artistas que formaram a linha de frente do rock nacional, como Blitz, Barão Vermelho, Os Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, RPM, Titãs, Ira! e Legião Urbana. Ainda que as frentes carioca (do “rock de bermudas”) e paulista (dos punks e alternativos) tenham predominância, existe espaço para comentar cenas menores, como as de Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte.

As histórias de bastidores e entrevistas ajudam a elucidar episódios que, para mim, ainda eram nebulosos – menos por falta de fontes e mais por mero esquecimento de buscar a verdade – como as razões para o fim da Blitz e para o sumiço da obra de João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, e por que tantos artistas de sucesso jamais eram vistos no programa do Chacrinha, entre outros.

As histórias de formação das bandas e os bastidores das gravadoras e shows renderiam (algumas até já renderam) livros à parte, tantos que são os lances de sorte e azar, esperteza e burrice, amor e ódio, ruína e superação. Dias de Luta funciona como um muito eficiente resumo da trajetória de uma geração que, na raça, peitou e subverteu as regras do jogo, criando todo um contexto cultural que se estendeu para muito além da música. De tudo, porém, foi principalmente ela que ficou, e o grande barato da leitura é revirar nossa própria memória e perceber que foi sensacional estar vivo para testemunhar, de perto ou de longe, em tempo mais ou menos real, os impactantes eventos reunidos nestas páginas. Belíssimo livro.

21/07/2025

Música & Mágica #6


CAPITAL INICIAL
Acústico MTV
2000

Música & Mágica é uma seção deste blog dedicada a discos clássicos. Eu tento sempre mantê-la restrita a álbuns originais, mas algumas coletâneas e discos ao vivo acabam tornando-se tão representativos dentro da obra de certos artistas, que fica difícil negar seu status. Foi por esta “brecha na lei” que o Acústico MTV do Capital Inicial ganhou sua vez: ele funcionava muito bem como retrospectiva dos primeiros 15 anos de carreira do Capital e sedimentava a volta à boa forma, alcançada com o álbum Atrás dos Olhos, de 1998. Trouxe algumas das versões definitivas para os clássicos da banda e ótimas novas canções e participações especiais, fazendo sucesso avassalador.

Um pouco de contexto: exceto pelo primeiro álbum, quando “Música Urbana” era escutada em toda parte, o Capital Inicial (Dinho Ouro Preto, Lôro Jones, e os irmãos Felipe e Flávio Lemos) não conseguiu mais furar a bolha da “série B” do rock brasileiro. Nenhum hit posterior, como “Independência”, “Fogo” ou “Mickey Mouse em Moscou”, repetia aquele êxito ou, muito menos, colocava o Capital em pé de igualdade com outras bandas nacionais em grande momento criativo naquela virada dos anos 80 para os 90, como Titãs e Paralamas do Sucesso.

Muito disso vinha do fato de que personalidade não era o forte do som do Capital Inicial. Até que Dinho Ouro Preto começasse a cantar, uma música deles podia estar tocando e dificilmente alguém diria “isso parece Capital Inicial”. A cada disco, a banda era espinafrada pela crítica musical – e eu, que nunca fui muito fã, cedia ao alerta de prevenção e mantinha distância segura. Em 1992, o tecladista Bozo Barretti (agregado em 1987) deixou a banda. Pouco depois, foi a vez de Dinho abandonar o barco e tentar carreira solo. O Capital chegou a gravar um álbum, Rua 47, com um novo vocalista, Murilo Lima. O impacto foi zero.

A maré virou quando a formação original se reuniu e gravou Atrás dos Olhos – de fato, um belo disco, maduro e bem-produzido. “O Mundo” e “Eu Vou Estar” foram hits, e o Capital foi convidado a gravar seu Acústico MTV, um formato que, celebrando 10 anos na MTV Brasil, já dava sinais de desgaste, mas ainda funcionava – e, caramba, como funcionou para o Capital! Os números definitivos nunca foram divulgados, mas o CD recebeu disco de platina triplo. Por conta da pirataria, as vacas eram tão magras naquela virada de século que bastava vender 100.000 cópias para receber um disco de platina, mas não seria surpresa se os números estivessem muito acima dos 300.000, porque onde quer que se fosse, ali estava tocando uma música do álbum. Uma altamente improvável “capitalmania” assolou o país.

