10/06/2025

The Ting Tings - Home (2025)

 

Sendo bastante honesto, uma das últimas coisas que eu esperava estar fazendo em meados de 2025 era escrever sobre um disco do The Ting Tings, porque, por mais simpáticas que as canções da dupla (e casal) Katie White e Jules De Martino fossem, elas sempre me deram aquela impressão de fast food musical. Lá em 2008, “That’s Not My Name” e “Shut Up and Let Me Go” surgiram como pílulas de escapismo dançante e estridente, e, para mim, morreu aí – até que, em 2014, a ótima “Wrong Club” surfou as marolas do tsunami disco que foi “Get Lucky”, do Daft Punk, do ano anterior.

Vai ver que a culpa é minha, já que nunca havia colocado um disco do The Ting Tings pra tocar do começo ao fim, mas o fato é que, do meu ponto de vista, eles sempre estiveram, se tanto, na série C do pop, aquela multidão de esfomeados com (e/ou sem) talento e substância, que raramente consegue furar a resistente e pouco espaçosa bolha do topo das paradas. O Spotify, porém, entende que a minha obsessão com “Wrong Club” me qualifica como seguidor interessado e me sugeriu escutar Home, o novo álbum.

E, homi, não é que o danado é uma bela surpresa?

Pra começo de conversa, esqueça batidões, eletropop, disco, ou qualquer coisa que lembre os “velhos” Ting Tings - e que o fã me perdoe caso Home se pareça com Sounds From Nowheresville (2012) ou The Black Light (2018), dos quais não ouvi absolutamente nada – pois este aqui é um bonito álbum de soft rock, numa pegada eletroacústica que lembra Fleetwood Mac e Dire Straits, pasme! Tudo é muito melodioso, harmonioso e gostoso de ouvir, de uma elegância que remete imediatamente ao fim dos anos 1970. Não fosse um rótulo tão pedante (coisa que o disco não é), daria pra chamar de AOR (Adult-Oriented Rock), mas, melhor não.

Com seu título agridoce, “Good People Do Bad Things” já estabelece o tom do disco, com a bonita voz de Katie White sobre uma “cozinha” bastante segura e potente, desembocando num solo de guitarra que vai trazer à memória flashes de Mark Knopfler, do Dire Straits. “Dreaming”, a faixa seguinte, tem uma intro de tom épico, com loops de bateria e acordes ao piano elétrico, emoldurando uma melodia que não soaria equivocada na voz de Stevie Nicks, do Fleetwood Mac.

“Home” abre com harmonias vocais a cappella para desaguar num folk country marcial vigoroso, com Katie dividindo o canto com Jules. Lá pelo finzinho, ainda cabe um solo de sax tenor – e impressiona ouvir a riqueza desses arranjos, num tempo em que música é vista por muita gente como só mais um penduricalho numa trend de 15 segundos no TikTok. Home tem uma simplicidade opulenta e muito bem cuidada, por mais que o conceito soe contraditório.

Uma coisa que me agrada muitíssimo é o uso de bonitos solos de guitarra, esta instituição do rock praticamente sepultada nos tempos que correm. Em canções mais introspectivas e acústicas, como as vizinhas “In My Hand” e “Danced on the Wire”, Katie e Jules soam como James Taylor e Carole King modernos. Da virada inicial de bateria à explosão do refrão, “Song for Meadow” parece pinçada diretamente do repertório setentista de gente como Steely Dan, Player ou Christopher Cross.

A penúltima e reflexiva “Mind Thunder” revela questionamento e inquietação com os tempos atuais. Fechando o disco, “Down” é romantismo acústico levado ao violão, com um refrão feito pra uma plateia acompanhar, e sua calmaria só é interrompida pela chegada de piano, guitarra e sintetizadores discretos, num bonito crescendo, botando ponto final em um disco anacrônico (e o digo como um sincero elogio), cheio de beleza e virtude. Se é por este caminho de carinhosa nostalgia e altíssima qualidade que The Ting Tings vão de agora em diante, fico muito feliz em percorrê-lo com eles.

* * * * *

The Ting Tings
Home
Produzido por The Ting Tings
Lançado em 6 de junho de 2025

1. Good People Do Bad Things
2. Dreaming
3. Home
4. Goodbye Song
5. Winning
6. In My Hand
7. Danced on the Wire
8. Song for Meadow
9. Mind Thunder
10. Down

04/06/2025

Pecadores

O diretor estadunidense Ryan Coogler possui uma filmografia ainda pequena, mas que demonstra invejável solidez. Do modesto Fruitvale Station (2013) ao multimilionário Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022), Coogler usa seus filmes (que também roteiriza) como vitrine de suas fortes convicções, brandindo o dedo acusador na cara dos racistas. O fato de que conseguiu imprimir personalidade a dois filmes de um estúdio (Disney) notório por inibir visões artísticas muito particulares, em favor de uma mesmice homogeneizada, dá noção do cacife (ou da lábia) do homem – e, por mais divisivo que o segundo Pantera Negra tenha sido, a verdade é que ele fez uma montanha de dinheiro (cerca de 850 milhões de dólares) que deixou o estúdio bastante satisfeito.

À parte este tropeço (se é que dá para chamar assim um filme que ganhou o Oscar de design de figurino e rendeu a Angela Bassett sua segunda indicação), o cinema de Coogler é constante e vigoroso, expondo a injustiça da brutalidade policial americana (Fruitvale Station), dando ao espectador a sensação de estar no ringue durante lutas de boxe (Creed), celebrando uma África que não se curva diante das potências ocidentais (Pantera Negra) e, agora, com o novo Pecadores, atribuindo à música poderes sobrenaturais e retratando o racismo como um pacto de sangue para sugar tudo que se puder dos negros, figurativa e literalmente.

Após sete anos longe de Clarksdale, Mississipi, os gêmeos Elias e Elijah Moore (duplo papel de Michael B. Jordan) - ou Fumaça e Fuligem – estão de volta. Com o dinheiro que ganharam trabalhando com a Máfia italiana em Chicago (e com as bebidas que roubaram dela e da rival irlandesa), querem abrir um clube de blues em menos de 24 horas, numa velha serraria que compram de um velho membro da Ku Klux Klan, supondo (torcendo?) que ele entenda que dinheiro é dinheiro, não importando que venha de mãos brancas ou pretas.

Para abrir naquela mesma noite, os gêmeos contam com a ajuda de diversos amigos e parentes, entre os quais está o absurdamente talentoso primo Samuel Moore (Miles Caton), ou “Preacher Boy” Sammie, filho do pastor local, com um dedilhar tão preciso nas cordas de aço e uma voz tão calorosa que, segundo uma lenda, narrada nos primeiros segundos do filme, seria capaz de romper o véu do tempo e da realidade. O velho e pinguço pianista Delta Slim (Delroy Lindo) pode ter décadas a mais de experiência, mas Sammie nasceu com um dom para o blues que só pode mesmo ser descrito como sobrenatural.

O baile inaugural acontece e é um sucesso (embaçado apenas pelo baixo poder de compra da freguesia), mas acaba atraindo o vampiro Remmick (Jack O'Connell) e outros dois “convertidos”, que desejam entrar, em troca de gastar muito e tocar música de graça, mas são mantidos de fora pelo desconfiado Elijah – que ainda não sabe que eles são vampiros, mas aprendeu a desconfiar de todo e qualquer branco que chega com muita conversa mole – e vampiros, como se sabe, só entram no espaço alheio quando convidados. É claro que esta breve resistência será vencida, o baile virará um banho de sangue e a sobrevivência será privilégio de uns poucos.

Coogler mistura elementos de filmes de gângster, blaxploitation (gênero de filmes policiais dos anos 70 que agregava discussão de direitos civis e elementos da cultura negra) e terror, embalados em uma atmosfera carregada de tensão, misticismo e sensualidade. É o seu filme mais pessoal, sua primeira história 100% original – e como é bom a gente ver o sucesso de um filme que não é um remake ou continuação! É ainda melhor que este sucesso seja fruto de seus indiscutíveis méritos.

O elenco tem Delroy Lindo arrasando, pra variar. Hailee Steinfeld diverte como uma mestiça que passa por branca, desbocada ex-namorada de Fuligem. Jack O’Connell, como Remmick, é um vampiro irlandês caipira assustador – menos pelos dentes ou sede de sangue, e mais por seus modos suaves e por representar a rapinagem branca sobre a cultura negra: “nós queremos sua música, suas histórias”, diz ele, a certa altura. Todo o elenco é bastante competente e, em papel duplo, o astro Michael B. Jordan exala em dobro o habitual carisma.

Além de Jordan, outro parceiro recorrente de Coogler é o compositor sueco Ludwig Göransson, que se supera na trilha de um filme em que a música está no centro nervoso dos acontecimentos, especialmente quando está em cena o estreante Miles Caton, jovem músico que, ao contrário do que o filme sugere, teve apenas dois meses para se familiarizar com a guitarra do blues, revelação muito promissora. É arrepiante, quase paralisante, a espetacular cena em que Sammie se entrega à literal magia do blues durante o baile e, se é que consigo evitar spoilers, acontece a coisa mais legal vista no cinema em muito tempo. Um momento brilhante, que fãs e estudiosos da arte vão comentar para sempre.

Como parece que tudo tem que virar “franquia”, “universo” e outras bobagens, já houve quem perguntasse a Coogler se ele já pensa em uma continuação, ao que ele respondeu com uma sonora negativa: “eu nunca sequer penso nisso”, disse, em entrevista. Tomara que ele mantenha sua palavra, já que Pecadores tem um fim meio “devedor”, mas retorna, logo após os primeiros créditos, para dar conta do destino de certos personagens, em cena arrebatadora e saudosa, colocando um indiscutível ponto final. É claro que, aplicando-se a pre$$ão correta, Coogler pode mudar de ideia – ele é apenas humano, enfim – mas, torçamos que seja esperto e desapegado o bastante para não macular o próprio legado.

26/05/2025

Seu Pereira e Coletivo 401 - Obsoleto (2025)

Talvez você não saiba, mas, a despeito do nome sofrível, a banda paraibana Seu Pereira e Coletivo 401 é uma das melhores do país. É dela um dos melhores discos brasileiros dos anos 2010, Eu Não Sou Boa Influência Pra Você (2017) – qualquer dúvida, recomendo audição da faixa-título, “Otário”, “Love in Gotham City”, ou da estupenda “Geladeira Azul”, balada que crava as unhas no coração de qualquer um, a quem o surrado órgão ainda pudesse ter alguma serventia.

Jonathas Pereira Falcão, vulgo Seu Pereira, letrista e cantor, é uma espécie de “menestrel da bagaceira”, escrevendo com muita autoironia e perspicácia sobre coisas nas quais os jovens de hoje parecem cada vez menos interessados: sair pela noite pra beber e conhecer pessoas e lugares ordinários, quando não abertamente questionáveis, pouco ou nada “instagramáveis”, para filosofar sobre a vida e/ou apenas jogar conversa fora.

A prosa de Seu Pereira é direta, sem curvas, o que não a impede de soar lírica. Carrega uma aspereza que é típica dos compositores nordestinos desde sempre, entoada em um timbre barítono cheio de personalidade, que não hesita em fazer uso de sotaque e gírias regionais. Além do vocalista, que também toca guitarra, a banda conta com Thiago Sombra (baixo), Chico Correa (guitarras) e Victor Rama (bateria). O quarteto pratica um combo de rock and roll e MPB eletrificada, muito bem temperado com cerveja, sarcasmo e corações partidos.

Eis que, após oito anos de espera (período no qual a banda lançou singles e o vocalista lançou um álbum solo, Módulo Lunar, de 2022), Seu Pereira e Coletivo 401 estão de volta, e os paraibanos não decepcionam: as 10 faixas de Obsoleto recolocam a banda como uma das mais interessantes em atividade no país, consagrando Jonathas como um dos melhores letristas da atualidade – e todas as disposições em contrário ficam revogadas desde a primeira audição. Quer discordar, vá discordar na sua casa (apud Hilton).

A funkeada “Desde o Dia em que Meu Bem Partiu” abre os trabalhos, dando a medida do estrago emocional de uma separação: “meus amigos não suportam mais a minha cara fudida”. Como uma viajante do tempo a surgir de um portal em 2025, “Sem Futuro” é uma balada egressa de algum ponto dos anos 1970, com um órgão Hammond (e uma classe) que quase não se ouve mais por aqui. O arranjo, a letra, a interpretação... Tudo nela evoca Belchior e/ou Raul Seixas – tente imaginar que os dois se apaixonaram e tiveram um filhotinho eloquente e boêmio.


Em “Obsoleto”, Seu Pereira se assume como uma criatura que não acha lugar confortável no mundo atual (e é possível encontrar várias referências da letra na capa do álbum, concebida pela artista visual pernambucana Lua Rabelo). São três as participações especiais: a primeira é de Chico César, na rockeira e bem-humorada “Autopistas”; Totonho e Os Cabra ajudam na dor-de-corno esperançosa de “Um Dia”; por fim, Glaucia Lima declama poema contra o “cidadão de bem” na feminista “Erva Daninha”, faixa que fecha o disco.

Fosse por mim, inverteria a ordem desta última com “Boy da Amarok”, título que pode evocar sertanejo universitário, mas que está mais para uma parente distante e socialmente promovida da clássica “Fuscão Preto”, de Almir Rogério, em que certa mulher dispensa a “cross” do vocalista, preferindo o conforto da cabine da picape. Parece um encerramento mais adequado pra esse cordel de obsolescência – programada, talvez; e enfrentada, certamente.

Que não seja preciso esperar outros quase dez anos pelo sucessor de Obsoleto. Pessoas com tanto a dizer (e que embalam seu discurso em um som de tamanha qualidade) não podem ficar longe dos holofotes por tanto tempo. Fazer música no Brasil nem sempre é a melhor das aventuras, e a arte (e, por consequência, a vida) sempre fica um pouco pior quando grandes talentos se cansam de dar murro em ponta de faca. Desejo a Jonathas Pereira e banda paciência e punhos fortes.

* * * * *

Seu Pereira e Coletivo 401
Obsoleto
Produzido por Chico Correa e Marcelo Macedo
Lançado em 16 de maio de 2025

1. Desde o Dia em que Meu Bem Partiu
2. Sem Futuro
3. Obsoleto
4. Só por Um Instante
5. Autopistas
6. Maré Cheia
7. No Dia em que Vendi Minha Alma
8. Um Dia
9. Boy da Amarok
10. Erva Daninha

21/05/2025

O Dia do Chacal

Sem ter lido o livro homônimo de Frederick Forsyth, escrito em 1971, e sem ter visto o filme que o adaptou em 1973, eu decidi ver O Dia do Chacal porque ela esteve presente em diversas listas das melhores coisas de 2024. Também me chamaram atenção os protagonistas: Eddie Redmayne, como o Chacal, matador de aluguel mais letal do mundo; e Lashana Lynch, como Bianca Pullman, agente do MI6 em seu encalço. Ambos ingleses, como o autor do livro, hoje com 86 anos.