O sucesso veio por indiscutível mérito: o formato acústico deu novo frescor ao repertório da banda e as músicas inéditas escolhidas tinham potência e gancho pop. Como bons punks, o Capital abriu mão da pompa de violinos ou metais. Ao de Lôro Jones, foram acrescidos os violões de Kiko Zambianchi e Marcelo Sussekind (que também toca slide guitar e produz o disco). Aislan Gomes ficou com o órgão Hammond e Denny Conceição  com a percussão. A única convidada especial do disco, Zélia Duncan, toca bandolim na bonita "Eu Vou Estar". Os arranjos enxutos e precisos foram coroados com a ótima performance vocal de Dinho (que não perdeu, mas aprendeu a dosar melhor os cacoetes que irritavam seus detratores).

O disco abre com uma bela versão desacelerada de “O Passageiro”, cover de “The Passenger”, de Iggy Pop. Em seguida, “O Mundo” (um clássico instantâneo composto por Pit Passarell) explode com pegada forte e arrepiantes riffs de Hammond. A primeira inédita, “Tudo que Vai”, é uma pepita pop de alto quilate, parceria de Alvin L. com Dado Villa-Lobos e Toni Platão, com caprichadíssima entrega de Dinho.

A leveza acústica trouxe à tona belezas antes escondidas em arranjos confusos ou equivocados, caso de “Independência” e “Fogo”. A segunda inédita, “Natasha” é uma bobagem sobre uma garota “rebelde” que parece ter saído de algum túnel do tempo, vinda dos anos 80, mas é tocada com tanto tesão que a gente até esquece o quanto aquele “feminismo” é anacrônico.

O maior sucesso do disco, porém, não foi uma música do próprio Capital: “Primeiros Erros (Chove)”, clássico de Kiko Zambianchi, viu-se apropriada pelos brasilienses diante de seus olhos e com sua luxuosa ajuda, sendo ouvida em toda parte e a todo instante.

A trinca que encerra o disco são canções da Aborto Elétrico, banda punk da qual se originaram o Capital e a Legião Urbana. As antes polêmicas e censuradas “Fátima” e “Veraneio Vascaína” puderam ser melhor apreciadas em tempos mais tolerantes, apesar de as provocações soarem bem mais ingênuas para o homem à beira dos 30 que eu era naquele ano 2000 – imagine hoje. O disco chega ao fim, claro, com “Música Urbana”, seu primeiro sucesso, fechando um ciclo de 15 anos com rápida ascensão, prolongada queda e inesperada ressurgência.

O apogeu viria numa consagradora apresentação no Rock in Rio de 2001, diante de 250 mil pessoas. Hoje em dia, o Capital segue colhendo os louros (e os lucros) do Acústico, com uma turnê que celebra os 25 anos do disco. Para mim, depois dele, rapidamente voltaram a ser aquela banda que lança um monte de discos que não colam nos meus ouvidos – mas, tudo bem. Por terem protagonizado uma das voltas por cima mais sensacionais que já testemunhei, o Capital tem meu respeito, ainda que respeito seja a última coisa que um punk de verdade espere ou ofereça.

* * * * *

Capital Inicial
Acústico MTV
Produzido por Marcelo Sussekind
Lançado em 26 de maio de 2000

1. O Passageiro
2. O Mundo
3. Todas as Noites
4. Tudo que Vai
5. Independência
6. Leve Desespero
7. Eu Vou Estar
8. Primeiros Erros (Chove)
9. Cai a Noite
10. Natasha
11. Fogo
12. Fátima
13. Veraneio Vascaína
14. Música Urbana