Como está adaptando uma história de cinco décadas atrás, a série (um produto original do streaming Peacock, disponível para nós pelo Disney+) teve que fazer mudanças na trama e nos personagens, para encaixá-los no século XXI, a maior delas sendo substituir o detetive Claude Lebel pela agente Bianca Pullman, com seu senso de dever inabalável de veterana de guerra e forte faro investigativo, mas que, com frequência, mete os pés pelas mãos em seu esforço para capturar o Chacal. Enquanto tenta ser boa agente, boa mãe e boa esposa, Bianca vai acumulando bolas fora aqui e ali, mas sem jamais perder o rastro do assassino. O roteiro também tenta surfar a onda de assuntos da hora, como as críticas aos bilionários e a responsabilidade social (ou falta dela) das big techs.

O bom elenco é um dos grandes acertos aqui. OK, Redmayne tem um Oscar pra chamar de seu, mas ele caminha sobre uma linha muito fina, que separa estilo de interpretação da falta de versatilidade. Apesar disso, seu jeitão gélido e impassível caiu bem para o assassino Chacal, um atirador capaz de acertar alguém a quase 4 km de distância e que, determinado a levar uma vida normal ao lado da esposa espanhola (Úrsula Corberó, de La Casa de Papel) e do filho pequeno, vê-se tentado pelo altíssimo cachê e altíssima complexidade de um último serviço. Acontece que o penúltimo (no qual, ainda por cima, levou calote) chamou a atenção de Bianca Pullman, e ela não é do tipo de que ignora sua intuição ou desiste fácil. Na pele da obstinada Bianca, Lynch traz de volta a fisicalidade que a tornou destaque em cenas de ação de A Mulher Rei e 007: Sem Tempo Para Morrer, apesar do corpo sempre coberto por pesados uniformes ou roupas “de mãe”.

O jogo de gato-e-rato prende a atenção e deixa a gente nos cascos, apesar de alguns lances de pura “sorte de protagonista” em favor do Chacal – aliás, li em algum lugar na internet que o espectador ficava torcendo por ele e contra Bianca, mas não me peguei nessa contradição moral, basicamente, porque o Chacal de Redmayne não é um assassino charmoso: ele é uma mera máquina de matar. Há pouco espaço para identificação, e mesmo o esforço dele em ficar disponível para a esposa e o filho pequeno parece pouco sincero. Do lado de Bianca, a crise no casamento, embora mais passível de empatia, carece de peso dramático, previsivelmente voltando à estaca zero, bem no momento em que mais deveria importar.

Com seus dez episódios carregados de tensão, a série garante uma diversão bastante eletrizante, em produção de alto nível. O último episódio tem um final que diverge daquele do livro, medida que pareceu ter sido só um jeito de garantir uma segunda temporada – já confirmada. Achei o destino de certo personagem um exagero desnecessário (na verdade, eu espumei de ódio), mas, apesar dos pesares, O Dia do Chacal realmente merece uma vaga em qualquer lista decente das boas coisas do streaming no ano que passou – mas, para mim, longe das cabeças. Um meio do caminho honesto entre a base e o topo já está de bom tamanho.

13/05/2025

Máquina do Tempo

A ideia de deslocar-se no tempo sempre foi um poderoso motor da imaginação: em algum momento, todo mundo já sonhou em poder voltar ao passado, para tentar consertar pequenos ou grandes erros; ou visitar o futuro, para saber se o mundo (ou, pelo menos, o seu mundo) será melhor ou pior. Muito já foi escrito e filmado sobre o assunto – e não somente a serviço da ficção científica: até o romance e a comédia já se utilizaram do artifício. Controlar o tempo é um sonho antigo da humanidade – hoje, mais pelo desejo de honrar as demandas diárias e conseguir descansar do que por uma vontade de corrigir o passado ou moldar o futuro.

Na segunda metade dos anos 1930, a vida era bem simples no interior da Inglaterra, em que duas irmãs órfãs, Thomasina (Emma Appleton) e Martha (Stefanie Martini) - ou Thom e Mars, como se chamam entre si – desenvolvem uma máquina capaz de captar ondas de rádio e televisão, que, com ajustes muito específicos, encontra uma frequência de ondas vindas do futuro. O dispositivo é batizado como LOLA, em homenagem à sua falecida mãe. A princípio, as irmãs usam seu invento para conhecer música do futuro (David Bowie se torna um ídolo para elas quase 30 anos antes de lançar seu primeiro disco), a moda e as revoluções de costumes. Porém, elas descobrem, também, que, muito em breve, a Segunda Guerra Mundial começaria, e que seu país seria arrasado pelas forças alemãs.

Isoladas em sua casa de campo, Thom e Mars decidem intervir, da maneira mais discreta que conseguem, para evitar que o curso da história seja muito drasticamente alterado. Limitando-se a emitir alertas antecipados e anônimos sobre os ataques para que as pessoas se protejam, as irmãs esperam apenas reduzir a perda de vidas. Sua atuação acaba chamando a atenção dos militares ingleses, que desejam saber dos ataques antes que aconteçam, e o fazem com grande sucesso. Acontece que a História é uma via de mão dupla e, quando a tática inglesa se torna evidente para os alemães, o mundo corre risco de conhecer tempos ainda mais sombrios.

Rodado durante a pandemia e originalmente lançado em 2022, em estilo found footage (filmagens “reais” achadas “ao acaso”), Máquina do Tempo é uma prova irrefutável do poder de uma boa história. Curtíssimo (79 minutos) e baratíssimo, o filme de estreia do irlandês Andrew Legge dá uma surra de narrativa e impacto em produções com orçamento muito superior. As irmãs protagonistas são ótimas personagens, cheias de coragem e dualidades, entregues a ótimas atrizes. Elas conhecem a violência dos homens de diversas maneiras, mas não abrem mãos de suas individualidades, mesmo quando isso as coloca em lados opostos.

Há muito cuidado na mescla de imagens reais com encenações, e a edição de sons e a trilha sonora têm uma qualidade acima da média, seja nos temais incidentais que exalam tensão ou nos hinos do rock que funcionam como comentários para os eventos do filme. Máquina do Tempo teve discreta passagem por nossos cinemas em março e, hoje, pode ser alugado ou comprado em alguns serviços de streaming - e se você for um corsário de mão fechada e preferir navegar em busca do tesouro, eu te entendo e não te julgo: LOLA justifica totalmente a aventura e a transgressão.

29/04/2025

O Estúdio


Existe certa pressa em atribuir a decadência da comédia, como chamariz de bilheteria, à cultura do politicamente correto. O mundo, dizem, ficou “chato”, porque não se pode mais ridicularizar as pessoas por sua raça, sexualidade ou condição física. Acontece que “politicamente correto” significa apenas tratar as pessoas com respeito pelo que elas são. Se você sente falta de um tempo em que “tudo bem” (aspas enormes aqui) contar piada de preto, de bicha, de gordo, precisa de ajuda profissional... ou de um soco bem dado. Eu torço pra que a primeira opção lhe baste. 

Se você for neonazista, porém, é mais digno de soco do que de ajuda. #pas

Neste exato momento, porém, a maior bilheteria ocidental de 2025 pertence a uma comédia, Um Filme Minecraft. A graça de um filme com Jack Black fazendo papel de Jack Black pode ser abertamente questionada, mas, pelo jeito, o público gostou e é isso que importa, especialmente para as pessoas que investem dinheiro na arte de fazer filmes e esperam o devido retorno para manter essa roda girando, mesmo quando esses produtos têm muito pouco ou quase nada de arte, como parece ser o caso. O sucesso de Um Filme Minecraft mostra que há caminhos para a comédia que dispensam o artifício da ofensa pura e simples.

Curiosamente, no outro extremo de popularidade, o semidesconhecido Apple TV+ também vem lançando boas comédias: após a agridoce e elogiada Falando a Real, o streaming da maçã mordida colocou no ar O Estúdio, que, como o nome já entrega, apresenta situações vividas no ambiente da produção de filmes. Seth Rogen vive Matt Remick, executivo que se diz comprometido em devolver a dignidade à Arte do Cinema (em maiúsculas, como nos mais bonitos sonhos de Matt), mas que, uma vez promovido a diretor da Continental Studios, logo descobre que suas convicções pessoais e visão artística quase sempre esbarram na obrigação de fazer muita grana muito rápido.


Daí que Matt se vê metido em vexames imensos – seja porque precisa esconder do diretor dos seus sonhos, uma lenda do cinema, que ele deve dirigir o live action do jarrão de Ki-Suco; ou porque não consegue dizer a outro que o final do ótimo filme de ação dele é sonolento e pretensioso; ou porque os amigos médicos da namorada (e ela própria) são uns chatos de galocha, que ele faz questão de sacanear num leilão, só para se arrepender logo em seguida.

De certo modo, Matt Remick está ali, passando perrengue e fazendo a gente rir de nervoso, em nome de todos os artistas, roteiristas, diretores que tentam emplacar uma ideia original em Hollywood, um lugar que virou sinônimo de mesmice em nome da grana fácil. Quando ele tenta defender uma franquia de ação que já conta com sete partes – das quais só mesmo uma ou duas valeram a pena – a gente entende a mentalidade que reina no cinemão de férias. Quando ele é forçado a engavetar um bom roteiro que comprou de um mito em carne e osso, a gente entende o quão baixo se joga nesse jogo.

Além de ser Hollywood fazendo terapia, O Estúdio é uma deliciosa odisseia de vergonha alheia, em episódios com duração média de 30 minutos, nos quais Rogen (em grande forma) conta com ótimo elenco de apoio. A gente fica torcendo pra Matt Remick escolher “o bem”, ter coragem de dizer o que está entalado na nossa garganta, ou colher o menor sucesso que seja, mas ele quase sempre mete os pés pelas mãos e se estrepa gloriosamente. A gente ri, mas também dá pena.

O grande charme da série, porém, está nas inúmeras participações especiais de figurões de Hollywood em papéis de si mesmos – e dar de cara com essas pessoas é um dos grandes prazeres de assisti-la, então, me calo sobre quem são e o que fazem ali. Outra coisa muito legal é que, como os episódios são basicamente isolados, na linha “o desastre da semana”, O Estúdio pode ter uma vida longa, com várias temporadas – tipo uma franquia de ação medíocre, sacou? Acredito que não, mas espero que sim. Escondida num streaming que pouco se esforça para ser mais conhecido, sei que fica difícil, mas, citando palavras célebres nos meios em que circulo, sou eu que financio essa merda. Sou fan, quero service.

10/04/2025

A Bela Casa do Lago

James Tynion IV ganhou moral dentro da DC Comics ao co-escrever a maxissérie  Batman Eterno (2014) com Scott Snyder e outros. Em seguida, assumiu a Detective Comics, casa original do personagem, no começo da fase Renascimento, em 2016. Começou bem, mas não demorou a degringolar para a mesmice apelativa de destruir Gotham e/ou tirar a fortuna de Bruce Wayne e/ou desentocar segredos sujos dos seus pais e/ou fazer de um vilão mequetrefe qualquer um inimigo subitamente capaz de colocar o Batman e seus aliados de joelhos. Em suma, ficou um porre e me afastou do personagem.

Em seu favor, só mesmo o fato de que muitos outros depois dele, também, cometeram a mesmíssima besteira – de modo que, diante de seu nome numa capa de gibi, meu pulso não via motivos para acelerar. Como não li Something is Killing the Children, elogiado gibi autoral que Tynion lançou pela Boom! Studios (com o qual ganhou alguns Harvey e Eisner), não tinha qualquer base pra opinar sobre sua escrita fora do universo super-heroico.

Eis que A Bela Casa do Lago é lançada lá fora, pela DC Black Label – ou seja, a DC viu nela algo que 1) lembrava a produção da saudosa Vertigo, e 2) eles preferiam lançar a deixar que outra editora lançasse. Havia o título atraente, as capas bonitas e misteriosas e, por fim, o entusiasmo de um amigo (obrigado, Luwig!) que leu antes de mim e atestou a qualidade da coisa – e isso, antes de eu sequer notar aquele selo de “indicada ao Prêmio Eisner” na capa do segundo volume da edição nacional. Em suas doze partes, esta série chegou para surpreender aos descrentes no talento de James Tynion IV como escritor – eu entre eles.

Dez amigos são convidados para passar uma semana numa luxuosa e enorme mansão à beira de um lago, em Wisconsin. Quase todos eles já se conhecem há muitos anos. Funcionando como um fio costurando as relações entre o grupo, a devota amizade de Walter, autor do convite, um sujeito que todo mundo parece conhecer tão bem e tão pouco. Ao longo dos anos, Walter fez de tudo para que a amizade entre eles não se perdesse e, agora, parece haver um forte propósito nesta reunião – na qual todos têm um talento, pelo qual são identificados nos convites e nas instruções deixadas na casa: um músico, uma médica, uma escritora, e outros mais.

Nas primeiras horas do reencontro, aquela esperada alegria de rever amigos de longa data só é estremecida pela presença de Ryan, uma artista visual que é a amizade mais recente e inesperada pelo grupo, que apostava em outro amigo da mesma área. Apesar da promessa de que teriam internet de qualidade para trabalhar durante o período, o sinal é escasso e, quando finalmente permite alguma atualização, os amigos ficam sabendo que algo horrível aconteceu ao mundo fora dali. Quando finalmente surge na casa, Walter garante aos amigos que eles estão totalmente a salvo de qualquer perigo – isto é, desde que não deixem a bela casa do lago. A partir daí (e de algumas descobertas em suas explorações do terreno), os amigos começam a questionar tudo que sabem sobre Walter e a influência dele em suas vidas.

A arte do espanhol Álvaro Martinez Bueno (que lembra bastante a de Mitch Gerads, por exemplo) acompanha o tom sombrio da história, entregando certa escuridão que acompanha os habitantes da casa, mesmo durante o dia. Se a casa é descrita como bela e opulenta e o cenário em volta parece muito convidativo do alto, dos interiores e do chão da floresta tudo parece meio desgastado e perigoso (seguindo a percepção dos envolvidos, talvez).


O jeito mais certo de ler A Bela Casa do Lago é não sabendo coisa alguma sobre a história, então, peço desculpas por ter abordado certos aspectos da trama, mesmo que com todo o cuidado possível, tentando não estragar surpresas – e, acredite, elas acontecem aos montes. Cada virada altera nossa percepção sobre a história e os rumos que tomará em seguida – e eu até pensei em citar algumas das possibilidades aqui, mas a mera menção a gêneros pode dar pistas do que acontece. Saiba apenas que Tynion conduz tudo com habilidade, realizando um estudo de relações humanas nada pedante e demolindo as noções de sucesso e felicidade que nos são vendidas no processo

O sucesso de crítica e pública garantiu uma sequência, The Nice House by the Sea (em tradução livre, A Bela Casa da Praia), que esperamos chegar em breve pela Panini. Lá fora, foi a série que reabriu as portas da Vertigo, aquecendo o coração do leitor saudoso e insatisfeito com o Black Label, que, apesar do sucesso de vendas, era um forte desvio do conceito original. O que queremos são mais originais autorais e menos versões alternativas do Batman e correlatos. Se A Bela Casa do Lago servir de indício, podemos dizer que Tynion reabriu os trabalhos da nova velha Vertigo de maneira espetacular.

03/04/2025

Música & Mágica #5

 

NAÇÃO ZUMBI
Fome de Tudo
2007

Considerando que Radiola Vol. 1 (2017) era um disco de covers, já faz espantosos 11 anos desde que a Nação Zumbi lançou um disco – e o curioso disso é que a banda não acabou, nem se afastou dos palcos. Na época do lançamento de Nação Zumbi, o disco de 2014, fiz uma crítica positiva do álbum, hoje arquivada. Nos comentários, troquei argumentos com um fã mais hardcore da banda sobre a qualidade do trabalho, que ele considerou altamente questionável.

Do meu lado, defendi que a banda estivesse tentando fazer um pouco mais de sucesso, e que o disco fosse mais curto e mais relaxado que a maioria de seus trabalhos. Já ele entendia o álbum apenas como relaxado, mesmo – só que no sentido de frouxo. Disse, ainda, como resposta à minha sugestão de que a banda estaria, com a guinada a um tipo de pop, mostrando-se mais convidativa ao público, que fazer uma música mais elaborada ou experimental não significava deixar o público de fora, mas que achar a entrada fazia parte da brincadeira.

Sendo a apreciação da Arte um troço completamente subjetivo, é claro que ninguém estava totalmente certo ou errado: se acertei que músicas como “Um Sonho” e “A Melhor Hora da Praia” se tornariam itens queridos do setlist dos shows, muitos devem concordar com seu argumento de que esse disco era pálido perto de outros, já que qualquer audição menos atenta de álbuns como o homônimo Nação Zumbi (2002), Futura (2005), ou do estupendo objeto deste texto, Fome de Tudo (2007), revela-se bem mais impactante.

Um pequeno aparte, a título de “a última palavra é minha”: continuo achando que “Cicatriz” é do caralho, com sua introdução caceteira e sua produção cristalina, séria candidata a integrar aquela playlist do Spotify chamada “Songs to Test Headphones With”.

Em 2007, o Brasil surfava uma onda de otimismo, impulsionada pelos bons resultados econômicos e sociais do primeiro governo de Lula, já em seu segundo mandato. Na ocasião, embora suas políticas públicas já começassem a melhorar bastante a condição de vida geral do povo (em especial, de sua parcela mais carente), o Brasil ainda figurava no mapa da fome das Nações Unidas e só o deixaria alguns anos à frente, em 2014. No título de seu disco, porém, a Nação Zumbi enfatizava que não era só comida que faltava – de certa forma, uma retomada do conceito de “Comida”, dos Titãs, de 20 anos antes.


A Nação Zumbi em 2007: em pé, Lúcio Maia, Gilmar Bola 8 e Toca Ogan;
sentados, Pupillo, Jorge dü Peixe e Dengue

Mas é a fome literal o centro temático da poderosa faixa-título, que traz um dos versos mais contundentes já escritos sobre o assunto: “a fome tem uma saúde de ferro / forte como quem come”. É prova inequívoca do alto poder de fogo instrumental da Nação, em especial a bateria precisa de Pupillo e as inspiradas guitarras sobrepostas de Lúcio Maia – o homem estava imparável, ouça e comprove.

Desde a primeira faixa, a forte “Bossa Nostra” (um tratado da fome de autoconhecimento), a Nação pesa bonito a mão, um baque groovado após o outro. “Infeste” é praticamente Linkin Park via sertão agreste, as alfaias pesando uma tonelada e a proteção dos orixás nas imagens evocadas na letra. Em “Carnaval”, chama atenção o inspirado órgão Hammond de Marcelo Jeneci. Céu contribui com delicados backing vocals em “Inferno”.

A Nação joga até um sambinha de salão, com ajuda dos sopros marotos da Orquestra Popular do Recife, em “Nascedouro”. A musculosa “Onde Tenho que Ir”, ligada a “Assustado” por uma vinheta eletrônica sobre a fome como negócio, é uma pedrada cheia de balanço, com forte protagonismo das alfaias e das guitarras, com uma cítara adicionando bem-vinda psicodelia.

Em suas 12 faixas, Fome de Tudo traz a Nação Zumbi ostentando um sotaque pop nada óbvio (cortesia da finíssima produção de Mário Caldato), com resultados bem superiores aos de 2014 – basicamente, porque este disco não dilui sua potência política nem aposta na segurança de uma balada. Os vocais de Jorge dü Peixe soam mais versáteis e as boas letras garantiram refrãos empolgantes. Não é nada habitual uma banda atingir tamanho pico de criatividade uma década depois de perder seu membro mais famoso e principal cabeça pensante (Chico Science, falecido em 1997).

Em qualquer país sério, um onde as rádios não estivessem sendo sistematicamente compradas para abrigar apenas um gênero ou dois e nivelar tudo por muito, muito baixo, este disco teria potencial para frequentar as FMs e transformar a Nação Zumbi em mania nacional. Não era garantido que mais sucesso e grana fossem diminuir os hiatos criativos ou evitar a saída de vários membros importantes (entre eles, Pupillo e Lúcio Maia, perdas incalculáveis), mas ninguém jamais vai poder dizer que eles não tentaram do jeito certo.

* * * * *

NAÇÃO ZUMBI
Fome de Tudo
Produzido por Mário Caldato e Nação Zumbi
Lançado em 27 de Outubro de 2007

01. Bossa Nostra
02. Infeste
03. Carnaval
04. Inferno
05. Nascedouro
06. Onde Tenho que Ir
07. Assustado
08. Fome de Tudo
09. Toda Surdez Será Castigada
10. A Culpa
11. Originais do Sonho
12. No Olimpo 


24/03/2025

Inesquecíveis

 

O prolífico autor de quadrinhos francês Fabien Toulmé tem um caso de amor antigo com o Brasil: foi aqui, durante um intercâmbio na Paraíba, que ele conheceu sua esposa. Também viveu e trabalhou em Fortaleza. Seu tempo em nosso país ocupa muitas páginas de sua HQ de estreia, a muito sensível Não Era Você Que Eu Esperava, onde corajosamente expôs os sentimentos conflitantes que experimentou quando sua primeira filha nasceu com Síndrome de Down.

Em Inesquecíveis, Toulmé não está falando de si nem criando histórias delicadas e emocionantes: apenas faz curadoria e roteiriza histórias reais que coletou em entrevistas. São episódios que marcaram a vida das pessoas que as contaram – mesmo que não tenham sido elas a vivê-las, a exemplo da história sobre um casal de brasileiros, narrada por uma amiga.

Há o caso de uma moça estuprada pelo próprio namorado; uma menina cuja identidade foi apagada pela religião; um garoto francês que vivia em Ruanda quando estourou a sanguinária guerra civil de 1994; um casal que perde o trem do amor durante décadas, mas nunca deixa de se amar; e um garoto que parece perdido para o crime, até que um voto de confiança muda sua vida e dá início a mudanças no sistema penal francês.

Com pouco mais de 120 páginas, Inesquecíveis é uma leitura rápida, talvez até demais, pro leitor acostumado a outros trabalhos do autor. Um segundo volume já existe e deve ganhar versão brasileira em breve. Mesmo que toque o coração do leitor de diversas maneiras – certas histórias reais têm o encanto de rivalizar com a ficção em suas reviravoltas – parece fazer falta ao livro o toque da imaginação de Toulmé, seu humor autocrítico, suas observações muito pessoais sobre as pessoas e sobre a vida.

É um livro que pode deixar a gente mais feliz numa tarde de leitura e pode funcionar como porta de entrada à sua obra, mas está longe do brilhantismo de um Duas Vidas (até aqui, para mim, seu auge). Organizar esta coletânea pode ter sido o jeito que ele encontrou de manter-se próximo ao leitor, enquanto trabalha em seu próximo épico de lirismo cartunesco. É válido, mas a gratificação é pouca.

07/03/2025

O Auto da Compadecida 2

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Eu tenho por regra não me ocupar em falar mal das coisas de que não gosto. Se eu já me senti perdendo tempo com um filme, quadrinho ou disco ao consumi-lo, por que jogar fora preciosos minutos do meu dia pra escrever sobre ele? Então, eu vou tentar ser breve, pra bile não me subir muito alto pela garganta.

O Auto da Compadecida 2 não deveria existir, simples assim. Primeiro, porque o original nem era um filme exatamente, mas um recorte em longa-metragem da minissérie da Rede Globo, que adaptava a obra de Ariano Suassuna. Desta vez, a Globo nem se envolveu na produção ou distribuição, o que ajuda a explicar que o filme seja tecnicamente tão pobre, com cara de teatro (mal) filmado. Os cenários e passarinhos digitais são vergonhosos. É um filme feio de ver, saiba logo de saída – e nem vou me deter na eterna estereotipagem do Nordeste como um lugar sem vida e dos nordestinos como miseráveis e supersticiosos.

Tampouco se sustenta em sua história, já que se limita a requentar temas muito melhor explorados no primeiro filme. Como carece de uma razão de ser, apela o tempo inteiro à nossa nostalgia pelo filme original, e esses são os únicos momentos que valem a pena, porque, na falta de um Suassuna pra dar estofo, o roteiro é preguiçoso e sem-graça.

O elenco faz o que pode: o carisma de Matheus Nachtergaele e Selton Mello está intacto e, para minha surpresa, Eduardo Sterblitch e Humberto Martins não fazem feio. É bonita a amizade de João Grilo e Chicó, mas só porque a gente já sabia disso antes: bem analisando, alguém que some sem deixar rastro, apenas porque sim, por mais de 20 anos, não se qualifica como bom amigo, não – mas, vá lá, a gente compra a ideia. Chicó se envolve com a filha de um desafeto outra vez. João Grilo morre outra vez. Apela para Nossa Senhora (Thaís Araújo) outra vez. A falta de ideias (e de grana) fica ainda mais aparente quando vemos que Jesus e o Diabo são agora interpretados por Nachtergaele.

Como não concebo que nenhum dos envolvidos estivesse padecendo com boletos atrasados, só posso mesmo acreditar que este filme foi criado para, desavergonhadamente, lucrar com a nostalgia do público, sem oferecer nada digno em troca. Sou até capaz de crer que a ideia veio de “um lugar de amor” (argh!), mas você sabe que cinema costuma ser uma coisa cara pra quem assiste, né? Eu vi O Auto da Compadecida 2 em casa, mas, caso tivesse pagado por um ingresso, teria saído direto do cinema pro Procon.

27/02/2025

Véspera, de Carla Madeira

 

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Os temas centrais da literatura de Carla Madeira parecem ser o perdão e a dificuldade (natural, eu diria) que temos em estabelecer uma única narrativa como sendo A Verdade: o que existe são versões da verdade, dependendo de quem vê, como vê, onde vê e por que vê. Assim como no acachapante Tudo é Rio (2014), este Véspera (2021) está cheio de personagens que amam demais e odeiam mais ainda. É tortuoso o caminho até uma redenção, se é que se alcança alguma, porque Carla entende que espirais de sentimentos fortes são como um caminhão sem freio na ladeira.

Na abertura do livro, Vedina – presa num casamento horrível com Abel, vivendo uma rotina de mútuo desprezo que ambos se recusam a abandonar – num lapso de absoluto destempero (movido pelo rancor do marido e impaciência com uma criança apenas sendo criança), abandona o filho pequeno às margens de uma avenida. Ao ver, pelo retrovisor, o choro assustado de Augusto, ela se arrepende e, sem poder parar na avenida mão única, dá a volta no quarteirão para pegá-lo de volta, mas, atrasada por um caminhão de lixo e alguns pedestres, não encontra o menino onde o deixou. Antes, crendo-se cheia de coragem para finalmente enfrentar Abel e exigir que saísse de casa, Vedina está, agora, cheia de medo de encará-lo. Como vai explicar ao marido que abandonou e perdeu seu filho?

Corta pro passado distante, onde, aos poucos, somos apresentados aos personagens cujas histórias nos conduzirão até o fatídico surto de Vedina – em especial, a de dois gêmeos, batizados de Caim e Abel (sim, ele mesmo, seu marido) em outro lapso de raiva mal-direcionada. Sobre a cabeça da fervorosa Custódia, sua mãe, paira o eterno temor de que os filhos repitam a tragédia bíblica, mas os meninos crescem muito unidos, sendo tratados e até chamados igualmente: por medo de dar mole pro azar, Custódia prefere tratá-los por Abel e Abelzinho. Quando precisam entrar na escola, porém, não há mais como negar o disparate registrado em cartório: Caim descobre seu nome real, é colocado longe de Abel (ainda que na mesma sala de aula) e um abismo imenso começa a ser entalhado entre os gêmeos.

Este segundo front narrativo é o único que realmente avança. Presa na imobilidade redundante da culpa, Vedina, no presente, fica rodopiando sobre as coisas que a levaram a ser uma mãe tão pouco amorosa para Augusto. As horas (e os capítulos) vão passando, mas ela não encontra o menino, não conta o que aconteceu ao marido, não aciona a polícia. Apenas fica ali, em perene “tela azul da morte”.

Já no passado, as coisas pegam fogo. É notável a tensão na escrita de Carla Madeira. O ódio é sempre visceral. A frieza é sempre cortante – e não é que a escritora se dedique apenas a escrever sobre pessoas e sentimentos horríveis: é que ela sabe que todo mundo traz luz e sombra dentro de si. O bom marido pode ser um pai castrador. O filho bom-moço pode ser um namorado de merda. A mãe zelosa pode ser uma controladora doentia. Ninguém é somente uma coisa e, como sabemos, todo mundo nesta vida só quer ser amado, mas, às vezes, não sabemos como nos abrir pro amor. Noutras, confundimos outras coisas com amor ou não aceitamos ser acertados onde mais dói, um risco constante.

Por isso é que os personagens de Véspera erram tanto: estão cheios de certezas, e a certeza é a mãe do engano. Uma enche a boca de “bêbado imprestável” ao falar do marido cuja libido incendiária lhe ofende, sem enxergar o homem apaixonado e dedicado por baixo; um outro deseja tanto uma mulher comprometida que comete duas besteiras enormes em sequência, forçando amor em uma e negando amor em outra; a que se afastou da sufocante casa dos pais, onde não se sentia amada, tem que ouvir calada as críticas dos que ficaram. A vida é, para todos, uma constante busca pela felicidade, mas, quase sempre, ela exige mudança, essa coisa que causa tanto medo e consequências imprevisíveis.

Véspera tem um final abrupto, num momento em que um conflito enorme se desenha, mas é interrompido pela resolução do seu drama central – e ela é mais surpreendente e polêmica do que esperamos, porque advoga que garantir a felicidade (a própria e a alheia) parece prioridade acima de qualquer lei ou medo de julgamento humano ou divino. É a caridade extrema, assim como o perdão extremo foi ponto polêmico da conclusão de Tudo é Rio. Como ele, Véspera é um livro de leitura ágil, magnética, que cativa porque seus dramas (até mesmo – talvez, principalmente – os mais feios e vergonhosos) se parecem demais com os de qualquer um.

21/02/2025

Música & Mágica #4


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LEGIÃO URBANA
V
(1991)

Eu tento, com muito afinco, não me transformar em um desses velhos que estão sempre reclamando da música feita pela juventude, porque “no meu tempo que era bom”. Confesso, porém, que nem sempre é tão fácil resistir a esse impulso. Para além das diferenças entre a música feita hoje e aquela de 10, 20, 30 anos atrás ou mais, existe o fato de que o próprio hábito de consumir música mudou muito. Hoje em dia, é raro que alguém toque um álbum inteiro no streaming – uma indústria que é alimentada, basicamente, de singles. São tempos de consumo cultural voraz, e pouca gente pode ou quer dispor de tempo para sentar e prestar atenção num álbum, do começo ao fim, e analisar todas as suas virtudes musicais e líricas (ou a falta destas).

Evitando ceder a esse temor/ódio pelo novo, então, eu tento sempre conhecer novas bandas e cantores – e, olha, tem uma moçada fazendo muita coisa boa por aí. Apesar dessa boa vontade, sinto que falta a boa parte dessa galera um pouco mais de maturidade emocional ou intelectual para processar sentimentos, em forma de letras que digam qualquer coisa que perdure para além do tempo da canção. Principalmente, se navegamos pelo mainstream, onde já esbarramos na óbvia dificuldade de encontrar uma jovem banda de rock que seja realmente popular, porque o brasileiro médio engoliu essa historinha (empurrada pela nossa goela abaixo com a força de muita grana e rádios compradas) de que “o sertanejo é a cara do Brasil”, e parece que não cabe nenhum outro tipo de música em suas preferências.

Tem gente boa fazendo música interessante e letra bacana por aí? Ô, se tem! Baiana System (BA), Academia da Berlinda (PE), Seu Pereira & Coletivo 401 (PB), Liniker (SP), Dingo (RS)... Alguns já nem tão jovens, verdade, mas, vivos e ativos. É uma questão de procurar, nada mais – só não espere ver essa galera todo domingo na Globo, como era no tempo da Legião Urbana, especialmente ali pelo final dos 80 e começo dos 90.

Essa prolixa introdução justifica-se pelo fato de que não houve (e nem deve haver mais) um letrista de rock do calibre de Renato Russo desde sua morte, nem uma banda que, ainda que limitada tecnicamente, fosse capaz de criar música que casasse tão bem com sua peculiar poesia (que costumava ignorar métricas e rimas) – e, mais importante ainda, que, com isso, gerasse sucesso popular – como foi o caso da Legião Urbana. Para este Música & Mágica, eu cheguei a cogitar O Descobrimento do Brasil (1993), um disco reconhecido como o mais diverso da carreira da Legião e aquele em que Renato parecia mais feliz e sábio, como que plenamente recuperado de uma bad trip e cheio de fé no futuro.

Daí, pensei: que nada, eu quero falar é do Renato numa pior, mesmo; da falta de esperança daqueles tempos, em que toda a nossa alegria pelo fim da ditadura, menos de uma década antes, já havia se transformado em desencanto, pelos sucessivos e fracassados planos econômicos e pela corrupção desenfreada dos governos Sarney e Collor; de como Renato, Marcelo Bonfá (bateria) e Dado Villa-Lobos (guitarras) ousaram cometer V, um disco progressivo, na esteira do monumental sucesso de um disco “fofo” e acústico, como foi o multiplatinado As Quatro Estações (1989).

A estranheza já bate à porta na primeira faixa, a curta “Love Song” – poema em português arcaico, escrito pelo trovador Nuno Fernandes Torneol, no século XIII. Prova da versatilidade de Renato, com a voz em primeiro plano em tom baixo, enquanto, ao fundo, sua voz ecoa vários tons acima, trazendo um clima quase gregoriano. Logo em seguida, a música mais longa da Legião Urbana: “Metal Contra as Nuvens”. São 11 minutos, divididos em quatro blocos instrumentais de andamentos variados, que alternam a doçura acústica da introdução e do encerramento com a fúria guitarreira setentista do segundo movimento e a atmosfera contemplativa dos teclados épicos do terceiro. Uma peça progressiva, inclusive, em sua letra com ambições de saga épica. Não testou a memória do ouvinte, como os nove minutos de “Faroeste Caboclo”, mas, certamente, ajudou a testar os limites da gravação em vinil simples: V tinha uns 50 minutos totais e quase virou disco duplo.

A seguir, mais viagem, nos cinco minutos da delicada instrumental “A Ordem dos Templários”. Fechando o que era o lado A do álbum em vinil, os quase oito minutos de “A Montanha Mágica” são como uma bad trip de heroína, em que Renato capricha na psicodelia evocada na letra: “um outro agora vive minha vida / sei o que ele sonha, pensa e sente”; “minha papoula da Índia, minha flor da Tailândia / és o que tenho de suave /e me fazes tão mal”. A delícia e a dor do vício, como num furacão de imagens e guitarras distorcidas, que termina com uma decisão desesperada: “chega, vou mudar a minha vida”.

Renato, Dado e Bonfá: fomos tão joooooovens

Um pouco mais convencional, a segunda metade do disco começa com “Teatro dos Vampiros”, que vinha embalada em uma leveza pop que açucarava uma das letras mais desoladas de Renato. A falta de amor e de perspectivas, a barra de viver no armário (que já nem era o caso dele, àquela altura) e de ter que parecer feliz sem estar, num país que massacrava seus cidadãos sem dó. Deve ter sido proposital que, após tanta deprê, “Sereníssima” venha socorrer o ouvinte com sua melodia alto-astral, uma das músicas mais simpáticas da Legião Urbana, com direito a gritinhos histéricos, e que, para nossa surpresa, não soa deslocada entre tanta lisergia.

Na sequência, o magnum opus do álbum: “Vento no Litoral” não evoca o céu azul de uma praia ensolarada, mas praias cinzentas, escarpadas, onde só se caminha bem abrigado do frio cortante. Ali, na margem, Renato lamenta a perda de alguém, sem deixar claro se essa pessoa partiu ou morreu. Felizmente, por mais que o verso “eu deixo a onda me acertar / e o vento vai levando tudo embora” possa ter contornos suicidas, mais à frente ele respira fundo e cata os pedaços: “já que você não está aqui / o que posso fazer é cuidar de mim”. É impossível ficar indiferente a “Vento no Litoral”, um dos melhores momentos de toda a discografia da Legião.

A bad é rebatida com “O Mundo Anda Tão Complicado”, em que tudo é esperança de um futuro bonito, com a letra descrevendo a rotina de um casal se mudando pra morar juntos. Levinha, bobinha, mas chega em ótima hora. A letra é mais um atestado da capacidade de Renato Russo de botar letras imensas na cabeça do ouvinte, mesmo que elas tenham pouca ou nenhuma rima, exceto pelo refrão.

“L’Âge d’Or” é sobre autoconhecimento e desistir das coisas que não valem a pena. A letra menciona “jovens gigantes de mármore”, que podem ser menção à banda Young Marble Giants, banda galesa de pós-punk, o movimento de onde se origina a Legião – mas que pode ser, também, prova da fé de Renato na beleza e tenacidade da juventude que, eventualmente, o substituiria. É o terceiro uso no disco do mesmo timbre distorcido de guitarra, fazendo desta uma faixa meio cansativa.

O ouvinte começa a desejar o fim e, felizmente, ele chega bem bonito: “Come Share My Life” é uma cover instrumental de um bonito folk de 1965, de Glenn Yarbrough. Levada ao piano sobre uma cama de sintetizadores e nada mais, encerra um disco atípico dentro da obra da Legião, uma banda de som cuja marca era não ter uma marca. Se não eram especialmente originais ou tecnicamente impecáveis, Renato, Dado e Bonfá (e antes, também, Renato Rocha) sabiam como poucos o que fazer para grudar nos ouvidos e mentes dos fãs, e o fizeram com uma obra que, amada ou odiada, podia ser chamada de tudo, menos de vazia ou incoerente.


* * * * *


Legião Urbana
V
Produzido por Mayrton Bahia e Legião Urbana
Lançado em 15 de Dezembro de 1991

01. Love Song
02. Metal Contra as Nuvens
03. A Ordem dos Templários
04. A Montanha Mágica
05. O Teatro dos Vampiros
06. Sereníssima
07. Vento no Litoral
08. O Mundo Anda Tão Complicado
09. L'Âge d'Or
10. Come Share My Life

18/02/2025

Ainda Estou Aqui

 

Não se esqueça que tem Promoção Starman rolando!

Aconteça o que acontecer no próximo dia 2 de março, Ainda Estou Aqui já é um fenômeno consolidado: além de muitíssimo elogiado e premiado mundo afora, já é um dos cinco filmes brasileiros mais vistos da História - imagina se não tivesse sido alvo de uma chocha tentativa de boicote! – e uniu os brasileiros em reconhecimento ao superlativo talento de sua estrela, Fernanda Torres, que esbanja graça e simpatia em nosso nome, em suas aparições televisivas.

Não é que não importe ganhar o Oscar: importa muito, principalmente se lembrarmos que a Argentina tem dois e a gente não tem nenhum.

Até o momento em que escrevo esta resenha, dos dez indicados a Melhor Filme, eu só consegui ver três: Duna Parte 2, A Substância e Ainda Estou Aqui. O nosso filme é, de longe, o que reúne mais atributos que o qualificam para o grande prêmio da noite. Para começo de conversa, não é uma alegoria regada a efeitos especiais, como os outros dois – e não estou, aqui, tentando diminuir os muitos méritos de um ou de outro. Ele larga na frente porque é uma história verdadeira, de gente como a gente, passando por eventos assustadores, aos quais estamos suscetíveis a reviver, a qualquer instante, porque uma parcela ignorante ou amnésica da população anseia pela volta do país a um tempo sem liberdade.

Os Paiva: mãe zelosa, pai coruja.

Quando o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) é levado do convívio com sua família para nunca mais ser visto, já havíamos passado o primeiro terço do filme testemunhando a rotina feliz de sua família de classe média, no Rio de Janeiro de 1971. Ao contrário de filmes como Cidade de Deus (2002), ou mesmo Central do Brasil (1998), estas não são pessoas marginalizadas, de uma realidade muito distante daquela do público que vai ao cinema. São uma família comum, fazendo coisas que famílias comuns fazem (talvez apenas com um pouco mais de dinheiro que a maioria das famílias comuns).

Atingidos em cheio pela marreta autoritária do então presidente Emilio Garrastazu Médici, não apenas seu marido é “sumido”, como a própria Eunice Paiva (Fernanda Torres) e uma de suas filhas são “convidadas” a participar de sucessivos e exaustivos interrogatórios, a fim confirmar uma alegada associação com “comunistas”. Ao sair, Eunice, no fundo, sabe que seu marido dificilmente retornará: embora não desista de questionar e de esperar, conforme passa o tempo, suas esperanças vão morrendo, a cada negativa da polícia aos seus pedidos para ver Rubens ou apenas para saber qualquer coisa sobre ele.

O que lhe resta, então, é tocar a vida. Quando Eunice chora, nunca é desabando de luto: é sempre aquela lágrima fugidia, sem soluços, porque ela sabe que não pode sucumbir, que precisa ser forte pelo marido ausente, pelos filhos e por ela própria – e ela se mostra forte. Com toda a dor do mundo e temor pelo futuro, mas, sim.

Eunice Paiva: pra frente é que se anda, porque a alternativa é pior.

Há dois momentos especialmente representativos da força de Eunice Paiva: o já famoso (pois recortado em diversas resenhas do filme no YouTube) passeio no shopping, em que seus filhos lancham, enquanto ela se pega reparando nas pessoas seguindo com suas vidas, felizes, alheias a todo o drama que ela está vivendo; e outro, quando, ao ser entrevistada e fotografada para uma revista, ela ignora o pedido desta por uma foto triste, sombria – como supostamente conviria a uma vítima da ditadura – e pede aos filhos que caprichem no sorriso.

Após tantas indicações e vitórias, qualquer coisa que se diga sobre a atuação de Fernanda Torres é chover no molhado. Se não leva o Oscar, não terá sido por falta de merecimento, mas porque sabemos que ele é, essencialmente, uma premiação de americanos para americanos, que, de vez em quando, lembram-se de incluir uns gatos pingados da produção de cinema do resto do mundo em categorias além da restritiva Melhor Filme Estrangeiro. Será ótimo se o filme vencer nesta categoria (que parece a mais “fácil”), mas um Oscar para Fernanda Torres teria o potencial de unir, por um instante que fosse, os corações e mentes do país, fazendo com que nossos muitos e imensos problemas parecessem um pouco menos assustadores.

Na verdade, é um vacilo da Academia que o filme não tenha ainda mais indicações, como o roteiro (adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho caçula do casal) e a direção segura de Walter Salles, ou a sóbria atuação de Selton Mello como Rubens Paiva. É uma obra lançada em tempos muito sombrios, sobre outros tempos muito sombrios, para lembrar às pessoas que não há mal que não possa retornar, se a gente baixar a guarda (anistia, nem a pau!). São elementos que a Academia costuma prezar, mas, como dito lá no começo, com ou sem prêmios, Ainda Estou Aqui já é o campeão moral da temporada.